
Incrível!!
[Resenha] O Conto da Aia – Margaret Atwood
Meu nome é Guilherme, poeta , professor de geografia da Secretaria de Educação-DF e mestre em geografia (UnB). Tive AVC em maio de 2020 (isquêmico) não consigo falar ainda. Tenho apraxia e afasia. Apraxia é um distúrbio neurológico motor da fala, resultante de um deficit na consistência e precisão dos movimentos necessários à fala. Afasia é uma alteração na linguagem causada por lesão neurológica.
“… nunca ficou tão claro que o outro é parte fundamental do Eu, vivendo esse Eu sozinho ou com alguém. Parece complicado mas não é: não escapamos do outro de jeito nenhum. Ele pode ser real ou imaginário, uma pessoa ou um ideal. Normalmente é tudo isso misturado. Como diria Lacan, nó borromeano, que entrelaça o real, o simbólico e o imaginário. De qualquer forma, que façamos os nós que possamos sustentar e desamarrar.”
Maria Homem
“Se os outros me respeitam, então obviamente deve haver “em mim” — ou não deve? — algo que só eu lhes posso oferecer. E obviamente existem esses outros — não existem? — que ficariam satisfeitos e gratos por isso lhes ser oferecido. Eu sou importante e o que penso e digo também é. Não sou uma cifra, facilmente substituída e descartada. Eu “faço diferença” para outros além de mim. O que digo e sou e faço tem importância — e isso não é apenas um vôo da minha fantasia. O mundo à minha volta seria mais pobre, menos interessante e promissor se eu subitamente deixasse de existir ou fosse para outro lugar.
Se é isso que nos torna objetos legítimos e adequados do amor-próprio, então a exortação a “amar o próximo como a si mesmo” (ou seja, ter a expectativa de que o próximo desejará ser amado pelas mesmas razões que estimulam nosso amor-próprio) evoca o desejo do próximo de ter reconhecida, admitida e confirmada a sua dignidade de portar um valor singular, insubstituível e não-descartável. A exortação nos leva a pressupor que o próximo de fato representa esses valores — ao menos até prova em contrário. Amar o próximo como amamos a nós mesmos significaria então respeitar a singularidade de cada um — o valor de nossas diferenças, que enriquecem o mundo que habitamos em conjunto e assim o tornam um lugar mais fascinante e agradável, aumentando a cornucópia de suas promessas.”
Zygmunt Bauman
Presciência
Se eu soubesse que o coração
quebra lentamente, se desmantela
em pedaços irreconhecíveis de
miséria,
Se eu soubesse que o coração vazaria,
babando sua seiva, com uma visibilidade
vulgar, sobre as salas de jantar enfeitadas de estranhos,
Se eu soubesse que a solidão poderia
sufocar a respiração, afrouxando
e forçando a língua contra o
o céu da boca,
Se eu soubesse que a solidão formaria
queloides, enrolando-se pelo
corpo como uma cicatriz sinistra
e bela,
Se eu soubesse, ainda teria amado
você, sua beleza impetuosa e insolente,
seu rosto exageradamente cômico
e o seu conhecimento de doces
prazeres,
Mas a distância.
Teria deixado você inteiro e completo
para o divertimento daquelas que
desejassem mais e se importassem menos.
Maya Angelou
AZEITE DE DENDÊ NO CARNAVAL
Luiz Antônio Simas
“Exu que tem duas cabeças, ele faz sua gira
com fé
Exu que tem duas cabeças, ele faz sua gira
com fé
Uma é Satanás do inferno outra é de Jesus Nazaré
Uma é Satanás do inferno a outra é de Jesus
Nazaré.”
– Ponto de Exu
AS RUAS no carnaval são exemplarmente exusíacas. Exu é aquele que vive no riscado, na brecha, na casca da lima, malandreando no sincopado, desconversando, quebrando o padrão, subvertendo no arrepiado do tempo, gingando capoeiras no fio da navalha. Exu é o menino que colheu o mel dos gafanhotos, mamou o leite das donzelas e acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje; é o subversivo que, quando está sentado, bate com a cabeça no teto e em pé não atinge sequer a altura do fogareiro. Ele é chegado aos fuzuês da rua. Adora azeite de dendê. Mas não é só isso e pode ser o oposto a isso.
Um longo poema da criação diz que, certa feita, Exu foi desafiado a escolher, entre duas cabaças, qual delas levaria em uma viagem ao mercado. Uma continha of bem, a outra continha o mal. Uma era remédio, a outra era veneno. Uma era corpo, a outra era espírito. Uma era o que se vê, a outra era o que não se enxerga. Uma era palavra, a outra era o que nunca será dito.
Exu pediu uma terceira cabaça. Abriu as três e misturou o pó das duas primeiras na terceira. Balançou bem. Desde este dia, remédio pode ser veneno e veneno pode curar, o bem pode ser o mal, a alma pode ser o corpo, o visível pode ser o invisível e o que não se vê pode ser presença. O dito pode não dizer e o silêncio pode fazer discursos vigorosos. A terceira cabaça é a do inesperado: nela mora a cultura.
Gosto do carnaval de rua e das libações comandadas por Exu. Sou adepto da subversão pela festa. Carnaval de rua é possibilidade: pode ser festa de inversão, confronto, lembrança e esquecimento. É período de diluição da identidade civil, remanso da pequena morte, reino da máscara, fuzuê do velamento necessário. Eventualmente, sai porrada.
O carnaval exusíaco é o do não
endereço, do rumo perdido, da rua esquecida, da esquina incerta. Em tempos de escancaramento das redes sociais, tem gente que quer ser encontrada no carnaval. É um tal de dizer “onde estou”, “qual é a minha fantasia”, “olhem como estou me divertindo”, “que foto bacana”. Brincar é o de menos; fundamental é que as pessoas saibam, em tempo real, que o folião está brincando. Na rua, espaço de subversão do cotidiano, a folia deveria ser o mar aberto do ébrio pirata de nau sem rumo. O carnaval, festa do “me esqueçam”, vira a festa do “me encontrem, me vejam, me curtam”. Para alguns, é a festa do “me patrocinem”. Sinal dos tempos e despotência da força exusíaca do babado. Sem dendê, a rua morre. Olho vivo, rapaziada.
Desfile de escola de samba, cada vez é mais cheio de regras, é carnaval oxalufânico. Oxalufã é o orixá que tem como positividade a paciência, o método, a ordem, a retidão e o cumprimento dos afazeres predeterminados. Tudo que contrário a isso representa a negatividade que pode prejudicar seus filhos. Diz um mito de Ifá que, quando se desviou da missão a ser executada e tomou um porre de vinho de palma, Oxalufã quase comprometeu a própria tarefa da criação do mundo. Em outra ocasião, quando também tentou agir por instinto teimosia, deixando de seguir a recomendação do oráculo e de dar oferendas para Exu, Oxalufã foi preso durante uma viagem, acusado injustamente pelo furto de um cavalo. Curtiu uma cana de sete anos. Deve evitar o azeite de dendê, que o tira do prumo.
O problema é que esse perfil oxalufânico anda excessivo entre as escolas de samba. A disciplina, a regra, O engessamento dos desfiles, o controle rígido das performances podem representar a perda da capacidade de renovação e o descolamento entre as agremiações e a cidade. Oxalufã precisou de Exu para cumprir a sua missão na criação do mundo.
Alguma dose de oxalufânico pode fazer bem ao que é exusíaco; contanto que não o domine e impeça seu movimento. Alguma dose de exusíaco pode fazer um bem enorme ao que é predominantemente oxalufânico, para que ele se movimente. Quando um princípio, todavia, prevalece no terreno do outro e desequilibra a vitalidade de determinada potência, a chance de a vaca ir para o brejo é grande. Saber a medida certa do dendê é o nosso desafio na receita momesca. Carnaval, como diria o Zé Pereira, é vida na rua.
Tempo… calma… 🧠👅🗣
REDEMOINHO
Por um momento
monumento
de pó e vento.
Cessado
o movimento,
vértice
tragado
pelo vórtice,
um lamento
no plano horizontal.
Edna Rezende
Num único ponto
O peso do verão
esmaga nessa encosta
as oliveiras.
Não há sombra
nas sombras
luz mais densa somente
e o fervilhar de insetos.
Na erva alta
uma laranja dorme já à deriva
abandonando ao chão
sumos azedos.
O jardim se submete
à mão do sol.
Só o lagarto
entrefechados olhos
se expõe à luz como se expõe a pedra
escuro e impenetrável.
Num único ponto avista-se vida
entre peito e garganta
onde sangue palpita.
Marina Colasanti
“ATÉ AGORA EU os conduzi por uma viagem evolucionária que culminou na emergência de duas habilidades humanas: linguagem e abstração. Mas outro traço da singularidade humana intrigou os filósofos durante séculos – a saber, a ligação entre a linguagem e o pensamento sequencial, ou raciocínio em passos lógicos. Podemos pensar sem verbabilização interna silenciosa? Já discutimos a linguagem, mas precisamos ser claros em relação ao que entendemos por pensar antes de tentar nos atracar com esta questão. Pensar envolve, entre outras coisas, a capacidade de se engajar com manipulação irrestrita de símbolos em nosso cérebro seguindo certas regras. Em que grau essas regras estão relacionadas às da sintaxe? O termo-chave aqui é “irrestrito”.
Para compreender isso, pense numa aranha tecendo uma teia e pergunte a si mesmo: terá a aranha conhecimento da lei de Hooke relativa à tensão de fios esticados? A aranha deve“saber” disso em certo sentido, de outro modo a teia se desintegraria. Seria mais preciso dizer que o cérebro da aranha tem um conhecimento tácito, em vez de explícito, da lei de Hooke? Embora a aranha se comporte como se conhecesse essa lei – a própria existência da teia atesta isso –, seu cérebro (sim, a aranha tem um) não tem nenhuma representação explícita dela. Ela não pode usar a lei para nenhum outro propósito a não ser tecer teias e, de fato, ela só pode tecer teias segundo uma sequência motora fixa. Isso não é verdade acerca de um engenheiro humano que utiliza conscientemente a lei de Hooke, que aprendeu e compreendeu a partir de livros de física. A utilização humana da lei é irrestrita e flexível, disponível para um número infinito de aplicações. Ao contrário da aranha, ele tem uma representação explícita de seu funcionamento em sua mente – o que chamamos de compreensão. A maior parte do conhecimento do mundo que possuímos recai entre esses dois extremos: o conhecimento irracional de uma aranha e o conhecimento abstrato do físico.
O que entendemos por “conhecimento” ou “compreensão”? E como bilhões de neurônios os alcançam? Essas coisas são completos mistérios. Reconhecidamente, os neurocientistas cognitivos ainda são muito vagos no tocante ao significado exato de palavras como“compreender”, “pensar” e, de fato, da própria palavra “significado”. Mas o trabalho da ciência é encontrar respostas passo a passo por meio de especulação e experimento. Podemos abordar alguns desses mistérios de modo experimental? Por exemplo, o que dizer sobre a relação entre linguagem e pensamento? Como poderíamos explorar experimentalmente a elusiva interface entre esses dois elementos?” (p. 153-154)
“Não consigo fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é a gratidão. Amei e fui amado, recebi muito e dei algo em troca, li, viajei, pensei, escrevi.”
Oliver Sacks
RETORNOS
Voltou. Não disse nada.
Mas estava claro que teve algum desgosto.
Deitou-se vestido.
Cobriu a cabeça com o cobertor.
Encolheu as pernas.
Tem uns quarenta anos, mas não agora.
Existe — mas só como na barriga da mãe
na escuridão protetora, debaixo de sete peles.
Amanhã fará uma palestra sobre a homeostase
na cosmonáutica metagaláctica.
Por ora dorme, todo enroscado.
Wislawa Szymborska
Um momento que não vai mudar tudo.
(lânguido: desprovido de energia)
Preciso pensar no mundo real.
(inerte: sem atividade ou movimento próprios)
O poeta é um fetichismo baseado na palavra.
(cansado: desprovido de objetividade)
A metamorfose está na inconstância da última hora dizendo que está disponível.
(prostrado: sem ânimo)
Então, quebrar essa percepção das coisas enquanto, desacelerar.
Obrigado, pelo seu amor Tamara…
Provérbios do Inferno
No tempo de semeadura, aprende; na colheita, ensina; no inverno, desfruta.
Conduz teu carro e teu arado sobre a ossada dos mortos.
O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.
A prudência é uma rica, feia e velha donzela cortejada pela Impotência.
Aquele que deseja e não age engendra a peste.
O verme perdoa o arado que o corta.
Imerge no rio aquele que ama a água.
O tolo não vê a mesma árvore que o sábio vê.
Aquele cuja face não fulgura jamais será uma estrela.
A Eternidade anda enamorada dos frutos do tempo.
À laboriosa abelha não sobra tempo para tristezas.
As horas de insensatez são medidas pelo relógio, as de sabedoria, porém, não há relógio que as meça.
Todo alimento sadio se colhe sem rede e sem laço.
Toma número, peso & medida em ano de míngua.
Ave alguma se eleva a grande altura, se se eleva com suas próprias asas.
Um cadáver não revida agravos.
O ato mais alto é priorizar o outro.
Se o tolo persistisse em sua tolice, sábio se tornaria.
A tolice é o manto da malandrice.
Prisões se constroem com pedras da Lei; Bordéis, com tijolos da Religião.
A vanglória do pavão é a glória de Deus.
O cabritismo do bode é a bondade de Deus.
A fúria do leão é a sabedoria de Deus.
A nudez da mulher é a obra de Deus.
Excesso de pranto ri. Excesso de riso chora.
O Rugir de leões, o uivar dos lobos, o furor do mar em procela e a espada destruidora são fragmentos de eternidade, demasiado grandes para o olho humano.
A raposa culpa o ardil, não a si mesma.
Júbilo fecunda. Tristeza engendra.
Vista o homem a pele do leão, a mulher, o velo da ovelha.
O pássaro um ninho, a aranha uma teia, homem amizade.
O tolo, egoísta e risonho, & tolo, sisudo e tristonho, serão ambos julgados sábios, para que sejam exemplo.
O que agora se prova outrora foi imaginário.
O rato, o camundongo, a raposa e o coelho espreitam as raízes: o leão, o tigre, o cavalo e o elefante espreitam os frutos.
A cisterna contém: a fonte transborda.
Uma só ideia impregna a imensidão.
Dize sempre o que pensas e o vil te evitará.
Tudo em que se pode crer é imagem da verdade.
Jamais uma águia perdeu tanto tempo como quando se dispôs a aprender com a gralha.
A raposa provê a si mesma, mas Deus provê ao leão.
De manhã, pensa. Ao meio dia, age. Ao entardecer, come. De noite, dorme.
Quem consentiu que dele te aproveitasses, este te conhece.
