Poesia completa / Maya Angelou

Presciência

Se eu soubesse que o coração
quebra lentamente, se desmantela
em pedaços irreconhecíveis de
miséria,

Se eu soubesse que o coração vazaria,
babando sua seiva, com uma visibilidade
vulgar, sobre as salas de jantar enfeitadas de estranhos,

Se eu soubesse que a solidão poderia
sufocar a respiração, afrouxando
e forçando a língua contra o
o céu da boca,

Se eu soubesse que a solidão formaria
queloides, enrolando-se pelo
corpo como uma cicatriz sinistra
e bela,

Se eu soubesse, ainda teria amado
você, sua beleza impetuosa e insolente,
seu rosto exageradamente cômico
e o seu conhecimento de doces
prazeres,

Mas a distância.
Teria deixado você inteiro e completo
para o divertimento daquelas que
desejassem mais e se importassem menos.

Maya Angelou

O corpo encantado das ruas / Luiz Antônio Simas

AZEITE DE DENDÊ NO CARNAVAL

Luiz Antônio Simas

“Exu que tem duas cabeças, ele faz sua gira
com fé
Exu que tem duas cabeças, ele faz sua gira
com fé
Uma é Satanás do inferno outra é de Jesus Nazaré
Uma é Satanás do inferno a outra é de Jesus
Nazaré.”
– Ponto de Exu

AS RUAS no carnaval são exemplarmente exusíacas. Exu é aquele que vive no riscado, na brecha, na casca da lima, malandreando no sincopado, desconversando, quebrando o padrão, subvertendo no arrepiado do tempo, gingando capoeiras no fio da navalha. Exu é o menino que colheu o mel dos gafanhotos, mamou o leite das donzelas e acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje; é o subversivo que, quando está sentado, bate com a cabeça no teto e em pé não atinge sequer a altura do fogareiro. Ele é chegado aos fuzuês da rua. Adora azeite de dendê. Mas não é só isso e pode ser o oposto a isso.

Um longo poema da criação diz que, certa feita, Exu foi desafiado a escolher, entre duas cabaças, qual delas levaria em uma viagem ao mercado. Uma continha of bem, a outra continha o mal. Uma era remédio, a outra era veneno. Uma era corpo, a outra era espírito. Uma era o que se vê, a outra era o que não se enxerga. Uma era palavra, a outra era o que nunca será dito.

Exu pediu uma terceira cabaça. Abriu as três e misturou o pó das duas primeiras na terceira. Balançou bem. Desde este dia, remédio pode ser veneno e veneno pode curar, o bem pode ser o mal, a alma pode ser o corpo, o visível pode ser o invisível e o que não se vê pode ser presença. O dito pode não dizer e o silêncio pode fazer discursos vigorosos. A terceira cabaça é a do inesperado: nela mora a cultura.

Gosto do carnaval de rua e das libações comandadas por Exu. Sou adepto da subversão pela festa. Carnaval de rua é possibilidade: pode ser festa de inversão, confronto, lembrança e esquecimento. É período de diluição da identidade civil, remanso da pequena morte, reino da máscara, fuzuê do velamento necessário. Eventualmente, sai porrada.

O carnaval exusíaco é o do não
endereço, do rumo perdido, da rua esquecida, da esquina incerta. Em tempos de escancaramento das redes sociais, tem gente que quer ser encontrada no carnaval. É um tal de dizer “onde estou”, “qual é a minha fantasia”, “olhem como estou me divertindo”, “que foto bacana”. Brincar é o de menos; fundamental é que as pessoas saibam, em tempo real, que o folião está brincando. Na rua, espaço de subversão do cotidiano, a folia deveria ser o mar aberto do ébrio pirata de nau sem rumo. O carnaval, festa do “me esqueçam”, vira a festa do “me encontrem, me vejam, me curtam”. Para alguns, é a festa do “me patrocinem”. Sinal dos tempos e despotência da força exusíaca do babado. Sem dendê, a rua morre. Olho vivo, rapaziada.

