Meditação

O sorriso das violetas na cozinha de manhã, enquanto olhava Baltasar se levantar do sofá com sofreguidão. O corpo de Baltasar era turbulento, melhor, era turvo e lento. A marca do cassetete que lhe deram às costas mostrava o porquê. Eu estava à mesa e conseguia ver os dois movimentos, a vagarosa dor de Baltasar e a explosão inerte das violetas.

Outro movimento pescou minha atenção, Relâmpago, o gato, me encarou só com um olho escondendo-se detrás da parede. Queria brincar, certamente. Só levei a caneca de café à boca, tampando meus olhos, para que Relâmpago não os buscasse mais e entendesse a mensagem.

Minhas pernas doíam, não sei por quanto tempo eu correra, em vários momentos eu sequer sabia para onde eu corria, só corria, em meio ao gás e ao estampido dos cascos dos cavalos estrangulando o chão.

Minhas costas estão doendo muito, disse Baltasar me fitando com uma cara de dor real. Senta, toma um café, se pá a gente cola num hospital pra ver isso daí, vai que quebrou algo.

Ele se sentou, mal conseguiu encostar na cadeira. Devia estar doendo pra caralho. Eu olhei para as violetas, elas realmente estavam lindas refletindo seus tons pelo alucinado da luz daquela manhã, que seria uma das mais belas já vistas: tudo ali na medida certa de luz e precisão, até o quadrante da janela arrebentava a barra do cosmético e se alicerçava esteticamente como amplidão a ser alcançada. Que manhã.

Tem açúcar? Baltasar só gostava de café com açúcar. Você sabe que tem e sabe onde está. Porra, pra que a grosseria, já não basta essa dor? Você sabe que não é grosseria, é apenas acordar, ainda mais com essa beleza toda em volta, não sei pra quê isso, nessas horas que duvido mesmo de Deus.

Baltasar me olhou com sarcasmo, ele era ateu convicto. Pegou o açúcar, colocou no café duas colheres bem cheias, com certeza o seu índice de glicose devia ser altíssimo. Contemplei-o com curiosidade por algum tempo, ele era feio, mas mesmo assim, naquele manhã, parecia que ele ornava ainda mais o ao redor.

Posso fumar um cigarro?

Fulminei-o com um olhar, ele correu torto à sua pochete, tirou um cigarro de filtro amarelo qualquer e o acendeu. Foi até a janela e ficou fumando enquanto bebia o que eu só conseguia imaginar ser uma caramelo travestido de café.

Vou meditar quinze minutinhos no quarto e já saímos, firmeza? Essa manhã está foda. Acho que dá pra organizar a mente um tanto.

Baltasar só aquiesceu com a cabeça. Entrei no quarto e fechei a porta, sentei-me em lótus diante da janela. Que imensidão, quanto horizonte, quanta luz! Maravilhei-me uns instantes antes de apagar a mente. Antes de estar ali e só ali. Relâmpago roçou as minhas costas. Levantei-me tentando controlar alguma irritação e tirei o gato do quarto. Baltasar pegou-o do lado de fora e começou a coçar-lhe a barriga. Voltei para dentro. Dentro.

A concentração estava difícil, muita coisa na cabeça, Baltasar e o cigarro lá fora, o mundo ruindo mais lá fora ainda, meus olhos ardendo por conta do gás, queimavam irritantemente, minhas pernas doendo. O que faríamos hoje? E amanhã? E depois? A revolução? Que revolução? Voltei novamente para dentro e corri a apagar, diluir, calmamente, sem força, o que arfava. Não era difícil, não precisava lutar, era só deixar as coisas se dissiparem. Algum barulho intenso houve lá fora, estranhei e não me atemorizei, voltei para aqui, agora. Presente.

Não sei quanto tempo fiquei ali, mas quando despertei, estava bem, sentindo-me com disposição. Abri a porta, saí do quarto e respirei fundo, feliz.

E então, Baltasar, partiu ver de qual é na suas costas?

Baltasar não respondeu. Olhei para os lados e nada. Andei para a sala e vi a porta aberta. No corredor do lado de fora, um rastro de sangue no chão até o elevador e Relâmpago cheirando curiosamente aquilo. A tia estranha do apartamento da frente me olhou por detrás da porta entreaberta. Quando notou meus olhos cruzando com os dela bateu a porta assustada. Não entendi nada.

Baltasar, que porra é essa, balbuciei, enquanto todo o meu corpo tremia.

10 comentários em “Meditação

  1. Muito bom, Guilherme.

    É assim que notamos o perigo de descansar um pouquinho… rs depois de te ler, pensamos: “acho melhor tentar virar zumbi e não dormir mais”… vai que o que ativa uma outra perspectiva da coisa só funciona ao ir deitar-se haha
    Por via das dúvidas, vou até preparar um café… não me custa nada… rs

    Abraços,

    Clarice.

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  2. hehehe Clarice, só zoando com a panaceia da meditação que tomou conta do mundo. Particularmente acho legal a perspectiva, embora não consiga fazer, mas a coisa tomou uma proporção do tipo comer linhaça e não comer açúcar que dá nos nervos…

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  3. haha Gui, isso que disse em “perigo de ‘descansar’ um pouquinho” haha
    O “outra perspectiva” foi em referência ao que foi feito enquanto se ‘meditava’… vai que ativou uma outra personalidade, um lado psicopata, um lado homicida aí rs por isso brinquei que não ia nem dormir aahauhaua vai que…

    meus nervos estão mesmo precisando de novas alternativas super descoladas dos igs da vida… será que comer linhaça e não comer açúcar ajuda? hhaha

    Beijos

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  4. Dependendo das consequências, tô até cogitando hauahauahau se for só surto psicótico seguido de homicídio tá bom :p hauaahauahau

    P.S.: oi PF, foi só brincadeirinha, tá?

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