Assim como o arado segue as palavras, Deus recompensa as preces.
Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.
Da água estagnada espera veneno.
Jamais saberás o que é suficiente, se não souberes o que é mais suficiente.
Ouve a crítica do tolo! é um direito régio!
Os olhos de fogo, as narinas de ar, a boca de água, a barba de terra.
O fraco em coragem é forte em astúcia.
A macieira jamais pergunta à faia como crescer; nem o leão ao cavalo como apanhar sua presa.
Quem reconhecido recebe, abundante colheita obtém.
Se outros não fossem tolos, seríamos nós.
A alma imersa em deleite jamais será maculada.
Quando vês uma guia, vês uma parcela do Gênio; ergue a cabeça!
Assim como a lagarta escolhe as mais belas folhas para pôr seus ovos, o sacerdote lança suas maldições sobre as alegrias mais belas.
Criar uma pequena flor é labor de séculos.
Maldição tensiona: Bênção relaxa.
O melhor vinho é o mais velho, a melhor água, a mais nova.
Orações não aram! Louvores não colhem!
Alegrias não riem! Tristezas não choram!
A cabeça, sublime; o coração, Paixão; os genitais, Beleza; mãos e pés, Proporção.
Como o ar para o pássaro, ou o mar para o peixe, assim o desprezo para o desprezível.
O corvo queria tudo negro; a coruja, tudo branco.
Exuberância é Beleza.
Se seguisse os conselhos da raposa, o leão seria astuto.
O Progresso constrói caminhos retos; mas caminhos tortuosos sem Progresso são caminhos de Gênio.
Melhor matar um bebê em seu berço que acalentar desejos irrealizáveis.
Onde ausente o homem, estéril a natureza.
A verdade jamais será dita de modo compreensível, sem que nela se creia.
Suficiente! ou Demasiado.
Os Poetas antigos animaram todos os objetos sensíveis com Deuses e Gênios, nomeando-os e adornando-os com os atributos de bosques, rios, montanhas, lagos, cidades, nações e tudo quanto seus amplos e numerosos sentidos permitiam perceber.
E estudaram, em particular, o caráter de cada cidade e país, identificando-os segundo seu deidade mental;
Até que se estabeleceu um sistema, do qual alguns se favoreceram, & escravizaram o vulgo com o intento de concretizar ou abstrair as deidades mentais a partir de seus objetos: assim começou o sacerdócio;
Pela escolha de formas de culto das narrativas poéticas.
E proclamaram, por fim, que os Deuses haviam ordenado tais coisas.
Desse modo, os homens esqueceram que todas as deidades residem no coração humano.
Por Willian Blake
SAÚDE MENTAL
Segundo psicanalista Christian Dunker, discursos neoliberais de meritocracia — em que sucesso e fracasso tendem a ser individualizados — e crise dos últimos anos em que os horizontes prometidos deixaram de ser cumpridos ajudam a agravar o quadro geral do transtorno no Brasil
Por Redação RBA
Publicado 21/03/2021 – 10h34
São Paulo – A depressão é um problema sério no Brasil. De acordo com dados da OMS, a Organização Mundial da Saúde, a doença afeta 5,8% da população, um índice maior do que a média mundial de 4,4% e a maior da América Latina. Para falar sobre esse tema, o programa O Planeta Azul conversou com o psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP Christian Dunker, que acabou de lançar o livro Uma Biografia da Depressão, pela Editora Planeta.
No livro, Dunker narra como a depressão, que por muitas décadas ocupou uma posição menor entre os transtornos mentais, se tornou, a partir dos anos 1970, a grande protagonista dos discursos sobre o sofrimento psíquico.
De olho nesse fenômeno, o professor da USP resolveu esmiuçar as origens, a história e o contexto atual da depressão. Ele encontrou diversas explicações contemporâneas para o agravamento do transtorno: dos discursos neoliberais de meritocracia — em que sucesso e fracasso tendem a ser individualizados — à crise dos últimos anos em que os horizontes prometidos deixaram de ser cumpridos. Deparou-se também com questões como a ascensão do neopentecostalismo, com igrejas vendendo a ideia de prosperidade.
Ao longo do livro, Christian Dunker refaz os passos genealógicos do transtorno a partir dos conceitos da tristeza e da melancolia para mostrar que a depressão é “um nome demasiado pequeno para tantas formas, que reúne coisas que não andam juntas”. O autor faz uma viagem no tempo para mostrar que o surgimento da depressão é contemporâneo ao romantismo nas artes e que sua estabilização como quadro clínico acompanha o modernismo nas artes visuais.
Dunker concorda que as redes sociais contribuem para, ao expor imagens e histórias perfeitas, agravar a depressão. Mas reconhece também o seu papel positivo. “Não devemos demonizar as redes sociais. Porque elas estão fornecendo práticas de reconexão de contato e de narrativização de sofrimento, isso tudo está disponível”, diz ele.
https://play.google.com/store/books/details?id=8VzwDwAAQBAJ
Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico
Acervo Online | Mundo
por Rodrigo Santaella Gonçalves
17 de março de 2022
Confira resenha do livro de Edemilson Paraná, Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico (Autonomia Literária, 2020)
O livro busca captar, a partir de uma análise acurada sobre o bitcoin, aspectos fundamentais da dinâmica do capitalismo em sua forma neoliberal, no contexto de sua crise contemporânea. Se em Finança Digitalizada (2016) Edemilson Paraná analisou a relação entre o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação e a reconfiguração do capitalismo contemporâneo, sobretudo no aspecto referente à intensificação do processo de financeirização da economia mundial, em Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico, a criptomoeda aparece como um sintoma dessa dinâmica, como um produto de sua instabilidade estrutural. Concebida com uma radicalidade utópica das ideias que fundamentam o neoliberalismo, a criptomoeda entra em choque com o neoliberalismo do establishment, aquele “realmente existente”, e, nesse cenário, traz luz às contradições estruturais dessa forma de funcionamento do capitalismo.
Com uma análise marxista do bitcoin, o autor oferece uma definição precisa da criptomoeda, que contém em si a explicação para muitos de seus limites: o bitcoin não representa a superação da política no que diz respeito à administração monetária porque, justamente pelas características que são aventadas como propulsoras dessa superação, ele não cumpre as tarefas às quais se propõe. Em vez de substituir o dinheiro mundial, tem baixo volume e alcance de circulação; em vez de produzir estabilidade monetária, é altamente instável por causa do seu papel como ativo especulativo; e, por fim, em vez de garantir uma tutela descentralizada, a concentração de poder relativa entre seus usuários só cresce.
A crítica aos limites da criptomoeda e à crença em soluções puramente técnico-científicas para os problemas do capitalismo não significa uma perspectiva tecnofóbica ou conservadora. O livro discute e deixa em aberto a possibilidade do uso de algumas das tecnologias presentes no bitcoin – especialmente o blockchain – a serviços de interesses populares e até de perspectivas revolucionárias. Se isso será possível, não sabemos: a única certeza, reforçada pelo livro, é a de que qualquer transformação social relevante passa por novos valores, novos mecanismos de decisão democrática, por outra forma de organização socioeconômica e por outra relação do Estado com a sociedade. Fora dessas perspectivas, qualquer bravata que defenda a ideia de que é possível atingir mudanças relevantes a partir de soluções “apolíticas” ou puramente tecnológicas, como o bitcoin, fracassará.
A leitura de Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico é imprescindível não só para aqueles que querem entender o funcionamento e as perspectivas relacionadas à criptomoeda, mas sobretudo para todo o público que busca compreender melhor – a partir de elementos concretos – a dinâmica do capitalismo contemporâneo.
Rodrigo Santaella Gonçalves é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: rodrigo.santaella@ifce.edu.br.
Noite quente. A muriçoca zumbi infernal sua busca por sangue e eu continuo com meus abscessos mentais. O suor escorre pela testa e se acumula também no nariz. O sono não vem nunca. A muriçoca continua. Há um misto de cansaço físico e mental e angústia pelo levantar cedo de manhã. A cerveja de ontem não caiu bem no estômago e a azia rompe ainda mais a madrugada. Eu poderia mudar de emprego, eu poderia fazer algo, eu poderia estar lendo alguma coisa e me deixar vencer pela insônia de vez, mas eu ainda brigo, ainda reluto, ainda continua sentindo o calor fluir em suor jorrado aos borbotões, sentindo essa ânsia de querer dormir, sentindo o zunido próximo da muriçoca. Sentindo. Parece que Descartes não tem sentido algum agora e meu sentir é o que é, à revelia de que eu pense agora. Noite passada foi a mesma coisa. E noite antes da passada também. E noite antes da antes da passada. E eu nem consigo lembrar quando foi a última vez que eu dormi. Lembro que Paulo está ao lado e dorme tranqüilo. Hoje ainda, agora há pouco, ele trocou meu nome. Já devem ser umas quatro horas da manhã. Daqui umas duas horas eu tenho que me levantar. Minhas olheiras são dois poços terrivelmente fundos e sei que lá dentro flui um oceano. Paulo chamou-me de Beth ou Bete, não faço idéia de qual seria a grafia, mas o que importa agora é o som: Beth. Fui Beth por um lapso de segundo. Creio que ele nem tenha se apercebido do fato, afinal, foi apenas uma palavra dita entre o meu gozo e o seu gozo, num sexo necessário aos dois e pelos dois. Foi exatamente assim: eu me contorcia em êxtase tencionando meus músculos e arranhando suas costas e ele apertava a minha bunda pingando seu suor em meu rosto, quando copiosamente nós dois gozamos e ele disse: “Caralho Beth… Caralho…”. A muriçoca ainda continua sua lida em meus ouvidos e eu me questiono porque diabos o Paulo nem se atina com ela. Como ele consegue dormir com esse calor e essa maldita muriçoca? Eu o invejo por instantes. Eu: Beth. Não me incomoda o fato de ter sido Beth para ele. Tudo está meio letárgico e eu apenas sigo junto com as horas. Puta que pariu, devem ser já umas cinco horas. Talvez eu durma agora, é sempre assim: faltando meia hora para levantar o sono me toca. Parece que ele se aflige em pensar que não veio até então e resolve me afligir com sua presença já não mais quista. Eu condigo com ele e se caem minhas pálpebras. Durmo ali minha meia hora, intensa, sofrida, quente, zumbida, sonho com nomes e cores, sonho com palavras querendo dizer algo e eu sendo enfiada em um tacho cheio de buchada fervendo. Acordo com o despertador mostrando que o mundo toca o foda-se para a minha falta de sono, ou para o meu sono problemático que anda a odiar-me esses tempos. Paulo levanta assustado. Olha pra mim por entre a penumbra já meio clara do advir das horas de verão, sorri tonto como todas as manhãs só ele consegue, esfrega as mãos nos olhos e tira a remela, estrala todos os ossos das costas e das mãos, sorri de novo com cara de bocó pra mim e faz uma careta, chega perto, me olha nos olhos e me beija na ponta do nariz, belisca minha bochecha, levanta devagar, vai ao banheiro. Escuto o barulho do xixi na água da privada, escuto o som da descarga, escuto a torneira se abrindo e a água caindo na caneca, escuto o barulho das escovas nos dentes freneticamente denso, escuto o cuspe, ele entra de novo me olha, pula em cima de mim, me abraça forte, beija meus seios, lambe meu umbigo e diz: “bom dia”, eu sorrio devagar e digo: “bom dia”, ele diz que tem que chegar cedo no colégio “pois vou ter que organizar um material pra oficina de teatro ainda hoje”, ele se levanta, se veste, me beija de novo, eu faço cara de dengo, ele se despede: “inté senhora moça… qualquer coisa me liga” e se vai embora. Eu ouço o som dos seus passos na sala, a porta se abrindo e se fechando. Isso é Paulo. E que coisa absurda pensar que esse ser que fez tudo isso é Paulo. Paulo nesse exato momento quer dizer isso tudo que eu senti. Isso é Paulo. Mas Paulo é também, além disso, outras coisas: é Leminski, é cerveja barata, é história sem fim, é piada sem graça, é filosofia barata, é desejo de corpo, é um puta tesão, é uma puta tensão, é um fim sem precedentes, é um acaso, é um destino, é um asco, é uma sina, é Paulo. Aí fico só eu novamente, como a noite inteira. A noite estava quente, o dia continua e eu estou meio angustiada. Faço o meu proceder: levanto, vou ao banheiro e cago, ligo o chuveiro e me banho, escovo os meus dentes, olho o espelho e vejo um recado feito em batom de uva com a letra de Paulo: “mão e luva”, eu sorrio leve, vou até a cozinha, faço café, acendo um cigarro, como um pedaço de pão, bebo o café, volto pro quarto, visto uma calcinha, uma saia, uma blusa, calço um tênis e vou pra redação. Faz calor ainda ou talvez mais. As minhas olheiras parecem um poço, de petróleo agora. Beth. Ele me chamou de Beth ontem a noite, em meio ao nosso gozo, em meio ao nosso suor. Se eu levasse a sério Freud como ele leva diria que foi um ato falho: Beth, a grande encarnação do prazer reprimido e posto pra fora num desligar da consciência. Mas não sei, pode ser apenas um lapso. Freudianamente pode ser que Beth seja prazer e naquele momento ele simplesmente tenha dito: prazer, quando gozou comigo. Mas afinal o que um nome quer dizer? Eu continuo sendo… peraí… sendo… eu continuo com o meu nome mesmo, é… continuo… Que estranho, não lembro do meu nome. Será o calor? Será esse ônibus que não vem? Será que meu nome é Beth e só agora eu entrei em desencontro com o mesmo? Diabos, como eu saio dessa? Meu nome é qualquer coisa que me é, mas, só também e não sempre. Meu ser sou eu e eu tenho um nome, que por acaso esqueci, mas ainda o tenho, ele está aí em algum lugar. Em mim mesma talvez. Eu podia olhar os meus documentos e ver se me chamo Beth mesmo, ou perguntar pra alguém na redação, mas prefiro não arriscar. Se eu me chamar Beth realmente não sei se vou gostar. Será que isso condiz comigo? Será que alguém me vê assim: acorda, caga, banha, escova, sorri, faz, acende, come, bebe, veste, calça, sai: Beth? Eu coube Paulo numa rotina, mas não sei se caibo em algum ser assim com esse nome: Beth. Tenho a impressão de que não me chamo Beth, mas não posso afirmar tal. É confuso. Será que alguém cabe em algum nome? Ou nós sempre somos para além de nossos nomes? Um nome é uma palavra, uma palavra é uma conjunção de silabas que formam sentido, uma sílaba é feita de letras, uma letra representa um som, um som que quando junto a outros sons forma uma idéia: um simples “hum…” já diz mais do que se é possível imaginar, uma entonação diferente muda tudo, uma figura de linguagem e aí já era, tudo alterado. Beth. Seria de Elisabete, Lisabete, Elizabeth, Bethânia ou de Beth realmente? Não importa mesmo, cada um desses nomes é apenas uma figura de linguagem, um signo para o som do meu ser. O significado fica para além dele mesmo, fica para além de mim. Fica para quem se arriscar ver em calcinha rosa, saia vermelha, blusa branca, tênis preto, meias brancas, pele morena, cabelo vermelho: Beth e sua metafísica nominal. Mas não é Beth. Não pode ser, nunca fui Beth, não me recordo disso, não consigo me lembrar disso, mas também não consigo me lembrar do comum, do acostumado, do porto seguro dos nomes, do meu nome. Entro no ônibus. No primeiro outdoor aparece: Lojas Marisa. Será Marisa? Alguém fala ao meu lado: “pois é, e Carla não deu pra trás?”. Carla? Não… O melhor é continuar assim mesmo, sem saber meu nome, uma hora me chamam e eu descubro. Só espero que não seja tão terrível a descoberta de que é algo pior do que Beth. Não que Beth seja um nome feio ou coisa parecida, mas é que meu ser não está cabendo nele e se o for realmente, estou precisando de cuidados médicos, pois pra mim este nome não me assenta. Mas o que afinal se assenta em um nome? Uma palavra cabe algo? Provavelmente cabe, pois senão eu não estaria conjeturando tantas elucubrações por meio de palavras. Creio que o que sobra é só aproximações mesmo, tudo não consegue ser dito por meio destas santas. Tudo se aproxima. Meu nome é só um pequeno refúgio para mim e para os outros que insistem em se comunicar. E seriamente penso que Platão é idiota. Onde estará essa Beth no mundo das idéias? Algumas noites sem sono e basta pra mandar ele pro saco, não tem luz nenhuma. Só tenho eu, neurótica compulsiva a não lembrar meu nome. A minha palavra. Desço do ônibus, caminho até a redação, subo as escadas, pego café, deixo a minha bolsa na cadeira, vou até a área de fumantes, fumo, sento de frente ao computador, o ligo, entro na Internet e digito alguns comandos e descubro: “Elisabete, Elisabeth, Elizabete, Elizabeth: Significa consagrada a Deus e indica uma pessoa extremamente ativa, que, graças à sua persistência e à sua força de vontade, sempre alcança os objetivos a que se propõe.Uma de suas virtudes é a capacidade de planejar tudo com muito cuidado”. Fonte: Mulher Virtual. Putz, que merda, de fato eu não posso ser Beth. A Deus? Com essa maiúscula ainda por cima? Putz, putz, putz… Como eu faço pra me aliviar e lembrar que isso não sou eu, porque se for eu vou tentar um processo para mudança de nome. Invento que sou transexual e que me conhecem por Jorjão e que devo mudar meu nome pra isso, prefiro Jorjão a Beth, ainda mais um diminutivo de um nome como este. Minha chefe chega e me olha: “Suas olheiras estão cada vez piores, heim Eliane? Anda trabalhando muito, é?”. Eu sorrio sem graça: “hoje eu tava mesmo era sem nome”, “como assim?”, “esquece, esquece que é viagem mesmo…”. Volto ao computador, procuro de novo: “ELIANE – “TALVEZ SEJA DE ORIGEM GRECO-LATINA (HÉLIOS). SOL, SOLAR, DE BELEZA RESPLANDECENTE”. Fonte: Os Nomes. Melhorou um pouco, mas me deu mais calor ainda, provavelmente hoje à noite eu não durmo de novo.