Desfile de escola de samba, cada vez é mais cheio de regras, é carnaval oxalufânico. Oxalufã é o orixá que tem como positividade a paciência, o método, a ordem, a retidão e o cumprimento dos afazeres predeterminados. Tudo que contrário a isso representa a negatividade que pode prejudicar seus filhos. Diz um mito de Ifá que, quando se desviou da missão a ser executada e tomou um porre de vinho de palma, Oxalufã quase comprometeu a própria tarefa da criação do mundo. Em outra ocasião, quando também tentou agir por instinto teimosia, deixando de seguir a recomendação do oráculo e de dar oferendas para Exu, Oxalufã foi preso durante uma viagem, acusado injustamente pelo furto de um cavalo. Curtiu uma cana de sete anos. Deve evitar o azeite de dendê, que o tira do prumo.

O problema é que esse perfil oxalufânico anda excessivo entre as escolas de samba. A disciplina, a regra, O engessamento dos desfiles, o controle rígido das performances podem representar a perda da capacidade de renovação e o descolamento entre as agremiações e a cidade. Oxalufã precisou de Exu para cumprir a sua missão na criação do mundo.

Alguma dose de oxalufânico pode fazer bem ao que é exusíaco; contanto que não o domine e impeça seu movimento. Alguma dose de exusíaco pode fazer um bem enorme ao que é predominantemente oxalufânico, para que ele se movimente. Quando um princípio, todavia, prevalece no terreno do outro e desequilibra a vitalidade de determinada potência, a chance de a vaca ir para o brejo é grande. Saber a medida certa do dendê é o nosso desafio na receita momesca. Carnaval, como diria o Zé Pereira, é vida na rua.

Mais longa vida / Marina Colasanti

 

Num único ponto

 

O peso do verão

esmaga nessa encosta

as oliveiras.

Não há sombra

nas sombras

luz mais densa somente

e o fervilhar de insetos.

Na erva alta

uma laranja dorme já à deriva

abandonando ao chão

sumos azedos.

O jardim se submete

à mão do sol.

Só o lagarto

entrefechados olhos

se expõe à luz como se expõe a pedra

escuro e impenetrável.

Num único ponto avista-se vida

entre peito e garganta

onde sangue palpita.

 

Marina Colasanti

O que o cérebro tem para contar / V. S. Ramachandran

ATÉ AGORA EU os conduzi por uma viagem evolucionária que culminou na emergência de duas habilidades humanas: linguagem e abstração. Mas outro traço da singularidade humana intrigou os filósofos durante séculos – a saber, a ligação entre a linguagem e o pensamento sequencial, ou raciocínio em passos lógicos. Podemos pensar sem verbabilização interna silenciosa? Já discutimos a linguagem, mas precisamos ser claros em relação ao que entendemos por pensar antes de tentar nos atracar com esta questão. Pensar envolve, entre outras coisas, a capacidade de se engajar com manipulação irrestrita de símbolos em nosso cérebro seguindo certas regras. Em que grau essas regras estão relacionadas às da sintaxe? O termo-chave aqui é “irrestrito”.

Para compreender isso, pense numa aranha tecendo uma teia e pergunte a si mesmo: terá a aranha conhecimento da lei de Hooke relativa à tensão de fios esticados? A aranha deve“saber” disso em certo sentido, de outro modo a teia se desintegraria. Seria mais preciso dizer que o cérebro da aranha tem um conhecimento tácito, em vez de explícito, da lei de Hooke? Embora a aranha se comporte como se conhecesse essa lei – a própria existência da teia atesta isso –, seu cérebro (sim, a aranha tem um) não tem nenhuma representação explícita dela. Ela não pode usar a lei para nenhum outro propósito a não ser tecer teias e, de fato, ela só pode tecer teias segundo uma sequência motora fixa. Isso não é verdade acerca de um engenheiro humano que utiliza conscientemente a lei de Hooke, que aprendeu e compreendeu a partir de livros de física. A utilização humana da lei é irrestrita e flexível, disponível para um número infinito de aplicações. Ao contrário da aranha, ele tem uma representação explícita de seu funcionamento em sua mente – o que chamamos de compreensão. A maior parte do conhecimento do mundo que possuímos recai entre esses dois extremos: o conhecimento irracional de uma aranha e o conhecimento abstrato do físico.