Ônibus maldito. Parece que cada minuto é uma hora nesse maldito ônibus maldito. Coletivo. Se a coletividade for isso, prefiro o individualismo. Se coletividade for esse roçar forçado de bundas, pernas, braços, sovacos e cabelos e esse eterno pisar e ser pisado por pés de todos os tipos, prefiro mil vezes a máxima liberal da potencialidade individual. Aqui nesse coletivo a ordem é: cada um por si e bundas, pernas, braços, sovacos e cabelos para todos.
Paradoxal. O coletivo lotado é paradoxal. Cada um quer apenas ver o seu lado e salvar o mínimo que seja dos seus míseros trinta centímetros de campo de ação. O pior é quando o sujeito, cônscio plenamente da luta selvática por seu espaço único, avidamente desejoso de ter para si mais que trinta centímetros de campo e ação e poder repousar a planta de seus pés livremente no chão do ônibus, solta, às vezes lépido e em outras mais, tenso e confuso, um gás qualquer de suas entranhas. Uma arma letal nesta intensa luta territorial dentro do ônibus lotado.
Quinze para as oito. Ainda faltam pelo menos mais vinte quilômetros até a minha parada. Pela atmosfera do trânsito que circunda o ônibus, a velocidade média do fluxo veicular é de dois postes por minuto. Meu Deus, dois postes por minuto, beirando o um e meio. A missão de tentar chegar no horário do trabalho é em vão. A primeira batalha perdida.
Alguém puxou a corda, fez o sinal para o ônibus parar. a parada está a apenas cinco postes de onde o sujeito puxou a corda. Vê-se o ar tenso do cara. Cinco postes, um minuto para cada dois postes, dois minutos e meio para descer. O cara não agüenta. Está quente, está seco, como já é fato nesse planalto central brasileiro pelos idos de abril. O sujeito não agüenta, pede tréguas, bate freneticamente na parte de cima da porta do ônibus e assovia para o motorista abrir logo a porta. O motorista, como bom general desta insana batalha de todos contra todos e do alto de seu sadismo, finge não ouvir. O cara berra mais: “Pô, abre aí motorista!!”. O motorista, depois de fingir não escutar os cinco gritos do cara, berra lá da frente: “Só posso abrir na parada!!”. Sua pouca, mais ainda, autoridade, faz o cara se calar, rendido, desarmado, não pode fazer nada. Só espera impaciente, xinga baixo, fala “que absurdo”.
Ninguém se esquenta muito com o cara. Afinal, essa é a luta dele para sair do ônibus. No fundo, todos sentem um pouco de inveja do cara por ele estar descendo logo, de estar se livrando do campo de batalhas do ônibus, ainda mais que agora, para os que estão de pé, uma nova batalha surge. Agora a busca é por conquistar o espaço que o sujeito que desceu deixou “livre”. É a árdua disputa por uma mísera parcela territorial que garanta o mínimo do espaço vital ratzeriano dentro do ônibus.
Olho para o lado e vejo que posso ter uma chance, é só eu conseguir tirar o meu pé de baixo das sacolas da moça ao lado, passar pela bunda avantajada do sujeito atrás de mim, segurar firme no apoio do ônibus e impulsionar meu corpo contra o cara que está dormindo em pé ao lado da porta. Meu território vai ser conquistado. Olho pra trás e vejo que um cara lá do fundo pensa o mesmo. Eu o olho no olho. Ele me encara com ar desafiador. Que vença o melhor. E esse vou ser eu com certeza. Não posso pensar na derrota. Mas é claro que, como experiente perdedor que sou, já vislumbro que, caso a missão não seja bem sucedida, posso tentar ainda ficar pelo menos no canto direito da porta, ali só tem um estudante meio bocó que eu posso me impor tranqüilamente e deixá-lo esmagado contra a tiazinha que não para de falar com a outra que está sentada.
No três eu vou. Um, dois… Merda, tenho que ir logo o meu adversário já começou o seu percurso. Me livrei das sacolas, passei a bunda gigante, estou quase lá, é só jogar o meu corpo pra frente e pedir desculpas e… Merda! De onde surgir essa tiazinha? Caracas, fomos vencidos, nós dois por uma tiazinha! Agora ficou ainda pior estou de cara, com o sujeito. Ambos com o olhar cúmplice de exímios perdedores. E o pior é que agora, ao invés de ter uma sacola em cima dos pés e uma bunda gigante me atacando, estou completamente torto, apoiado unicamente em um pé, enquanto o outro tenta não roçar nas coxas da moça ao lado, afinal, tomar um tapa no ônibus lotada de manhã cedo é demais para um perdedor só.
Aflição. Quentura. Ar seco. Uma gota de suor corre lépida e fagueira em minhas costas e eu sinto um pequeno arrepio. A questão é se concentrar. O meu adversário e agora irmão de desgraça percebe o meu plano B e o executa exemplarmente. Nesse momento eu não o vejo mais como meu adversário, agora eu queria cumprimentá-lo, ele é um como eu. Que teve o apreço dos céus de lhe dar a oportunidade e a capacidade de conquistar um pouco mais de espaço nesse coletivo lotado.
Se eu acreditasse em Deus poderia até rezar por mais espaço, eu até tento, mas meu espírito cristão cristalizado culturalmente em meus atos policialiscos mentais não me deixa orar para algo em que eu não acredito. Mais um paradoxo dentro do coletivo: não acredito em Deus, mas sei que sou cristão.
Não sei se pela minha franqueza, ou pela minha fraqueza, de não ter rezado, Deus me achou um cara bacana e providenciou o meu momento de paz. Um cara que estava do meu lado dá o sinal. Eu fico tenso, daqui há pouco eu devo estar em paz e com os dois pés no chão do ônibus. Espero, agora realmente o ônibus parece ir a um poste e meio por minuto. Tudo lento, tudo parado. Parece um desses filmes experimentais europeus que eu não entendo nada e digo no final que achei a fotografia muito bonita. Tudo em outro modus operandi.
Enfim, o cara desce e leva consigo mais duas pessoas. São três a menos agora. O fundo do ônibus fica em polvorosa, é uma exasperação pela tranqüilidade que pode vir agora. Eu coloco os meus pés calmamente no chão e olho pela janela. O dia ficou até mais bonito. Passamos o primeiro semáforo que engaveta todo o trânsito, só faltam mais três pela frente. Lá fora uma barriguda explode em rosa e contrasta com o azul mais que azul do céu. Parece que uma poesia ainda cabe mesmo neste campo de batalhas móvel.
Olho para as pessoas que sentam no banco à minha frente. Um cara dorme e baba com fones de ouvido. Acho que ele escuta algum rap. Do lado dele há uma moça. Ela lê alguma coisa. Sempre que posso, tento ler o que as pessoas estão lendo nos ônibus, normalmente é a Bíblia, algum livro religioso, tipo “Ele veio para libertar os cativos”, alguma coisa sobre concursos públicos ou então “O código da Vinci”.
Já li capítulos inteiros sentado ao lado de outras pessoas no ônibus, até partes inteiras da Bíblia. Gosto mais do Antigo Testamento, tem mais cara de gente, parece mais com seres humanos falando, tem um ar de fábula maior, tem um gosto de lenda. O Novo Testamento é mais poético, mas também, mais piegas.
Olhei de novo o que ela estava lendo, torcendo para que, se fosse a Bíblia, pelo menos não estivesse em Mateus. O ônibus estava lento, dava para ver calmamente o que ela lia. Eu tinha acabado de consertar a minha miopia mais uma vez e estava com olhos de lince com minhas novas lentes. Demorei para me concentrar no que ela lia. Por fim, consegui:
“Sabe, Johann, disse Hemingway, eu também não escapo de suas eternas acusações. Em vez de ler meus livros, escrevem livros sobre mim. Parece que eu não gostava de minhas mulheres. Que não me ocupei suficientemente de meu filho. Que quebrei a cara de um crítico. Que fui pouco sincero. Que fui orgulhoso. Que fui macho. Que me vangloriei de duzentos e trinta ferimentos de guerra quando tive apenas duzentos e seis. Que me masturbei. Que fui mau para minha mãe.
– O que você quer é a imortalidade, disse Goethe. A imortalidade é um eterno processo.”
Em algum momento da minha vida aquelas palavras eu já havia lido. Certo que não na Bíblia. Imortalidade não se fala assim, com esse tom sério e possível, é sempre algo por vir, por se ter, por se querer e ao lado de Deus. Fora que, Hemingway e Goethe, ao que consta em minha parca lembrança do catecismo que fiz, não foram personagens bíblicos. Mas, onde eu teria lido aquelas palavras antes?
Pensei em perguntar para a moça o que ela lia. O nome do livro, quem escreveu… Sei lá, qualquer dica para que o fantasma de uma memória deixasse de ser fantasma e ganhasse os contornos de uma idéia certa. De algo que não está disperso em seu ser.
Desisti rapidamente da idéia. Não quis atrapalhá-la em sua atividade. Afinal, ler é uma atividade como outra qualquer e deve ser respeitada.
Li mais alguns parágrafos tentando descobrir o que era. Afinal, um diálogo entre Hemingway e Goethe é algo que não está em qualquer livro, mas em algum muito específico e do qual, infelizmente, eu não conseguia recordar. Talvez pudesse ser Sartre. Hum, não. Sartre não teria tido uma idéia dessas, creio que ele não comungaria assim com um encontro entre o romantismo e a aspereza. Talvez alguém aqui do Brasil? Não, isso não tem cara de literatura tropical. Quem sabe o velho safado? Não. Bukowski não teria saco para falar sobre a imortalidade e se houvesse menção à Hemingway deveria ser para meter o malho.
Nossa. Agora sim, me atinei. Imortalidade. é “A imortalidade”. Milan Kundera. Boa leitura, heim moça? Difícil isso, ver alguém ler um romance desse tipo num ônibus. Eu sei que eu leio e conheço pelos menos umas seis pessoas que fazem o mesmo, mas eu nunca as vi fazer, só sei que elas fazem por me dizerem que fazem e saber que elas realmente leram muitos livros. Muito interessante isso, uma moça lendo Milan Kundera num coletivo lotado. Será que ela faz Letras? Não sei porque, mas sempre que alguém fala de Kundera, penso que essa pessoa faz, fez ou quis fazer Letras.
Não, acho que não. É melhor retirar os amálgamas dos estereótipos possíveis e só acompanhar a leitura com a moça. Será que ela percebe que eu leio o livro junto com ela? Não, acho que não. Normalmente as pessoas se incomodam com o ato de alguém ler algo que elas estão lendo ao mesmo tempo e meio que às escondidas. Parece que o ato de ler é algo sagrado e sacramentado pelos auspícios da solidão. Talvez solidão não, mas sim individualidade. Algo para si. Guardado a si e incorporado a si. O desconforto quando pegamos alguém lendo o que estamos lendo deve se dar no momento em que pensamos que outra pessoa pode estar discordando de você naquele seu momento tão único. Afinal, alguém falar outra posição que a sua sobre um livro no momento após a leitura ou mesmo anterior a esta, é tranqüilo, difícil é pensar que no mesmo lapso de segundo que você lê algo, alguém também o lê e pode estar em completo desalinho com o seu pensamento. De fato, isto pode incomodar, tira um pouco a magia do ato de leitura. Fora o fato da intimidação que ocorre quando você quer mudar a página e não sabe se a pessoa já terminou ou não. E como o ato de leitura da outra pessoa é clandestino, ela também não tem coragem de falar “espera um pouco, só falta esse último parágrafo”.
Sei que pode ser desconfortável ter alguém lendo o que você está lendo ao mesmo tempo e de canto de olho. Mas admito, eu o faço (em verdade, é quase um vício).
E lá estava a moça lendo seu Kundera e eu tentando acompanhá-la. Árdua tarefa posto que o ônibus já começa a andar numa velocidade média de dois postes por trinta segundos. O ônibus esvaziava conforme aumentava a velocidade do mesmo e bancos começavam a ser desocupados. Eu ficava tenso novamente por saber que em algum momento um banco próximo a mim ficaria livre – afinal, em meio a uma batalha territorial móvel, haver um lugar para se sentar e não se sentar é um desrespeito às regras clássicas da guerra – ou que a moça fosse descer na próxima parada.
Tempo, tudo é uma questão de tempo. Se eu pudesse ter tido mais tempo para ler teria lido mais, talvez, por isso, eu fique mendigando letras em bancos de ônibus.
A minha viagem vai terminar, na próxima parada eu desço. Puxei a cordinha. Voltei a ler novamente o máximo que eu pude, queria terminar pelo menos aquele pequeno capítulo. Se eu não estivesse atrasado desceria uma parada depois da minha. Terminei, consegui ler até o fim do capítulo. Pelo menos uma vitória nessa manhã torpe. Dei de costas para a moça, parei em frente a porta do ônibus e momentos antes de a porta se abrir atinei-me de olhar o rosto da moça que lia Kundera. Virei o rosto e olhei a moça, ela levantou os olhos e me disse: “Bom livro esse, não?”.
Meio em estado de choque eu desci do ônibus e não consegui falar nada à moça. No máximo eu arregalei um pouco os olhos e dei um meio sorriso de canto de boca, nem amarelo ao menos. Foi tão estranho o comentário da moça para a minha cabeça mareada pela batalha do ônibus, pelos vacilos da memória, que eu não me atinei muito no que eu estava fazendo e sentei na parada de ônibus. Fiquei um tempo pensando e cheguei a uma conclusão banal, mas que me tocou por pelo menos dois segundos antes de me levantar e correr para não me atrasar ainda mais para o trabalho: meu espanto se deu não pelo fato de que não se lê nesse nosso mundo de hoje, mas sim, pelo fato de que a moça, mesmo não me conhecendo quis compartilhar comigo um momento único incrustado em sua leitura: “Bom livro esse, não?”.
Talvez, se a gente lesse mais, esse mero comentário não me fosse tão estranho, pois seria como um “bom dia”. Talvez, se lêssemos nos ônibus, nas paradas de ônibus, nas filas de banco e supermercados, nos banheiros, antes de dormir ou mesmo nos intervalos comerciais da TV, seria tão normal o comentário que até veríamos crianças e adolescentes lendo nas escolas e comentando suas experiências uns com os outros como se fala do corpo da colega de classe.
Talvez houvesse até mesmo um ar mais bonito uma manhã difícil.
Quando a natureza possibilitou as condições ambientais e biológicas necessárias para que a pressão evolutiva permitisse o surgimento de espécies homínidas com uma massa encefálica tal, uma postura tal, uma habilidade tal necessárias à existência de um sistema simbólico e lingüístico que se perpetuasse de geração em geração sem a necessidade da intervenção da manutenção da espécie por meio da perpetuação de certos genes, ela – a natureza – conseguiu perceber-se. Foi esse o sentido da natureza criar o ser humano: contemplar-se. Um projeto narciso e suicida. A contemplação narcisa não está completa sem o mergulho infinito em busca de si. A partir da contemplação da sua própria imagem busca-se a integridade, sua manutenção plena, que só pode ser conseguida através do suicídio. O ser humano fica assim, pois, o espelho e a arma.
O sentido do ser humano baseia-se, assim, em sentir antes de tudo e findar após. Sentir a si e (quase que) a sua criadora: a natureza (ou quase que ele mesmo). A cultura é um mero produto para a natureza se perceber para além de si mesma e manter sua integridade. O ser humano é a natureza transcendendo a si própria. A cognição, a racionalidade, são elementos não estanques da sensibilidade, são processos para a percepção. Dizer que o mundo não é natural e que a cultura é que comanda a realidade é uma contradição, pois que a cultura é natureza.
O ser humano não controla a natureza. Nunca controlou. O ser humano por ser apenas um duodécimo da natureza, não tem essa potência. A vontade humana de controlar o seu resto é apenas a inveja da potência que não possui. É um detalhe ainda não tido de que ao controlar a natureza, controla-se a si mesmo. A vontade humana ainda não encontrou o anseio da natureza, não encontrou a lógica de que é refém da natureza.
Desde os assim chamados estágios de barbaridade até os tão louvados estágios de civilização, o ser humano não fez mais do que sua missão: admirar e finalizar. Não digo destruir, pois que destruir demanda uma intencionalidade que não cabe ao ser humano – apenas uma marionete da natureza –, o projeto é finalizar. Dar fim à natureza, numa assertiva teleológica mesmo: contemplar-se plenamente em sua integridade, saindo da existência.
É sempre assim: estudar, analisar, metaforizar, florear, desvendar, construir, transformar, erigir, até que a natureza toda esteja contemplada e então, findada. Não existir. Pode ser que alguém identifique alguma deidade qualquer, mas o projeto da natureza deve ser bem esse mesmo.
Quem vem à cidade grande, aos grandes centros urbanos pela primeira vez, se depara com um labirinto estático de concreto. Espanta-se mesmo não aparentando. São gigantes de vidro e luz, infinidade de vias, amontoados de homens e mulheres sobrepostos a concreto e metal, fios e mais fios por onde escorre o sangue elétrico e informativo que mantém vivos os homens e mulheres sobrepujados desse labirinto, carros e mais carros cortando o córtex asfáltico da cidade.
Quem chega à primeira vez vê que a cidade é labiríntica e estática, mas de uma estaticidade diferente, ela é caótica, é confusa, é agitada. Um labirinto estático onde a vida ferve. Onde tudo acontece ao mesmo tempo. Onde, aprisionado a concreto, metal, fios, vidros, asfalto e luz o mundo não pára. Tudo se combina em labiríntica estaticidade de infinitas possibilidades. Os mundos são sobrepostos e todos são possíveis.
Quem vem pela primeira vez se assusta e se encanta. São todas as possibilidades, e tantas…
Num contexto próximo a esse, seu José chega com a família pela primeira vez a uma cidade grande. Ele, sua esposa Adelina e seus cinco filhos – Wanderley, Waldison, Walton, Waldênia e Waldenice – pisam todos juntos nos solos dessa Brasília, vindos de algum lugar entre a bissetriz de norte e leste, dos interiores desses brasis possíveis, e perdem juntos suas virginais e castas impossibilidades de possibilidades.
Mundos e mais mundos se sobrepõem a suas faces logo na rodoviária. Após rodovias de pó ou piche chegam juntam a esse universo insondado de caras e mais caras visíveis uma única vez na vida e nunca mais –- embora sempre exista a vastidão de possibilidades do reencontro.
Seu José e sua família chegam em Brasília a convite de seu irmão Jessé, que há muito debandara de sua terra natal – aquela vila pequena onde as possibilidades se amofinavam em continuar ou continuar, de um jeito ou do mesmo jeito – e se fizera nesta “capital da República Federativa”, como ainda gosta de pronunciar, deixando para trás seis irmãos dos dez que ainda estavam vivos em seus marasmos bucólicos de impossibilidades e ajudou a erguer a infinidade de mundos que viria a ser (e é) Brasília.
Jessé era homem forte, desses que não se fabricam mais, movido a suor derramado e pouco sono. Na época do nascimento de Brasília, se fez na construção civil e até hoje, com seus cinqüenta e oito anos, se dedica a erguer concreto, dando mais carne ao mundo em que vive, fabricando mais mundos.
Há sete anos largara a cachaça – hábito que cultivava desde os quinze – e se dedicava à vida espiritual em uma comunidade evangélica que o acolhera de braços abertos e lhe dava o conforto espiritual necessário a uma vida de labor. Vivia com sua esposa Maria e seus três filhos numa casa concedida por seu enaltecido governador na expansão de uma cidade satélite do Distrito Federal, para não dizer favela.
Enquanto isso seu irmão José morava com sua família como caseiro de uma fazenda de um figurão da capital no interior da Bahia. Casinha de tapera simples e pouco confortável. Há dois meses havia sido mandado embora de sua choupana, uma grande empresa de frangos havia comprado a fazenda. José desesperou-se. A vila mais próxima não tinha condições de abrigar um indivíduo que nada possuía de tão extraordinário que pudesse alterar a estaticidade da cidadela. Só tinha contato com uma pessoa da família: Jessé, que de quando em quando lhe escrevia uma carta. Na última dissera: “Deus quer que você compartilhe conosco as bênçãos que temos conseguido aqui. Asseguro que moradia nosso homem garante…”.
O “homem’ a quem Jessé se referia era o governador. Sujeito totalmente deslocado no tempo, que possuía um discurso antenado com os mais pobres e servia-lhes de ”pai-patrão”, numa alusão clara às épocas de coronelismo que por aqui, todos sabem, longe está de acabar. Dava lotes, dava leite, dava pão e só disfarçava ao dar esmola: dava “ajuda”.
José viera. Juntara os poucos tostões que seu antigo chefe lhe concedera como prova de sua boa conduta (e para um sono cristão mais tranqüilo é claro) com algumas economias que possuía com o intuito de adquirir uma mula nova, e comprara passagens para Brasília. Durante a viagem somente algumas petas duras que uma amiga de Adelina compreensivelmente lhe concedera era o que lhes servia para forrar o estômago (a única possibilidade). Na cabeça de José giravam confusamente o medo e o dilúvio de possibilidades contido nas palavras “capital da República Federativa”, como seu irmão gostava de pronunciar.
Ao desembarcar na rodoviária José se espantara. Espantara-se tanto, estava com tanto medo, que ao mesmo tempo se maravilhava, se inebriava com aquela confusão de gente correndo de um lado para o outro, gritando, esbarrando nos outros…
José não percebia que a confusão e a correria que acontecia na rodoviária não era um fato normal. Ele olhava todos aqueles homens de azul e a polícia se confrontando e não entendia o porquê da briga. Havia uma infinidade de possibilidades para o que acontecia, eram tantas e tais que José não podia ver que ali ocorria uma luta por causa de uma greve. E que os homens de azul eram rodoviários lutando por condições mais humanas de vida. E que os polícias naquele instante eram extensão dos braços do “nosso homem” do qual lhe falara seu irmão, e que estavam ali também tentando garantir suas condições humanas de vida, nem que para isso tivessem de matar outros seres humanos.
José não compreendia. Sua euforia inicial fora abafada por uma agoniante sensação de descontrole. Os concretos da rodoviária se fechavam em trincheiras e complicavam mais o labirinto ao qual Deus queria que José compartilhasse. José se desesperava. Queria sair dali, mas não via possibilidade alguma – quem diria?! Ele está no mundo das possibilidades!
Mais confusão. Ônibus queimado, vidros quebrados, cassetetes, cavalos, sirenes, fumaça, água… De repente, um tiro. Mais um, outro e muitos outros.
No meio de um desses tiros o alvo fora José. Um tiro em cheio no meio da testa, fulminante. Mais uma bala de borracha que matava outro inocente, mais uma viúva, mais cinco órfãos de pai, mais um que se vai em vão (“e agora José?!”. Mais alguns indivíduos a serem acolhidos por um “pai-patrão” qualquer, perdidos no mundo de vastidão esperançante.
José morreu. Não morreu sereno. Morreu tenso, confuso. Tentando proteger sua família, tentando proteger a si, tentando sobreviver. Querendo paz. Querendo o vasto horizonte de opções que ele tanto almejava na “capital da República Federativa”. José morreu com o medo em seu coração, cravado de dúvidas e de possibilidades.
Agora eram mais seis. Mais seis seres humanos que teriam de lutar por suas condições humanas de vida em meio a um labirinto. Seis seres que a qualquer momento poderiam voltar à animalidade. Perdidos nas paredes de concreto do labirinto. E não só mais seis, mas sim dezenas, centenas (todos os dias chegam aos montes), milhares quem sabe! Adentrando no mundo dos mundos sobrepostos, na inércia veloz das vias desse labirinto. Aptos a escutar “homens” quais deuses e imersos numa vasta bruma de possibilidades e dúvidas infindas.
“Pastor, eu andava vazia, com essa sensação de que me faltava alguma coisa. Andava com esse pessoal do rock que bebia, fumava droga. Eu mesma nunca usei essas coisas, mas bebia bebida alcoólica, com calmante, mas droga eu nunca usei. Mas era tudo vazio, sabe pastor? Eu não tinha amigos de verdade, eu não tinha nada de verdade, me faltava alguma coisa…”
E foi aí que surgiram os rappers levando um peso denso, carregado de swing, levando a vida para o canto mais ermo do que fosse carregar qualquer coisa idiota, o peso deles era suave. Depois é que a coisa ficou difícil de entender, ou fácil em demasia também, foi quando os punks começaram a tocar um forró e os skatistas dançaram animadamente. Talvez o errado ali fosse eu e essa minha conduta mendicante de amigos, mas eu vi ali, naquele ínterim, uma coisa absurdamente interessante, mas creio agora que a coisa ficou realmente maluca mesmo quando aquele ser androgenamente mulher foi constatado. Não havia culhões, ou só os havia. Só sei que rolou um comentário sobre o hip-hop latino-americano feito por mulheres e tinha também aquele cara em mangas de camisa, bermuda justa e um capote a la Gogol, num calor de 28ºC. Quem sabe ele tinha realmente uma gripe em vista, mas o mais certo era que sua mãe o obrigara a levar o capote para um passeio e ele – o capote – devia pesar uns três quilos pelo menos.
Mas era certo também que a caracu quente foi uma coisa à parte e os cigarros um atrás do outro prejudicaram um pouco a fala e o diálogo, mas eu bebi e fumei ainda. Tinha aquela crise de relacionamento rolando também, o cara com cara de bravo, a mina com cara de tacho, uma bunda que passou coberta por um pequeno pedaço de pano preto e a quase mão na cara do cara e mais cara de tacho depois. Aí a hippie sentou ao meu lado e perguntou “vai querer?” e eu respondi “por amor ou por besteira?”, mas ela me disse que a carruagem já virava abóbora e falou que não era ela e sim ele.
Os dois carros com o som às alturas, mandando ver no rap, pareciam discos-voadores em formato de GTI. E o pior é que deveria ter entre quinze a vinte extra-terrestres no meio da gente. Mas foi doido. A parada tava muito louca mesmo. E o cara pediu para eu ajudá-lo a mijar porque ele tinha medo do escuro, aí eu falei que urina não era o meu esquema, mas ele levou numa boa e conseguiu que uma garota colorida o levasse até a árvore mais próxima.