O que entendemos por “conhecimento” ou “compreensão”? E como bilhões de neurônios os alcançam? Essas coisas são completos mistérios. Reconhecidamente, os neurocientistas cognitivos ainda são muito vagos no tocante ao significado exato de palavras como“compreender”, “pensar” e, de fato, da própria palavra “significado”. Mas o trabalho da ciência é encontrar respostas passo a passo por meio de especulação e experimento. Podemos abordar alguns desses mistérios de modo experimental? Por exemplo, o que dizer sobre a relação entre linguagem e pensamento? Como poderíamos explorar experimentalmente a elusiva interface entre esses dois elementos?” (p. 153-154)

Poemas / Wislawa Szymborska

RETORNOS

Voltou. Não disse nada.
Mas estava claro que teve algum desgosto.
Deitou-se vestido.
Cobriu a cabeça com o cobertor.
Encolheu as pernas.
Tem uns quarenta anos, mas não agora.
Existe — mas só como na barriga da mãe
na escuridão protetora, debaixo de sete peles.
Amanhã fará uma palestra sobre a homeostase
na cosmonáutica metagaláctica.
Por ora dorme, todo enroscado.

Wislawa Szymborska

Uma biografia da depressão / Christian Dunker

SAÚDE MENTAL

Christian Dunker: Neoliberalismo e depressão à brasileira

Segundo psicanalista Christian Dunker, discursos neoliberais de meritocracia — em que sucesso e fracasso tendem a ser individualizados — e crise dos últimos anos em que os horizontes prometidos deixaram de ser cumpridos ajudam a agravar o quadro geral do transtorno no Brasil

Por Redação RBA

Publicado 21/03/2021 – 10h34

São Paulo – A depressão é um problema sério no Brasil. De acordo com dados da OMS, a Organização Mundial da Saúde, a doença afeta 5,8% da população, um índice maior do que a média mundial de 4,4% e a maior da América Latina. Para falar sobre esse tema, o programa O Planeta Azul conversou com o psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP Christian Dunker, que acabou de lançar o livro Uma Biografia da Depressão, pela Editora Planeta.

No livro, Dunker narra como a depressão, que por muitas décadas ocupou uma posição menor entre os transtornos mentais, se tornou, a partir dos anos 1970, a grande protagonista dos discursos sobre o sofrimento psíquico.
De olho nesse fenômeno, o professor da USP resolveu esmiuçar as origens, a história e o contexto atual da depressão. Ele encontrou diversas explicações contemporâneas para o agravamento do transtorno: dos discursos neoliberais de meritocracia — em que sucesso e fracasso tendem a ser individualizados — à crise dos últimos anos em que os horizontes prometidos deixaram de ser cumpridos. Deparou-se também com questões como a ascensão do neopentecostalismo, com igrejas vendendo a ideia de prosperidade.

Ao longo do livro, Christian Dunker refaz os passos genealógicos do transtorno a partir dos conceitos da tristeza e da melancolia para mostrar que a depressão é “um nome demasiado pequeno para tantas formas, que reúne coisas que não andam juntas”. O autor faz uma viagem no tempo para mostrar que o surgimento da depressão é contemporâneo ao romantismo nas artes e que sua estabilização como quadro clínico acompanha o modernismo nas artes visuais.

Dunker concorda que as redes sociais contribuem para, ao expor imagens e histórias perfeitas, agravar a depressão. Mas reconhece também o seu papel positivo. “Não devemos demonizar as redes sociais. Porque elas estão fornecendo práticas de reconexão de contato e de narrativização de sofrimento, isso tudo está disponível”, diz ele.

https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/ planeta-azul/2021/03/neoliberalismo-depressao-christian-dunker/

Bitcoin – A utopia tecnocrática do dinheiro apolítico / Edemilson Paraná

https://play.google.com/store/books/details?id=8VzwDwAAQBAJ

Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico

Acervo Online | Mundo
por Rodrigo Santaella Gonçalves
17 de março de 2022

Confira resenha do livro de Edemilson Paraná, Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico (Autonomia Literária, 2020)

O livro busca captar, a partir de uma análise acurada sobre o bitcoin, aspectos fundamentais da dinâmica do capitalismo em sua forma neoliberal, no contexto de sua crise contemporânea. Se em Finança Digitalizada (2016) Edemilson Paraná analisou a relação entre o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação e a reconfiguração do capitalismo contemporâneo, sobretudo no aspecto referente à intensificação do processo de financeirização da economia mundial, em Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico, a criptomoeda aparece como um sintoma dessa dinâmica, como um produto de sua instabilidade estrutural. Concebida com uma radicalidade utópica das ideias que fundamentam o neoliberalismo, a criptomoeda entra em choque com o neoliberalismo do establishment, aquele “realmente existente”, e, nesse cenário, traz luz às contradições estruturais dessa forma de funcionamento do capitalismo.