Tinha também aquelas prostitutas muito gente boa tentando descolar um troco e o moleque de rua cheirando cola do meu lado e dizendo qualquer coisa sobre “a coisa”. Não peguei a parada, mas dei uma badagada no lance e entendi depois o que ele tava querendo dizer, porque “a coisa” tava lá mesmo, paradona e rindo da gente. O foda mesmo eram os PMs tirando uma chinfra e rodando que nem um bando de pombos movidos pela inércia do bigodudo que ia na frente. Mas esse nem parecia pombo não, lembrava mais uma morsa. Mas tava divertida mesmo a parada.
A harmonia tava massa, eu dizia z e o pessoal sacava todas as outras letras do alfabeto, só quem captou o z mesmo foi aquela garota que veio de bicicleta e queria dar uma de qualquer forma na noite. Eu disse que ela era muito doida e que a coca-cola dela tava quente, mas ela “e o pior é que nem era coca-cola”, mas eu “tudo bem, o que vale é o calor mesmo”.
Quando os punks começaram com o Bezerra da Silva é que a coisa pegou fogo mesmo, todo mundo levantou e começou a seguir em marcha rumo ao pagodão que tava rolando na 203. Eu peguei aquele pedaço de pau que tava jogado no chão, tirei a camisa e fiz nosso porta-estandarte. Fui no guidão da bicicleta da garota segurando o porta-estandarte e o pessoal entremeava algumas loas e lundus entre um Moreira e um Bezerra, porque ao grupo já havia se misturado, também, o pessoal do maracatu.
Pois é, quando a gente chegou na 203, aquele bloco coesamente incoerente, parecia um baile de máscaras de 1930. A gente chegou botando fogo no pagode e todos juntos cantando em coro:
Angústia, solidão
Um triste adeus em cada mão
Lá vai meu bloco vai
Só desse jeito é que ele sai
Na frente sigo eu
Levo o estandarte de um amor
Do amor que se perdeu num carnaval
Lá vai meu bloco e lá vou eu também
Mais uma vez sem ter ninguém
No sábado, domingo, segunda
E terça-feira…
E quarta-feira vem o ano inteiro
É sempre assim
Por isso quando eu passar
Batam palmas pra mim…
Foi lindo. O pagode não parou, todo mundo sambou e rolou aquele beijo inesquecível entre o vocalista do grupo de rap e a punk de cabelo rosa bem no meio da rua. E os aplausos e a caracu quente sendo jogada em cima de todo mundo. E a feminista dançando o funk, e o pagodeiro cantando o hino da internacional comunista junto com aquelas vegetarianas. Foi lindo. Realmente foi lindo. Foi o bloco da solidão acompanhada mais belo que eu já vi na minha vida.
Não fiquei com ninguém, nem teve tempo, a vida precisava ser vivida daquela intensidade, sem papas na língua, sem porém, portanto, nem talvez. E no fim eu disse mesmo pro pessoal que tava fumando um: “passe livre já, passe livre já!!!!”.
“Aí pastor, eu tava me sentindo amarrada mesmo, uma coisa estranha, esse pessoal do rock parecia que me sugava toda força, aquela coisa de fumar droga mesmo, sabe? Eu não tinha mais ânimo pra nada, queria mesmo era morrer, tomei até q-boa, sabe pastor? Mas quando essa minha prima me chamou pra conhecer a igreja dela, tudo começou a mudar na minha vida…”
Uma história sempre começa de um ponto. A não ser a própria História que não se pode principiar, mas que invariavelmente teve um início. Essa história que ele começava, aparentemente não havia começado. Poderia ter sido uma frase dita sem pensar, ou um olhar que cativasse o fragmento de um segundo qualquer, mas até o momento não era possível identificar o começo, o alfa dessa história.
Havia ela e havia ele. Um bom começo já, mas não “o” começo. Poderia ter sido no dia do festejo de uma criança qualquer, mas não. Não teria se principiado algo naquele dia. Ela ainda deveria estar imiscuída que fosse com sua vida sem ele e ele era só uma completude despretensiosa com alguém bem pequeno.
Quem sabe teria sido no contemplar de uma vida nova e entre algumas cervejas e uma amiga? Mas também não. Aquele dia não merecia tanto sentido para começar algo, aquele dia era algo como um simples dia, desses que não se principia nada.
E o terceiro encontro dos olhares? Haveria algo naquele dia em que a inteligibilidade ficou bem lá atrás? Um pedido de socorro estranho, um convite aceito sem paixão, um encontro surgido às vésperas da madrugada. Teria este conjunto de fatos iniciado a história que se passava nele?
A uma análise mais atenta, talvez pudesse ter sido o início, principalmente pelos fatos ocorridos após o encontro (ou a própria continuação do encontro): o diálogo, o riso, o pensamento, a audição do silêncio, a cama e o sono compartilhado, o enlace de pernas… Mas não, não era aquele o início. Aquela já era uma continuação de algo feito.
Talvez tivesse sido durante o beijo. Um encontro planejado, o desencontro grupal e o pedido providenciado: outro sono compartilhado, o sexo tenso e frustrado, a noite ao lado e a manhã de afago. Mas não era aquele o início ainda. Com certeza não.
Ele lembrou-se então da noite continuada em que o máximo contato foi o pedido: “Posso segurar a sua mão?” e que durara não mais que dez segundos – e ele se lembrava bem que havia sido dez os segundos passados entre o contato sugerido de uma mão sobre outra mão. Nesse dia foi forjado o mito do perigo e não havia chance alguma de querer ver nesse a aurora dessa história. Esse dia já era a própria história se elaborando, se completando, se trançando em vias inesperadas.
O ver-se casual de uma manhã atípica poderia ter tido muita coisa de um primeiro raiar, mas ainda sim ele apenas se silenciava. Vê-la em trajes simples, vestida de verde tinha sido algo muito bom para ele: sabê-la de outro jeito. Mas a ela o fato não havia sido bom e poderia até ter se configurado em experiência traumática. Disso tudo já se pode tecer que essa casualidade não seria o ponto nevrálgico de toda essa história.
Ele se esforçava por tentar lembrar – ou quem sabe sentir – onde estaria o início. Pensou então no último. Só conseguia ver novamente o estado de perturbação plena sentida num misto de corpo falido e álcool nas veias. Muitas coisas ditas e um universo de coisas mais sentidas e caladas. A mudez dos sentimentos consciente, pois que o perigo de desestabilizar o mundo dos outros é um fardo por demais grande para se carregar. Daí ter sido esta última uma noite falada e muda.
A constatação desse último encontro nas palavras ditas por ela, onde a maciez de um passado ainda vivo se fez tão doce, acolhedora e afetuosa, foi tal, que ele acreditou findo o fato supostamente não iniciado – ou pelo menos não encontrado até então – e, ao mirar o passado frente a frente, foi como se o início não pudesse ter sentido algum e foi justamente nesse dia que ele começou sua história.
Ele chegou em casa cansado, um corpo inerte sobre o chão, um som qualquer passando despercebido por seus ouvidos, a cabeça tentando compor uma história que fosse plausível e a revelia plena de um significado possível.
Escreveu um bom tanto nesse dia e viu que realmente era esse o início de sua história: um porvir de sentimentos que se desenrolava só nele, enquanto ela se ia com seu passado – vivo.
E logo ele que era existencialista.
Ela sempre sentia aquilo quando ele se aproximava. Era uma dor aguda no átrio direito e uma angustia profunda no canto das unhas. A dor surgia de uma mistura havida entre o sangue venoso e a aproximação deste que a apagava por inteiro. A angústia era algo como um constante pesar da vida sobre o canto de suas unhas.
A dor amainava fácil se ela pensasse na cor verde, mas a grande questão – posto que era sim uma questão e não um problema, afinal, não existia uma solução, mas sim, ainda outros apontamentos – era a da angústia.
Tal sensação começava bem nas cutículas e ao final apoderava-se de todo o canto de suas unhas e esta região parecia ser orientalmente ligada a qualquer coisa de sua alma. Um canal que fluía tudo que fosse o latejar de uma condição insuportável e insustentável: uma melancolia absurda.
Ele se aproximava devagar, quase a vagar entre o escondido das horas. E cada passo dado era mais um centímetro galgado ao encontro do precipício definitivo encravado no canto de suas unhas.
Às vezes parecia que a angústia supurava a dor do átrio direito, mas fato era que a dor continuava junto à angústia. A intensidade é que era algo diferente. A dor não era insustentável, ela tinha seu quê de possibilidade, a angústia não. A dor era até bem quista, parecia com algumas lembranças da infância, a angústia já lhe remetia algo particular a sua maior-idade e até mesmo à sua pós-maior-idade.
Quando ele chegou, cantaram-lhe parabéns e ela ficou bastante triste. A tristeza até cortou a dor do átrio direito, deu-lhe a máxima contenção de algo já findo. Aí deram-lhe presentes e alegria e ela só a sentir suas unhas.
Quando ele chegou, deu-lhe mais um ano, mais um engodo existencial e ela começou a comer todos os cantos de suas unhas, até que sua angústia foi parar em seu estômago e não demorou a ela se misturar ao sangue venoso e ir completar a dor de seu átrio direito, que já havia passado.
Aí ela pensou em verde e ficou feliz.
Paulo andava querendo falar com Eliane há algum tempo. Queria falar sobre o CD novo que havia comprado. Assim que o comprou, quis que ela conhecesse seu conteúdo, foi algo instantâneo: música boa: Eliane. Neste CD, havia uma música em especial que trazia Eliane até Paulo de uma forma sutil e leve, a letra falava acerca de um sentimento fácil, de uma vontade de tocar o coração bem simples. Talvez, por isso, Paulo receasse aprochegar-se de Eliane e só falar: “olha que CD maravilhoso, escutei e me lembrei de você”. Não que fosse o fim do mundo – pois ele não era uma pessoa tão tímida –, mas sim, porque após a lembrança tida, veio-lhe a mente uma dúvida brutal: por que diabos boa música trazia-lhe Eliane?
Uma investigação minuciosa foi iniciada em sua mente. Repassava todos os rincões possíveis de sua cabeça para saber o que demovia sua memória a pensar em Eliane quando escutava boa música. A primeira constatação foi a de que música era algo extremamente caro a sua pessoa. Lembrou-se de certa vez em que falara que era preferível perder qualquer sentido a perder a audição, não conseguiria viver sem música. Rememorou sua infância em que nada lhe dava prazer tão particular quanto pegar um vinil qualquer de sua mãe ou de seu pai e descobrir que som sairia dele, aventurar-se em conhecer sonoridades possíveis, extasiar-se com o áudio chiado que saía da vitrola. Realmente, escutar música era um de seus grandes quadros do porquê de viver.
Lembrou-se de mais coisas. De como cada momento de sua vida era acompanhado de uma música. Uma eterna trilha sonora compondo-se em torno de seu caminhar. Cantarolar sempre foi para ele mais do que preencher os momentos vazios com uma atividade qualquer. Cantarolar era para ele por pra fora um sentimento tido, uma emoção contida, um pensamento formado. Cantarolar era dizer para si mesmo sua condição momentânea.
Sua vida se fazia assim mesmo: musical. Um dia feliz conseguido: um samba de João Nogueira, uma apreensão incontrolável: um Chico comedido, uma paixão irrefreável: um blues enternecido, um sentido de tristeza: um bolero antigo. Música por música ele passava seu dia, uma após outra, uma levando a outra. Música era seu amor maior, seu grande amor nunca abandonado, nunca desmerecido.
Sempre teve uma mania um tanto diferente. Gostava realmente de escutar música e acreditava que em nada havia de menor no ato de ficar a ouvir um disco. Recusava-se a ver na música um simples elemento coadjuvante de outras atividades, uma simples trilha sonora de uma cervejada – embora, música de qualquer jeito, até mesmo como mera trilha, lhe fosse agradável. Lembrou-se de uma vez em que estava sentado num sábado à noite em sua casa escutando Vicente Celestino e sua mãe irrompera de repente no quarto. Ela o olhou com ar preocupada e perguntou: “você está bem, meu filho?”. Paulo tranqüilamente respondera: “tudo bem mãe, só estou realmente ouvindo a música…”. É certo que desse dia em diante sua mãe o respeitou mais, seria talvez a constatação de autenticidade em sua criação. Ver que seu fruto era uma persona particular.
Paulo recordava-se também de seu ímpeto de ser músico. Sempre tentara lutar contra seus dons e produzir algo que fosso harmônico, melódico, sonoro e aprazível aos ouvidos, mas tudo em vão. Não saía uma nota bem posta, um compasso afirmado, um ritmo cadenciado, nada. Tentou violão, baixo, gaita, até cantar se aventurara, mas qual o quê? Nada. Tentou tanto até que desistiu, não podia ir contra as tendências de seu ser e forçar-se a produzir algum som que possuísse algo de belo.
Contentou-se assim em escutar música e, talvez, sua desistência tenha dado-lhe o impulso de escutar mais e mais, de se apegar ainda mais a esse ar em movimento. Música tornava-se para ele uma das únicas formas de se sentir bem, de se sentir íntegro. Quase um sentido de suicídio. Escutar música seria a possibilidade de continuar sendo um ser unívoco, de ser completo.
Nesse contexto tido da memória até o próprio alicerçar de seu ser, foi que Eliane retornou a sua cabeça. Música boa: Eliane. Era fato que Eliane possuía um excelente gosto musical segundo as pretensiosas definições de Paulo, mas a relação “música boa-Eliane” não se baseava apenas nisso, pois que apreciadores e apreciadoras de boa música haviam aos montes espalhados pela face da Terra. Havia algo além.
Paulo não se recordava de ter ouvido Eliane falar que sua relação com a música era a mesma dele. Eliane gostava de música e pronto. Nada de definições transcendentes da condição humana por meio de um artefato sonoro. Nada de especulações surreais acerca da musicalidade inerente à humanidade. Nada de mais. Apenas uma ouvinte. Paulo tentava lembrar-se então das músicas que mais lhe remetiam a Eliane, mas era tarefa árdua, pois que quase tudo a trazia para ele. Todas as melhores músicas descortinavam-se em Eliane.
Ficou um bom tempo extasiado com a constatação. Recordou-se do CD que queria mostrar para ela, lembrou da letra tão bonita, acenou com a melodia e cantarolou um pouco. Algo diferente percorria sua cabeça naquele momento. Pegou um disco outro – creio que de Maria Creuza –, pôs na vitrola e ficou a contemplar o som durante muito tempo. Absorto. Novamente, Eliane voltava até ele.
Foi estranho conceber o que se passou nele àquele então. Mas, por fim, descobriu o que sempre a trazia junto à música: Eliane era música. Foi assim que Paulo descobriu seu segundo amor. Na mesma hora pegou o CD e foi mostrá-lo para Eliane. O que aconteceria de então em diante, preferia especular por meio de uma música qualquer – sempre surgiria uma em sua cabeça mesmo.
“e o espaço sempre foi visto como o morto, o não dialético…”
Essa história se passa não num tempo, mas num espaço. Passa-se longe de qualquer critério de ontem, hoje e amanhã. Algo em torno de um antitempo. Não se faz conjugando tempos verbais simplesmente (embora como se necessite da gramática para lha escrever não se possa prescindir das palavras e das estruturas). Por isso penso que essa história não se possa ser contada, mas apenas escrita, uma vez que as palavras estão desse modo postas em seus devidos lugares, em seus espaços. Não ficam perdidas em meio ao éter da fala (algo muito mais temporal do que espacial).
Deixo claro que qualquer tentativa de lha situar em um tempo será em vão, posto que a coisa se deu materialmente (e há uma pequena surpresa no final da história para aqueles que gostam tanto assim do tempo). Que me desculpem os historiadores, que me perdoem os físicos, mas a história é essa…
* * *
Há na periferia de um território materialmente imaginário um indivíduo chamado Labarcã.
Labarcã dedica sua vida a estudar o espaço. Suas formas, suas estruturas, seus modos, o seu ser. Estuda-o na busca de sua essência, sem cessar.
Em meio a tantos estudos acerca do espaço Labarcã encanta-se então com sua representação, encanta-se com a sua identificação, encanta-se assim com a cartografia. Observa com apuro as formas de se plotar num plano a realidade, de se projetar e transpor em papel o mundo circundante. Labarcã inicia-se na arte dos mapas. Começa a produzir compulsivamente mapas sobre tudo o que vê: mapas sobre o relevo, mapas sobre as águas, mapas sobre o clima, mapas sobre as cidades, mapas sobre as árvores, mapas sobre os animais… sem se cansar, faz mapas sobre tudo.
Labarcã se apaixona assim por transpor o mundo em imagens e se imiscui ainda mais nessa arte, entende que as representações dependem de suas escalas, da seleção de suas informações, dos tipos de legenda, dos matizes de cores… e em cada um desses ingredientes de produção dos mapas, um novo universo de possibilidades, uma nova gama de meios, um novo cabedal de formas… as combinações são assim infinitas. Labarcã começa então a conjugar informações em seus mapas, relaciona animal com clima e faz uma carta zooclimática, cidade e vegetação e faz um mapa fitourbano… novamente mais mapas, muitos, compulsivamente.
Labarcã mapeia tudo que existia. Labarcã sente a necessidade de criar a mapoteca de todos os mapas do mundo, o lugar em que tudo o que pudesse virar carta estivesse mapeado, estive seguramente representado. O lugar em que todas as variáveis pudessem ser combinadas de todas as formas possíveis e imagináveis (e até o que não pudesse ser mapeado, pois Labarcã faz então mapas sobre os sentimentos, sobre as emoções, sobre o trajeto irregular de um elétron, sobre a expansão do universo, sobre uma idéia, sobre um movimento, sobre os sonhos, sobre a alma, sobre o espírito… sobre tudo o que existisse).
Labarcã observa que cada carta depende da variável de sua representação, Labarcã assimila para si as noções de escala assim. Inicialmente faz um mapa de todo território em que vivia, em escala de representação geral de tudo, uma escala grande por assim dizer. Mas Labarcã não se sente satisfeito. Diminui sua escala e representa mais coisas em sua carta, mais relações, mais informações. Diminui cada vez mais sua escala, representa cada vez mais coisas e relações, mais informações. Labarcã sonha assim com a escala de 1:1, quer refazer todo o mundo num mapa definitivo e começa assim sua empreitada.
Arranja todo o papel que fosse possível e inicia seu projeto audacioso, faz cálculos, projeções, estabelece coordenadas, faz medições. Não pára um segundo, tal tarefa não pode ser feita de qualquer jeito, ele precisa representar o mundo, ele precisa de todo o real referenciado e plotado em carta, na escala do real: um para um.
Labarcã termina seu projeto. Enfim feito o mapa do real em sua realidade. Labarcã contempla assim a cópia perfeita do seu mundo, de seu espaço, de seu lugar. Labarcã vê assim ele mesmo, sentado em frente a seu mapa, em escala real: um para um. Só que ele não entende, está tudo estático, parado. Ele vê seu mapa do tamanho do mundo, mas vê que ele não é o mundo, que há um vão entre o mundo e sua representação, ele fica furioso assim. “Maldito seja esse mapa parco e sem vida!”, grita Labarcã contra sua obra.
Outro plano fabuloso se passa assim em sua mente: criar um mapa que vá além da representação, que seja mais que a imagem do próprio mundo, que vá além do mundo, escolhe então sua escala: um pra um milionésimo. Assim começa: um centímetro em seu mapa seria equivalente a um milionésimo de centímetro no mundo real. E ele relaciona todas as informações com outras mais que possam existir e ele não pára um minuto: cria até um computador para lhe ajudar na tarefa, são cálculos, coordenadas, cores, representações, traços, medições… e ele busca ir além da representação, busca através dela a constatação da essência do espaço, busca traçar até os não-lugares e os vazios, os nadas. Ele não pára.
Mapeia os fluxos, os fixos, as formas, os processos, as funções, e em cada um destes mapeia também seus meta-fluxos, seus meta-fixos, suas meta-formas, seus meta-processos suas meta-funções, e em cada um destes seus para-meta-fluxos, seus para-meta-fixos, suas para-meta-formas, seus para-meta-processos, suas para-meta-funções, e em cada um desses um novo universo de informações, uma nova gama de possibilidades, um novo cabedal de essências. Em cada essência, outra mais e uma nova forma de a representar. E ele não pára, mapeia assim o infinito e todas as suas possibilidades na escala de um para um milionésimo.
Labarcã ao contemplar sua obra vê então plotado em papel toda a dinâmica de seu espaço, todo o seu território e suas possibilidades de acontecimento. Labarcã contempla assim sua nova criação e vê em seu mapa ele mesmo contemplando sua nova criação e vendo em seu mapa sua nova criação…
Labarcã mapeia assim seu próprio mapa, incessantemente. Um moto perpétuo cartográfico.
Labarcã não mais existe. Ele é só ele mesmo representando-se em um mapa maior que o próprio infinito.
Labarcã, não mais existindo, continua assim: eternamente na busca do mapa definitivo e sendo sua própria representação. Seu mapa engoliu ele mesmo e ele não consegue mais sair desse ciclo. Labarcã é então o próprio espaço e seu além.
Labarcã virou o tempo e a sua infinitude se sente até agora.
Qualquer semelhança entre Labarcã e qualquer deus é mera coincidência.
“Não é a loucura que convulsiona o mundo.
É a consciência.”
Malamud
Gabriela olhava um garoto moreno muito lindo que estava sentado sozinho no banco da praça com cinco litros de vinho ao seu lado. O garoto tomava o vinho devagar em goladas muito desesperadas, ele observava as pessoas ao seu redor. Sem pensar, Gabriela seguiu até o garoto.
Gabriel olhava as pessoas ao seu redor até que concentrou sua atenção em uma morena. Ela vinha em sua direção e segurava uma garrafa de vinho de cinco litros. Ela estava muito ébria e cambaleava, mas agia com toda a sensualidade latente a essas morenas que lembram índias. Sentou-se ao seu lado, passado alguns minutos, ele disse:
– Olha aquele tipo ali.
– O que tem ele?
– Nunca parou para observar o comportamento dos outros, como eles são? o que sentem de verdade?
– Às vezes, o que você diz dele?
– Na minha opinião não está se divertindo, só finge. Presta atenção no modo como dança. É só pose, na verdade ele não quer fazer nada disso. Só finge não se controlar quando está embriagado. É daquele tipo: “Vô bebê todas e num tô nem aí”. Amanhã ele vai estar fingindo que sua ressaca é a maior do mundo e que não se lembra de nada. O pior é que toda vez ele faz isso. E todos que estão ao seu redor fingem acreditar e gostar dele.
– Pior que é.
– Arrisca alguém aí. Vai, é divertido.
– Aquela ali, a de vestido hippie.
– Sei, tipo comum aquela, não?
– Com certeza. Na verdade ela é uma patricinha enrustida. Tá aqui no meio dos “doidão” e tira onda de hippie. Divide os lindos, sedosos e tingidos cabelos ao meio, põe um monte de bugiganga no pescoço, uma sandália de tira no pé e fica falando que curte Janis. Mas é só ir numa daquelas boates tecno do Plano e ela vai estar lá com tênis de plástico, saia curtinha, piercing no umbigo e dançando todas as músicas. Só pose.
– Só pose.
– O que você tem a dizer daquela ali?
– A que esta totalmente embriagada?
– É essa mesmo.
– Bem, deve ter tido um namorado mais velho quando ela era apenas uma desbocada garotinha de quatorze anos, mas sem nenhuma experiência. Este namorado, sem dó nem piedade, tirou-lhe o cabaço no terceiro encontro e logo depois a largou na vida. Ela de raiva passou a dar para quem quisesse comer (e vários quiseram), agora ela está ai, a reputação acabada, em vias de virar uma alcoólatra e sem nenhum amor próprio.
– Profundo.
– É, mas e aquele que está olhando ela e rindo com os colegas.
– O bombadinho, de tribal no braço?
– Um deles, o de camiseta azul.
– Ah sim. Tem cara de ter sido um provável responsável por deflorar a outra que você falou. Não deve pensar muito e quando, por milagre, isto ocorre, ele pensa pela ótica do “senso comum alternativo”. Nunca deve ter tomado um porre na vida, mas diz pra todos que é o maior cachaceiro do mundo. Deve comer muitas menininhas. Deve fumar uns baseados quando encontra algum colega “doidão”. Conclusão: um ser desprezível que não merece a existência que lhe foi outorgada.
– Com certeza.
Por instantes os dois se calaram. Olhavam para o céu. A Lua cheia, o céu límpido e estrelado, estrelas cadentes cortavam a abóbada celeste em formas inigualáveis. Os dois não tinham coragem de se olhar, ele disse:
– E a gente?
– O que tem?
– Como somos nós pela ótica dos outros? Você, como você me via quando sentou-se ao meu lado?
– Bem, eu pensei: ‘aquele ali é inofensivo, tem cara de virgem, deve ser um pretenso intelectual que não agüenta mais tanta droga e resolveu dar uma descansada e ficar olhando os outros passarem na expectativa de que alguém pare e converse com ele’. E o que você pensou quando me viu?
– Olhei e divaguei: ‘morena bonita, deve ter levado umas quarenta cantadas absurdas e já não agüenta mais, sabe que é bonita e inteligente e que não merece escutar mais tanta merda, ela vai sentar aqui porque eu não ofereço perigo, se brincar ela é sapatão’.
– É parece que agente não se enganou muito…
– As vezes, as aparências não enganam.
– Você é virgem mesmo?
– Você é sapatão?
– Perguntei primeiro…
– Fisicamente…
– Como assim, fisicamente?
– O ato em si eu nunca fiz, mas a experiência eu já vivi milhares de vezes na minha mente, não falo só de masturbação, mas de saber que aquilo é algo transitório e que não vai me acrescentar muita coisa.
– Como você pode saber se você nunca fez?
– A previsão é fácil, não vejo ninguém que pelo fato de ter transado alguma vez na vida, se mostre mais sábio ou mais despreocupado com relação a esta. O sexo só serve como o primeiro passo para a existência de certas formas de vida. Fora isso é só mais um desejo inútil que te impede de ver o real.
– Bonito, mas falta paixão ao que você diz. Realmente não creio que você acredite em tais afirmações.
– Por que? Você não tem um ideal convicto quanto sua sexualidade?
– Tenho, e penso ainda que nesse aspecto os homens são mesquinhos.
– Mesmo eu que nunca fiz?
– Mesmo você, pois ao invés de super valorizar o sexo como todos os homens, você simplesmente o nega.
– Mas não sou dependente desta felicidade ilusória…
– Acho que pelo menos você devia experimentar para tecer afirmações sobre…
– Tentar eu já tentei, mas para se fazer a coisa é necessário dois.
– Ora, o que é isso? Você é um rapaz bonito, inteligente. Vai dizer que nenhuma garota quis ir até o fim com você?
– Exatamente.
– Não creio.
– Nem eu.
– Ah, então agora eu entendo, esse discurso todo é somente raiva. Nunca conseguiu ninguém e por isso fica dizendo que não vai e nem quer fazer.
– Pode ser. Mas e você, quando você virou lésbica? Foi depois que um cara tentou comer o seu cu sem manteiga ou quando um namorado seu, só de raiva, saiu dizendo que você usava calcinha de bichinho depois que terminou contigo?
– Nenhuma das duas!
– Desculpe.
– Bem eu nem sei direito, mas os homens começaram a parecer para mim um bando de trogloditas que só pensam em sexo. Olha, quando eu tinha quinze anos, eu tive um namorado…
– Não falei! Sabia que tinha um cara. É só orgulho ferido. Na minha opinião todo homossexual é antes de tudo um egocêntrico, que se acha tão dono de si que decide ir contra o senso comum só para se afirmar algo próprio.
– Assim como você, orgulhoso e egocêntrico.
– É, tem razão.
O dia amanhecia e os dois estavam calados. Gabriela aparentava um ar de quem pensa em demasia, Gabriel por sua vez, parecia não pensar em nada. Os dois vinhos tinham acabado. Gabriela falou:
– Vamos comprar mais umas biritas.
– Boto fé.
Os dois compraram uma garrafa de vodca e uns salgadinhos. Gabriel e Gabriela foram ao banheiro e os dois deram uma bela cagada cada qual. Optaram por subir um morro e tomar aquelas bebidas. Gabriel tinha um haxixe e Gabriela disse que tinha uma surpresa. Os dois subiram um morro que dava uma vista muito clara de um vale. O sol já se mostrava forte e os dois se encaravam, enquanto douravam mais suas peles, amorenando ainda mais aqueles dois seres. Então Gabriela disse:
– Há tempos que eu não me lembro o que é um homem.
– Dê-se por satisfeita. Desde que eu nasci que eu não sei o que é uma mulher.
– Eu vou te falar uma coisa, eu tenho uma companheira, o nome dela é Sandra. Mas eu acho que eu perdi o tesão por mulher.
– E por homem?
– Também.
Os dois se calaram. Começaram a intercalar o olhar entre o outro e a paisagem. O vento ia diferente. Fumaram o haxixe. Depois de algum tempo a garrafa de vodca estava pela metade, fumaram outro baseado. Gabriel:
– Agora que eu fui perceber, eu não sei o seu nome.
– Gabriela.
– Nossa, o meu é Gabriel.