Com uma análise marxista do bitcoin, o autor oferece uma definição precisa da criptomoeda, que contém em si a explicação para muitos de seus limites: o bitcoin não representa a superação da política no que diz respeito à administração monetária porque, justamente pelas características que são aventadas como propulsoras dessa superação, ele não cumpre as tarefas às quais se propõe. Em vez de substituir o dinheiro mundial, tem baixo volume e alcance de circulação; em vez de produzir estabilidade monetária, é altamente instável por causa do seu papel como ativo especulativo; e, por fim, em vez de garantir uma tutela descentralizada, a concentração de poder relativa entre seus usuários só cresce.

A crítica aos limites da criptomoeda e à crença em soluções puramente técnico-científicas para os problemas do capitalismo não significa uma perspectiva tecnofóbica ou conservadora. O livro discute e deixa em aberto a possibilidade do uso de algumas das tecnologias presentes no bitcoin – especialmente o blockchain – a serviços de interesses populares e até de perspectivas revolucionárias. Se isso será possível, não sabemos: a única certeza, reforçada pelo livro, é a de que qualquer transformação social relevante passa por novos valores, novos mecanismos de decisão democrática, por outra forma de organização socioeconômica e por outra relação do Estado com a sociedade. Fora dessas perspectivas, qualquer bravata que defenda a ideia de que é possível atingir mudanças relevantes a partir de soluções “apolíticas” ou puramente tecnológicas, como o bitcoin, fracassará.

A leitura de Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico é imprescindível não só para aqueles que querem entender o funcionamento e as perspectivas relacionadas à criptomoeda, mas sobretudo para todo o público que busca compreender melhor – a partir de elementos concretos – a dinâmica do capitalismo contemporâneo.



Rodrigo Santaella Gonçalves é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: rodrigo.santaella@ifce.edu.br.

Como Assim AVC?: uma história sobre recomeçar / Lísia Daniella

A experiência de quase-morte e os desdobramentos de uma vida enclausurada no próprio corpo são os panos de fundo da história real de uma jovem de 30 anos que sobreviveu a dois acidentes vasculares cerebrais, condenando-a ao prognóstico da tetraplegia e da síndrome do encarceramento. A jovem, aparentemente saudável, fora dos possíveis fatores de risco para a ocorrência de um AVC e vivendo o auge do seu trintênio, morreu para renascer e ser jogada à prisão sem grades de si mesma. Incapaz de falar e movimentar qualquer membro do corpo, mas plenamente consciente, recolheu os cacos que sobraram da sua vida e, com a ajuda fundamental da família e dos amigos, se libertou do cárcere, rasgando o roteiro do papel dramático e inservível que os médicos lhe entregaram para construir o próprio roteiro de superação da sua tragédia particular. A vida pulsando dentro de si foi o primeiro degrau da escada mental que ela utilizou para sair do buraco de incertezas em que se viu após o coma. Você descobrirá de que forma os demais degraus foram construídos, a partir de um verdadeiro tour pelas situações mais agonizantes que uma pessoa totalmente incapaz experimentou. Esta história é dela, mas é também de todos que, de alguma forma, sobreviveram e aprenderam o que é a vida após uma tragédia particular, seja você vítima, parente, amigo, profissional da área da saúde ou apenas um curioso por histórias de sobrevivência e recomeços. Você vai explorar o desconhecido e imprevisível mundo da reabilitação física e emocional, pelo relato pessoal de quem sobreviveu e recomeçou uma nova vida. Esta é uma história que fala de fé, mas também de desânimo; que fala dos anjos e demônios que surgiram durante a sua trajetória, mas também do que eles lhe ensinaram; que fala dos dias sem cor e sem gosto, mas dos dias mais coloridos e saborosos que é possível vivenciar; que fala sobre quem acreditou ter perdido tudo, mas na verdade só encontrou o que realmente precisava para recomeçar. Ela recomeçou e você também descobrirá que pode recomeçar, seja lá o que tenha lhe feito paralisar. Está pronto?