– Destino…
– Será? Isso existe?
Gabriela mexeu em sua bolsa, tirou algo dentro dela. Gabriel observava:
– O que é isso?
– Cogumelo defumado.
– E eu não vou passar muito mal não?
– Não, é só não pensar muita coisa ruim.
Havia dois cogumelos e cada um comeu um inteiro. Fumaram outro baseado. Meia hora depois se via o efeito:
– Às vezes eu penso cinza.
– Eu… eu sempre pensei cinza.
– Mas as vezes eu penso lilás.
– Eu sempre pensei cinza.
– Por que será que o amor é azul?
– Sempre pensei cinza.
– “Azul da cor do mar!!!!!!!!!!” O céu é azul ou cinza? Mas e o cinza é cinza ou é branco mais preto? “Ter um sonho todo azul!!!!!” Será que isso tudo é um sonho?
– Eu sempre sonhei em preto e branco.
– O sonho é a continuação da realidade. Olha as lombras como passam, elas dão voltas, caem e gritam. UAUUUUUUUUUUU!!!!!!!!!!!!!!!!!
– Você é você e eu sou eu? Por que eu sempre sonhei em preto e branco?
– Vai querer?
Aí ele disse:
– Por amor ou por besteira?
E os dois fizeram sexo, como os tântricos da antigüidade da Índia. Como no Cântico dos Cânticos. Era um amor violento e suave. Aparentavam figuras do Kama Sutra. Fizeram uma, duas, cinco vezes e não se cansavam. E por fim, quando já era noite os dois dormiram abraçados respirando o suor do corpo outro e só agora eles tinham a noção: eram um só e o sexo estava ali, os permeando, a única tarefa imputada foi ao sincronismo do acaso em achá-lo.
* * * *
Foi neste quadro que Gabriel acordou, caíra da cama. De súbito colocou as mão na genitália, havia melado a cueca. “Foi apenas mais um sonho”, pensou Gabriel acostumado com tal situação. Levantou-se e foi lavar a si e a sua cueca, aproveitando para tocar uma bronha no banheiro e lembrar daquele pitelzinho de morena do sonho. “Será que ela existe?”, pensava ele enquanto o suor lhe descia a face.
* * * *
A vinte graus de latitude sul, Gabriela acordava assustada com seu sonho. Não estava acostumada a ter sonhos eróticos, quanto mais com drogas. Ah, se seus pais soubessem. Arrumou a cama envergonhadamente e foi tomar banho. Logo em seguida foi se confessar. Lembrou-se de que não se confessava há meses. “Acho que ando vendo muita TV”, pensou consigo um tanto quanto arrependida.
Os olhos de Ana Clara possuíam uma suavidade tanta. Era como se de suas íris irradiassem qualquer essência nefelibática e feérica, que envolvia qualquer ser vivente a metros de distância. Fosse bicho, fosse planta, fosse até mesmo vírus ou bactéria. Ana Clara tinha olhos de calmaria. Seu olhar invadia de forma branda e queimava uma paz retida em algum lugar do passado. Seu olhar se dizia tranqüilidade e, até na inconstância de Ana Clara, seu olhar se mostrava o mesmo. Até na frieza, até na loucura, até na dor.
O olhar de Ana Clara era negro, embora seus olhos fossem castanhos. Um negrume que se alocava na alma observadora, um conforto negro, um mar de cor preta que te absorve na temperatura mais amena existente. O castanho de seus olhos era o paradoxo mais intenso, entre o mel de uma sensação momentânea e o sem gosto de uma paz perpétua. Era a absorção de todas as luzes em um estado de espírito leve.
Uma coisa sempre me perturbava no olhar de Ana Clara. Era saber se seu olhar ou mesmo se ela própria tinha noção do quanto que pelas suas lentes pulsava o acalanto mais suave existente. Teriam aqueles olhos percepção de si?
Não me recordo quando fora a primeira vez que me atinei àquele olhar. Teria sido já em seu colo ou no relance de um flerte? Poderia ter sido dentro de um ônibus qualquer, ou mesmo no constatar de uma febre insistente. A questão é que foi.
Olhos de calmaria. Atentos a qualquer subversão de um espírito machadassisniano. Olhos que demoviam o sentido de calma e não o da dúvida. Olhos que se aplainavam as rugosidades da alma. Olhos castanhos de um negror lindo. Ana Clara e seu olhar, Ana Clara e seus olhos. Ana Clara sendo Ana nos olhos castanhos e Clara em seu negro olhar, era Ana Clara, seus olhos e seu olhar.
Ana Clara era meu amor àquele instante ao meu olhar nu em meus óculos diante da roupagem tão linda de seus olhos em si em seu olhar.
Nove e vinte. Já estou ficando atrasada. Com certeza Paulo já me espera há pelo menos uma hora. Logo hoje o carro foi quebrar. Hum, deixa eu pensar, o ônibus que passa ali… merda, vou ter que pegar um ônibus pra rodoviária. Já estou atrasada. Mas com fé eu consigo chegar na hora e aliviar um pouco a angústia de Paulo. Ô sujeito ansioso, quero ver outro igual.
Nossa. Noite fria essa, vou ter que voltar pra pegar um casaco. Eu podia pegar um pra Paulo, ele nunca leva casaco mesmo e depois fica passando frio e dizendo que é psicológico. Claro que o frio dele é psicológico: ele não leva o casaco por teimosia! É claramente um fator psicológico que o demove: teimosia. Ah se minha amiga Gabriela escuta eu falando isso, me dá um tiro: “Você menospreza demais a psicologia, Eliane…”. É, com certeza eu menosprezo, mas também, deveria menosprezar mesmo. Se bem que ela e Paulo quando discutem sobre psicologia é uma coisa bem interessante. Bom, deixa eu correr que lotação pra rodoviária passa toda hora.
Puta que pariu! Esqueci o casaco pro Paulo. Com certeza ele está sem. Ah, fazer o quê? Ele já é bem grandinho pra saber que não se deve andar sem casaco nessa cidade maluca. Não sei porque Paulo aceitou ir comigo hoje pra esse show. Nunca vi alguém tão velho em tão pouco tempo. Parece que no último ano ele envelheceu pelo menos uns quinze anos. E o pior é a amargura dele. Tá ficando áspero demais. Não ácido, pois que ácido é coisa de adolescente, ele já passou disso, ele está é enrugando mesmo, ficando áspero.
De fato, creio que fiz besteira em chamá-lo pra sair hoje. Ainda mais, porque o Marcos vai estar lá e eu queria mesmo conversar com ele também. Mas ah… que se foda. Como eu disse, o Paulo já está bem crescidinho pra entender certas coisas. Será que até hoje ele pensa em mim? Não pode ser. É claro que eu penso nele, mas definitivamente o meu pensar é outro. Tem vezes que me lembro e sinto vontade de ligar pra ele e ficar com ele, mas só naquele momento, rápido e rasteiro. Beijá-lo um pouco… É, mas deve ser difícil pra ele, sinto que ele não entende que a gente nunca tenha feito sexo, não abstrai o porquê. Ainda bem que não sinto dó dele. E logo ele que é uma pessoa tão legal. Podia tanto ser algo sutil, leve, algo só nosso. Segredo guardado a sete chaves. Mas não, ele sempre aparenta querer mais, ele sempre anseia por algo maior, sempre parece que aquela vai ser a derradeira vez, o momento em que eu vou cair definitivamente apaixonada por ele e jurar fidelidade e outras coisas mais.
Hum, penso que estou viajando demais. Sinto que ele já se resolveu. Na realidade, ele tem que ter se resolvido. Já sei! Se ele aparentar que está resolvido, eu até fico com ele. Nossa, mas como ele podia querer só isso, uma noite qualquer, um encontro qualquer, uma noite displicente! Bom, vamos ver o que dá. Eita, já estamos na Rodoviária! Caramba, já são nove e trinta e cinco.
Eu sabia… É só chegar na fila do box do ônibus e nada. Ele nunca está aqui… Nunca. É infalível. Vou ter que fumar um cigarro. Pelo menos, creio que dá tempo, ele só não pode chegar agora, porque pior do que chegar e o ônibus não estar no box é acender um cigarro pra esperar e ele estacionar bem na metad… merda! Não falei… Quando é pra dar errado é pra dar errado. Esse gosto de meio cigarro aceso é um dos piores de todo o mundo. É o aborto de um alívio. Bom, pelo menos vou chegar no horário, o Paulo nunca diz, mas eu sei que ele odeia esperar. Mas eu nunca entendi, se ele odeia esperar, por que ele sai duas horas antes do horário marcado? Vá entender a cabeça desse rapaz…
Ah, agora sim. Ônibus é bem melhor que lotação, nem se compara. A visão, o panorama da janela, é uma sensação bem mais confortável. Mesmo quando o ônibus está cheio. Gosto de andar de ônibus, eu deveria andar mais. Caraca, agora onde é a parada? Odeio ter de ficar assim, na iminência de descer… Hum… Deve ser agora.
Ai ai ai… parada errada. Que merda. Por que eu sempre faço isso? Pelo menos eu desci antes, não depois. A sensação de que ficou pra trás é terrível, de que você tem que voltar, tem que percorrer o que já andou… Bom é andar pra frente, sentido futuro. Esse lugar é de boa, andei bastante por aqui. Lembro que eu e Paulo almoçávamos ali. Era engraçado, era bom. A comida era uma bosta, mas o preço compensava. Ah, era bem ali que a gente ficava depois de almoçar. Hum, sabia… Paulo já está lá. E sem casaco como eu havia previsto.
* * * *
Beijei seu rosto e falei pra ele que eu sabia que ele estaria sem casaco. Nem falei que pensei em trazer um, ia parecer forçado. Perguntei como estava e fui andando rumo ao lugar do show. Ele me acompanhou e disse que estava bem e – como eu imaginava – nada de emocionante acontecera com ele esses tempos. Eu pensava que a noite poderia ser bem agradável, só não dizia muita coisa.
Perto da gente, começava a passar alguns carros com sons bem altos. Música boa até, pessoas animadas… Insisti comigo que a noite poderia ser bem boa. Vi que Paulo se incomodava, mas tentei dar uma de “animada indiferente”, não ligar pra suas neuras – e nem dar trela pras minhas. Nessa hora aconteceu uma coisa muito cômica, Paulo leva uma porrada de um malabar de uma garota. Não me contive, tive que rir. A garota era muito esquisita e tinha um aspecto hippie-punk-tecno-clubber. Uma figura bem engraçada. Eu não sabia se eu ria do Paulo ou se ria da garota. Percebi que Paulo ficava sem-graça e resolvi maneirar.
Fomos beber. Paulo pediu vodka e eu comprei uma cerveja. Começamos a conversar e eu falei pra ele que provavelmente o Marcos estaria ali. Falei que estava trabalhando com ele agora, mas vi que Paulo estava meio aéreo, parecia meio incomodado ou até mesmo espantando com alguma coisa. Olhava para os lados, não se concentrava em nenhum assunto, só murmurava coisas concordando comigo. Fiquei meio sem-graça de estar falando sozinha e me calei um pouco. De repente chega um indivíduo falando horrores com a gente. De fato, eu não sabia quem era. Tinha uma vaga impressão de que conhecia a pessoa e vi que ele conhecia a gente também, afinal, ele falava coisas do tipo: “E vocês dois, heim? Vão ficar nesse chove não molha, é?!!!”. Reparei que deveria ser algum conhecido nosso da faculdade. Mas, realmente, não me lembrava quem era.
Paulo de fato é uma pessoa engraçada, ele tinha ficado com um certo receio de encontrar mais algum conhecido e propôs que entrássemos no show. Convenci-o de que valia a pena comprar o ingresso que incluía o cd da banda junto. Ele concordou e entramos.
Eu estava bem tranqüila, entramos e fomos andar pelo lugar, eu queria encontrar algumas amigas que tinham ficado de ir pra lá também. O lugar estava cheio, bastante pessoas. Havia um clima de noite razoável que eu não conseguia conter o meu sorriso. Deveria estar parecendo que tinha colocado um botox na cara. Pensei que não queria encontrar mais o Marcos.
Logo de cara, segundos após este pensamento, a gente encontra Marcos. Eu sabia que ele estaria ali, mas quando o vi, gelou-me a espinha de uma forma tal que eu não sabia bem dizer o porquê. Vi que ele estava muito bem, ele passava a mão nos meus cabelos de um jeito que há tempos eu não sentia. Eu apertava a sua mão e só conseguia dizer que estava bem, afinal, eu estava muito bem mesmo. Foi aí que Paulo apareceu e cumprimentou Marcos. Falou qualquer coisa sobre ver alguém e saiu. Não entendi direito, só vi que ele tinha saído bem rápido. Típico dele. Pareceu que ia embora da festa. Ele sempre escapava dos lugares de forma rápida e sorrateira. Não o vi mais durante o show.
Marcos me perguntava se eu estava com Paulo. Entendi o tom da pergunta e respondi que não. Que tinha marcado de me encontrar com ele simplesmente. Ele riu e disse que ainda se lembrava bem dele, afinal, era por ele que o namoro havia terminado duas vezes. Eu fiquei meio sem-graça. Marcos disse que se eu quisesse procurar Paulo pra ficar com ele, tudo bem, ele já “estava acostumado com isso”.
Fiquei meio irritada com ele. Mas, no entanto, não saí de lá. Fiquei ao seu lado um bom tempo até que ele me disse que sentia minha falta, mas que não queria ficar comigo. Eu retruquei a mesma coisa. Era engraçado aquilo, afinal, eu não tinha a mínima vontade de ficar com ele, mas gostava da companhia dele, gostava de como era ele, gostava até do seu cavanhaque. Ele era uma pessoa bem preciosa mesmo, uma pessoa que me tocava alguma coisa. Começamos a bater um papo sobre a vida, sobre como era engraçado o tomar rumos variados na vida, sobre como, uma hora ou outra tudo se esbarra novamente, afinal, a gente, que pensava nunca mais se ver, estava trabalhando junto agora.
Fomos comprar cerveja. No caminho fui olhando para os lados tentando buscar Paulo, mas não o encontrava de forma alguma. A cerveja estava meio quente, mas ainda assim tomamos. Sempre achei curioso esse lance de como uma cerveja pode ser algo extremamente bom com determinadas pessoas e algo penoso com outras. A cerveja é de certa forma um decantador de conforto.
Marcos falava qualquer coisa sobre como ele estava bem com o novo emprego. Disse-me até que tinha encontrado uma pessoa bem legal que ele estava afim de conhecer melhor. Senti, do fundo de alguma coisa em mim, que aquilo era bom, que era agradável saber que uma pessoa que tinha ficado mal horrores quando terminou comigo, podia se recuperar em paz e ainda gostar de ficar em minha presença. Aquilo era alentador.