Drogas para adultos / Carl Hart

‘Drogas para adultos’: uma perspectiva sem preconceitos

Carl Hart

18 de junho de 2021

O ‘Nexo’ publica trecho de livro em que o autor – com base na ciência e em experiências pessoais – argumenta a favor dos benefícios do uso recreativo de entorpecentes e explora os efeitos da criminalização desta prática

Em 10 de dezembro de 1986, James Baldwin foi o orador principal no almoço do National Press Club. Apenas 44 dias antes, entrara em vigor a Lei Antidrogas. Baldwin aproveitou a oportunidade para criticar a nova legislação, referindo-se a ela como “uma lei ruim”. Ele previu que ela exacerbaria a discriminação racial e “só seria usada contra os pobres”. Além disso, instou especificamente os políticos negros a pressionarem pela legalização das drogas em nome de seus eleitores. Dezesseis dos vinte membros do Black Caucus do Congresso votaram a favor da nova lei.

Naquela época, eu servia na Força Aérea dos Estados Unidos e estava estacionado na Royal Air Force Fairford, em Gloucestershire, Inglaterra. Fazia parte da unidade policial responsável pela segurança da base. Eu nem sempre havia sido policial, nem queria ser. Mas, em 14 de abril de 1986, nosso país bombardeou a Líbia, em retaliação a atos de terrorismo patrocinados pelos líbios contra soldados e cidadãos americanos. Os aviões KC-135 que forneciam reabastecimento aéreo para os bombardeiros saíam da nossa base, então estávamos em alerta máximo para contra-ataques.

Como parte das medidas aprimoradas de segurança básica, fui selecionado, para meu desgosto, para reforçar a polícia de segurança. Na minha nova função, patrulhava a base com um rifle M16, às vezes por dezesseis horas seguidas. Eu odiava esse trabalho. Mas fazia o que me mandavam porque havia jurado obedecer aos meus superiores, bem como apoiar e defender a Constituição contra todos os inimigos dos Estados Unidos, externos e internos. Eu não me considerava particularmente patriota. Estava apenas fazendo o que era certo, do mesmo jeito que era certo não matar outro ser humano, não mentir e não usar drogas. Era certo e simples.

As observações de Baldwin, na minha opinião, estavam erradas. Fiquei num silêncio descrente, ouvindo com atenção enquanto ele apresentava seus argumentos. Sua sugestão de que a polícia aproveitaria a oportunidade — proporcionada pelo novo estatuto — de prender seletivamente os negros era difícil de aceitar. “Se as pessoas não usarem ou venderem drogas”, pensei comigo mesmo, “elas não serão presas.” Naquela altura da minha vida, embora tivesse sido parado pela polícia mais de uma vez por nenhuma outra razão além da cor da minha pele, eu ainda era ingênuo demais para entender plenamente que certas comunidades eram superpoliciadas e submetidas a um tratamento injusto pela polícia.

Os comentários ponderados e não condenatórios de Baldwin sobre drogas e legalização eram diferentes da narrativa pública dominante. O fato de ele não condenar as drogas parecia estranho. Suas opiniões eram desconcertantes. Elas certamente não eram formadas pelos incontáveis anúncios de utilidade pública que traziam poderosas advertências antidrogas feitas por celebridades. “Fumar crack é como colocar uma arma na boca e apertar o gatilho”, dizia um desses anúncios, cuja mensagem assustadora deixou uma impressão indelével em mim. Eu temia que as recomendações de Baldwin levassem a mais drogas e caos em bairros com poucos recursos, como aquele de onde eu vinha.

As opiniões de Baldwin sobre as drogas pareciam irresponsáveis. Fiquei perplexo e decepcionado. Ele era um dos poucos pensadores que eu realmente venerava. Seus escritos tinham me ajudado a ver que os americanos brancos, enquanto grupo, não eram meus inimigos, ainda que, de vez em quando, alguns me frustrassem pra caralho. As palavras de Baldwin expressavam essa relação com nossos irmãos e irmãs brancos de forma eloquente: “Nunca consegui odiar os brancos, embora Deus saiba que muitas vezes desejei matar mais de um ou dois”.

Sei agora que Baldwin estava certo sobre as drogas, assim como estava certo sobre tantas outras questões importantes. A aplicação da Lei do Crack levou, de fato, a uma discriminação racial desenfreada em prisões, acusações e condenações. Os efeitos dessa prática repugnante continuam a reverberar até hoje. Eu levaria mais de uma década para tomar consciência dessa injustiça, apesar de vários de meus próprios amigos e parentes terem sido presos e cumprido pena por violar essas leis.

Essa percepção me fez repensar meus pontos de vista sobre as drogas e sua regulamentação. Tenho vergonha de admitir isso agora, mas houve um tempo em que acreditei sinceramente que as drogas destruíam certas comunidades negras. Isso apesar de, no mesmo período, ter comparecido a um sem-número de eventos sociais organizados por colegas brancos, geralmente em comunidades brancas, nos quais quase sempre eram servidas substâncias psicoativas — tanto legais quanto ilegais — como lubrificantes sociais. A disponibilidade de drogas era abundante. No entanto, elas não destruíram essas pessoas brancas ou suas comunidades. As pessoas a quem me refiro são algumas das mais responsáveis e respeitáveis que conheço. São cientistas, políticos, educadores, ativistas, empresários, artistas, personalidades da mídia e muito mais. Elas são seus filhos, seus irmãos, seus pais, seus avós. São você… e eu. E são usuários de drogas, embora na maior parte usuários enrustidos.

Carl Hart é professor nos departamentos de psicologia e psiquiatria na Universidade Columbia e pesquisador do Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York. Seu livro anterior “Um preço muito alto”, publicado no Brasil pela Zahar, recebeu o PEN/E.O. Wilson Literary Science Writing Award.

https://www.nexojornal.com.br/estante/trechos/2021/06/18/%E2%80%98Drogas-para-adultos%E2%80%99-uma-perspectiva-sem-preconceitos

O alimento dos deuses / Terence McKenna


1. Deveria ser criado um imposto federal de 200% sobre o tabaco e o álcool. Todos os subsídios governamentais para a produção do tabaco deveriam ser cortados. Os alertas nas embalagens deveriam ser reforçados. Devia ser cobrado imposto federal de 20% sobre o açúcar e seus substitutos, e todo o apoio para a produção do açúcar deve ser interrompido. Os pacotes de açúcar também devem conter avisos, e o açúcar deve ser um tópico obrigatório nas matérias sobre nutrição nos currículos escolares.
2. Todas as formas de cannabis devem ser legalizadas e deve ser cobrado um imposto federal de 200% nos produtos derivados da cannabis. A informação quanto ao conteúdo de THC no produto e as conclusões atuais relativas ao seu impacto sobre a saúde devem estar impressos na embalagem.
3. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial devem parar de fazer empréstimos aos países que produzam drogas pesadas. Somente a inspeção internacional e o certificado de que o país está cumprindo a determinação poderá restaurar a possibilidade de receber empréstimos.
4. Deve haver um controle estrito sobre a fabricação e a posse de armas de fogo. É a disponibilidade irrestrita de armas de fogo que tomou o crime violento e o abuso de drogas problemas tão relacionados.5. A legalidade da natureza deve ser reconhecida, de modo que seja legal a posse e o cultivo de todas as plantas.
6. A terapia psicodélica deve ser legalizada e a cobertura dos seguros de saúde deve incluí-la.
7. A regulamentação da moeda e da atividade bancária deve ser reforçada. Atualmente a ligação dos bancos com os cartéis criminosos permite a lavagem de dinheiro criminoso em grande escala.
8. Há uma necessidade imediata de apoio maciço à pesquisa científica relativa a todos os aspectos do uso e do abuso de substâncias, e um compromisso igualmente maciço com a educação pública.
9. Um ano após a implementação dos quesitos acima, todas as drogas ainda ilegais nos/ Estados Unidos devem ser descriminalizadas. o intermediário é eliminado, o governo pode vender drogas 200% acima do preço de custo, e esse dinheiro pode ser colocado num fundo especial para pagar os custos sociais, médicos e educacionais do programa de legalização. O dinheiro resultante dos impostos sobre álcool, tabaco, açúcar e cannabis também pode ser colocado neste fundo.
10. Também a partir desse período de um ano devem ser anistiados todos os infratores em casos relativos a drogas, caso não tenham envolvimentos com armas de fogo ou assalto criminoso.