A cerveja descia bem, a conversa fluía de forma inimaginável. Naquele momento o show era somente eu e Marcos. Não por um ímpeto de apaixonite que pudera ter se abatido, ou por um querer sexo fácil àquela noite. Era antes de tudo, um gostar que se assentava de modo tão leve que, às vezes, eu me perguntava por que eu estava daquele jeito, tão boba.
Foi naquele momento que eu quis beijar Marcos. Beijá-lo só por beijar, sentir aquela sensação de forma mais junta, mais abrasiva. Ele me olhava de um jeito singular, não era a mesma pessoa que eu tinha namorado. Definitivamente era outro. O show da banda começava, mas a gente nem se atinha. Ficamos imóveis olhando um pra cara do outro durante muito tempo. Até que ele deu um sorriso. Aquele sorriso não estava programado, foi um sorriso completamente desarmador, repleto de um querer não falado, de um querer velado.
Sorri também e me aproximei dele até que o beijei. Ele correspondeu. Não foi afoito, não foi frio, não foi distante. Era um beijo ali, encaixado, medido, esperado. Eu não pude fazer outra coisa. Tive de sorrir. Ficamos encabulados. Olhei para o show e comecei a fingir que estava gostando do mesmo, mas na verdade o que me acometia era uma imensa vontade de discutir sobre aquele beijo, de divagar mesmo se aquilo podia ter sido real, se aquilo de fato havia acontecido. Contive-me e o chamei pra comprar mais cerveja.
Quando voltamos vi que ele estava bem tranqüilo e que não esboçava nenhum sentimento mais vultoso. Fiquei meio decepcionada. Um beijo daqueles tinha que ter algum sentido. Tinha que ser alguma coisa. Tinha que ser mais do que um mero estalar de beijos. Vi que ele pensava em nada. Resolvi arriscar e perguntei o que ele tinha achado do beijo. Ele disse “Bom”. Bom, eu pensava… Bom? Só isso? Apenas isso? Bom? Fiquei meio frustrada. Mas comecei a raciocinar friamente: é, de fato, o beijo foi bom, logo, bom é uma boa resposta, na verdade… bom é uma excelente resposta. Olhei-o e o beijei de novo. Foi bom de novo. Vi que realmente eu não podia ficar falando mais que as coisas eram boas da boca pra fora, porque bom, era uma coisa muito boa.
O show continuava e eu resolvi me enquadrar melhor, comecei a me soltar, bebi mais cerveja, entrei na onda de fato. Eu e Marcos pulávamos, dançávamos, bebíamos e nos beijávamos (e era bom). Nada mais de conversa, nada mais de teorias, só um prazer (bom – se é que existe prazer que seja mau) sendo sentido. Conforme o show ia se findando mais eu pensava em conferir como seria o sexo com ele. Se o beijo já denotava toda essa sensação desenfreada de “bom”, eu queria ver como seria o sexo. Novamente eu não me contive e perguntei se ele queria fazer sexo àquela noite. Ele nem pensou, nem titubeou, nem demonstrou dúvida, respondeu na lata: “quero”.
Saímos um pouco depois que a banda havia acabado seu show. Já havia várias pessoas pelo chão, os cachorros-quentes lotados, o chão imundo, a noite se esvaindo, o sol querendo raiar. Marcos estava de carro e parecia estar com algum sono. A gente tinha bebido muitas cervejas, mas eu ainda estava inteirinha. Quando chegamos na casa dele ele pediu pra eu falar baixo que a mãe dele estava por lá e não queria acordá-la. Entramos no quarto dele e já começamos a tirar a roupa.
Fiquei pensando que não tinha a mínima lógica ficar num lenga-lenga de beijinhos e amassos quando o objetivo era único e explícito: trepar. No começo estava bom, não no sentido do beijo, até me contenho pra dizer se algo está bom ou não agora, é melhor dizer que estava razoável, bem razoável. Mas foi aí que descobri que ele não estava muito acordado por assim dizer. Eu pulava em cima dele, rebolava, remexia, apertava os seus peitos, quando percebi que o rapaz não se mexia muito. Fiquei meio perplexa. Parei e vi que ele não se movimentou um milímetro. De fato, ele dormia.
Sai de cima dele, olhei seu rosto dormindo e fiquei com o mesmo gosto de cigarro pela metade na boca. Pensei comigo mesma e acendi um cigarro. Pelo menos aquele não seria abortado. Fui até a janela do quarto dele e fiquei fumando. O dia amanhecia, o sol já esquentava a rua. Lembrei-me de Paulo. Realmente ele deveria estar um bom tanto desolado. Mas a noite tinha sido tão boa. Uma pena ele não entender essas coisas. Talvez, se ele tivesse ficado perto, ao invés de arranjar uma desculpa qualquer… Mas ah… um dia ele entende.
Bom, pelo menos foi uma noite agradável. Acho que pelo beijo valeu a pena o resto todo. Foi realmente um beijo bom.
Era um quadro fácil: duas loucuras postas no chão. Duas faces desarmadas de razão e quietas em suas verdades. Só havia a luz opaca das velas e uma penumbra leve que amainava uma tensão outrora havida, mas que por hora era somente a ávida constatação de algo rompido com um beijo.
Duas loucuras antagônicas deitadas no chão. O rapaz em mangas de camisa e a moça com uma revelação já pressentida. O rapaz com face de novelo de lã negra e a moça com a cerveja presa em suas mãos. Um quadro fácil, despretensioso. A fumaça dos cigarros rompia a velocidade dos minutos e prostrava a realidade uma languidez, uma lentidão e uma sensualidade tais, que a penumbra parecia acolher tudo o que merecia existir.
Na penumbra havia o umbral para outro necessário beijo. Em cada necessidade atingida, o anseio de que mais outra viesse a ser transpassada. Cada beijo era uma existência tal que transformava as loucuras ao menor estalar dos lábios, ao menor toque dos devires labiais.
Um quadro bem fácil. Ele conduzia sua inexistência a um patamar não previsível. Ela dava forma a inexistência dele e se compadecia de sua dor. E quando o lirismo da madrugada os apanhou de cheio, a loucura pôde fluir tranqüila, sem receios, apenas o elemento mais necessário do quadro. Era a loucura dele sobre as coxas dela e a loucura dela a desenhar caminhos nas costas dele.
Foi durante o sono e por meio da linguagem dos sonhos que a inteligibilidade das loucuras fez-se menos necessária e mais sensível. O braço do braço na barriga da mão do colo outro era mais do que razão, muito mais do que uma condição inerte proposta por duas loucuras, mas a liberdade de uma existência condicionada: inexistir como sombras projetas pela luz de uma vela.
O quadro compunha-se assim, bem fácil. Duas loucuras feitas ao chão, imiscuídas as partes, entremeadas as bocas, lentamente iluminadas. Era a confissão dos sentidos a lhes dar a proposição: sair das sombras e ganhar forma. Na realidade… Enfim… Existir.
“Vida, louca vida, vida breve já que eu não quero te levar, quero que você me leve”
Cazuza
Tenho raiva de tudo! Do tudo e do nada. Do tudo, do nada, do tudo! Tenho raiva de ambos pois penso de mais. Paro, penso, analiso. Estou sozinho, sentado numa cadeira, uma mesa à frente e em cima desta, uma garrafa de coca-cola. Ela me chama. Escuto seus gemidos e sussurros: “Venha, beba-me! Consuma-me, saboreie-me…” — cada vez mais forte — “VENHA, EU ORDENO, EXPERIMENTE-ME, vou lhe proporcionar uma experiência muito agradável, uma sensação de frescor e alívio.” Não! Não irei entregar-me ao capitalismo que você representa de forma gigantesca. Não beberei este veneno, com isto não saciarei minha sede! Um xarope transformado em produto de consumo de massas. Inaceitável, algo que foi produzido para ser um remédio e consumido como um simples refresco.
O quê é que estou pensando? O refrigerante fala comigo? Estou ficando louco, insano, demente! Acho… não sei… penso demais. Eu tento parar de pensar, mais não consigo. Eu tento, não consigo, eu tento, não consigo. Acho que o problema é este. Eu penso em como parar de pensar, o certo o simplesmente parar. Assim… agora eu consigo. … HAAAAAAAA!!!!!!!!!!! Eu não consigo! Será que a loucura chegou? Meu Deus. Deus? Será que Deus existe? Não sei, a verdade é que nunca acreditei nele.
Às vezes penso que tudo é só imaginação minha. Que tudo é um sonho. Essa divagação é engraçada. De quando em vez converso com alguém fútil e este, querendo ser intelectual e seguindo minha linha de raciocínio, diz que sempre pensou nisso, que ele pensa que de repente pode acordar. É por isso que é engraçado, eu penso com tanta profundidade em certos assuntos e pessoas tão merda vêm com essa. Duvido que elas realmente tenham pensado assim. Algo parecido com o que eu sinto pode lhes ter passado pela cabeça. Mas pensar como eu, não.
Só existe o meu pensamento. Vocês são frutos da minha imaginação, assim como eu sou produto de suas mentes. Credo! Isso é estranho demais, a inexistência, o nada. A existência, o tudo. Bateu um vazio dentro de mim agora que me preencheu, uma insignificância. Estou com medo, medo de estar ficando louco, depressivo, psicótico, não sei. Paranóico talvez. Talvez tudo e talvez nada, ao mesmo tempo. No mesmo lugar, em mim. É disso que tenho raiva, do tudo e do nada. Tudo, nada. Nada, tudo. Tudo, nada. Nada, tudo. O nada não existe e o tudo é tão grande que não merece relevância, ou senão, toda a relevância.
Não sei mais o que eu penso. Que saco, só penso. Não paro de pensar. Eu tento, não paro. Eu tento, não paro. Já estou por aqui com a minha cabeça. Realmente por aqui. Acho que se existisse uma maneira fácil, rápida e indolor de morrer, já teria tentado. Mas não sei… tenho medo. Pelo meu medo, sinto amor e ódio ao mesmo tempo. Amo o meu medo e odeio o meu medo, no mesmo lugar. Um medo bobo, estúpido, idiota, medíocre. Assim como eu, acho que por isso o tenho.
Já pensou se eu falasse tudo o que eu penso? Como seria? Vocês iriam entender alguma coisa, eu ia entender alguma coisa? Com certeza iriam dizer que eu era louco. Logo depois seria um crime. Ai que situação difícil. Não tenho coragem de nada. Tenho timidez de tudo, não consigo me expressar direito. Não consigo me expressar, tenho tanto a dizer, mas não sei por onde começo. Acho que o meu carma entrou em coma. Tenho sentido isso ultimamente. Acho que ando vivendo e renascendo na mesma forma, na mesma pessoa. Tudo começou quando eu fiz uma regressão e só me lembrava de situações que vivi nesta vida. Nunca fui ao menos uma formiga. Sempre do mesmo jeito. Nem melhora, nem piora. Acho que por isso não me matei ainda. Nascer da mesma forma de novo! Meu carma entrou em coma, será possível isso? Meu carma está em coma! Num leito frio em uma UTI e o pior é que ele não tem plano de saúde, vai ficar lá até ser mandado embora por falta de pagamento. Eu sinto. Enquanto isso fico aqui morrendo e nascendo na mesma forma.
Sinto uma dor profunda. É minha alma. Ela está se desprendendo do meu corpo. Lá está ela, lá no céu, numa aurora boreal. Lá está ela se divertindo com anjos, borboletas, vaga-lumes, pirilampos, duendes, fadas e gnomos, numa dança frenética. Por que ela fica ali em cima? Vem logo aqui e fica quieta. Agora entendo, ela está me dando um recado. Me falta um caráter mais humano. Sou uma máquina, um autômato, um simples robô. Que funciona de acordo com um ciclo depressivo, depressivo, depressivo… um moto perpétuo melancólico. Isso está errado. O meu carma era para ser um moto perpétuo, assim como o de todos. Mas ele parou, entrou em coma, não funciona mais e para piorar, minha alma saiu de mim, se cansou.
O que eu faço? Se recorro a Deus me sinto hipócrita. No Diabo acredito menos ainda. Penso em Kardec, Alá, Buda. Um dia, num sonho, vi Buda e perguntei: ‘por que penso tanto?’; ele olhou calmamente para mim e disse: “Tudo é dor”. Tudo é dor? Por que ele foi falar isso? Por que ele não disse que eu penso porque as abelhas zumbem. Sei lá, algo assim. Mas, tudo é dor? Se bem que faz sentido. Vivo sentido dores, angústias, depressões…
Sentado aqui eu vejo várias coisas. Uma janela, um poste, um pinheiro, uma roseira, prédios. Vejo muitas coisas. A maioria é inútil, como tudo e como nada. A mesma importância, o mesmo significado. Então nada importa. A luz de agora é estranha ela me toca e sinto coisas diferentes, uma pequena sensação de solidão prazerosa. Sinto vontade de chorar, mas não consigo tirar uma lágrima de meus olhos. Tenho muita vergonha, sou muito tímido. Sou tão tímido que não consigo chorar sozinho. Escuto um barulho de uma bicicleta ergométrica. Alguém faz ginástica, quer emagrecer para o verão. Corpo perfeito. De que adianta? Vai virar tudo comida de verme mesmo. Mas as garotas gostam. Um cara malhado é motivo de suspiros. Quero que todas vão para o inferno! Não adianta nada, já estamos no inferno. E a culpa não é delas, é do sistema. Valoriza demais o corpo. Por isso elas não me dão bola.
É estranho o comportamento de certas mulheres. Quando tento ser engraçado, elas riem por pena, quando tento ser profundo, me ignoram. Estou sujo, ainda não tomei banho. E daí? Se tomo banho agora criaria mil expectativas e teria a certeza de mil desilusões. Ter expectativas é terrível, ainda mais comigo, que nem 0.000001% destas se concretizam. Que saco só me resta pensar. Mas pensar está me deixando louco. Por que eu não consigo viver como certas pessoas que vivem felizes, sem se importar com porra nenhuma? Tudo para mim toma proporções tão grandes que eu não consigo viver sem estar em permanente estado de paranóia.
Para certas pessoas tudo é tão simples. Só contam histórias, inventam vitórias, bebem, tocam violão, cantam, fumam maconha, vivem sem se preocupar com suas insignificâncias. Sem se preocupar que daqui pouco o que fazem completará uma hora de vida e daqui a três anos talvez nem se lembrem o que faziam. Pense bem, quem se lembrará de nós no ano 3457, no dia três de abril às dezessete horas trinta e sete minutos, vinte e cinco segundos e quatorze milésimos? Quem? Tudo é muito insignificante. Queria de repente parar de viver, nunca ter existido, nunca ter deixado uma marca que seja. Ser um nada, nunca ter pensado, era isso o que eu queria.
Ah! Que tudo (e nada) se foda. A galera ta com um dez litros de vinho lá fora…