O homem que confundiu sua mulher com chapéu: e outras histórias clínicas / Oliver Sacks

O homem que confundiu sua mulher com chapéu: e outras histórias clínicas 

Oliver Sacks


O DISCURSO DO PRESIDENTE


Mas o que estava acontecendo? Uma gargalhada estrondosa explodiu na enfermaria dos pacientes com afasia, justamente na hora do discurso do Presidente, e todos eles estavam tão ansiosos para ouvir o Presidente falar…

Lá estava ele, o velho Sedutor, o Ator, com sua hábil retórica, seus histrionismos, seu apelo emocional — e todos os pacientes rebentando de rir. Bem, nem todos: alguns pareciam perplexos, outros, indignados, um ou dois, apreensivos, mas a maioria parecia achar graça. O Presidente estava, como sempre, induzindo — mas, ao que parecia, induzindo-os mais ao riso. O que eles poderiam estar pensando? Poderiam não estar compreendendo o Presidente? Ou talvez estivessem compreendendo bem demais?

Com frequência se dizia que aqueles pacientes — os quais, embora inteligentes, sofriam a mais grave afasia receptiva ou global, sendo por isso incapazes de compreender as palavras em si —, não obstante sua condição, entendiam quase tudo o que lhes era dito. Seus amigos, parentes e enfermeiras, que os conheciam bem, às vezes mal conseguiam acreditar que eles eram mesmo afásicos.

Isso acontecia porque, quando lhes falavam com naturalidade, eles percebiam uma parte ou quase todo o sentido. E naturalmente as pessoas falam com naturalidade.

Assim, para comprovar a afasia, o neurologista precisava fazer um esforço extraordinário para falar e comportar-se de maneira não natural, para remover todas as pistas não verbais — tom de voz, modulação, ênfase ou inflexão sugestivos — além de todas as pistas visuais (expressões, gestos, todo o repertório e postura que em grande medida são inconscientes e pessoais); era preciso suprimir tudo isso (o que podia exigir um disfarce total da pessoa e a total despersonalização da voz, chegando ao ponto de usar um sintetizador de voz computadorizado) a fim de reduzir a fala a meras palavras, uma fala inteiramente destituída do que Frege denominava “cor do tom” (Klangenfarben) ou “evocação”. Com os pacientes mais sensíveis, era apenas mediante essa fala altamente artificial, mecânica — meio parecida com a dos computadores de Jornada nas estrelas — que se podia ter certeza absoluta de sua afasia.

Por que tudo isso? Porque a fala — a fala natural — não consiste apenas em palavras, nem (como julgava Hughlings Jackson) só em “proposições”. Ela consiste na expressão vocal — em exprimirmos tudo o que queremos dizer, com todo o nosso ser — e isso, para ser entendido, exige infinitamente mais do que o mero reconhecimento das palavras. Essa era a chave para a compreensão dos afásicos, mesmo quando eles não conseguiam entender coisa alguma das palavras em si. Pois, embora as palavras, as construções verbais em si mesmas possam nada transmitir, a linguagem falada normalmente é impregnada de “tom”, envolta em uma expressividade que transcende o verbal; e é precisamente essa expressividade, tão profunda, variada, complexa, sutil, que é perfeitamente preservada na afasia, embora a compreensão das palavras seja destruída. Preservada — e muitas vezes mais do que isso: fantasticamente intensificada…

Também isso se evidencia — com frequência do modo mais surpreendente, ou cômico, ou dramático — para todos os que trabalham ou convivem estreitamente com afásicos: parentes, amigos, enfermeiras e médicos. A princípio, talvez, não vemos grandes problemas; e depois percebemos que houve uma grande mudança, quase uma inversão, em sua compreensão da fala. Alguma coisa perdeu-se, foi destruída, é verdade, mas algo surgiu em seu lugar, intensificou-se imensamente, de modo que — pelo menos nas expressões vocais imbuídas de emoção — o sentido pode ser totalmente percebido mesmo que todas as palavras se percam. Isto, em nossa espécie, o Homo loquens, parece quase uma inversão da ordem normal das coisas; uma inversão, e quem sabe também uma reversão, a algo mais primitivo e elementar. E essa talvez tenha sido a razão por que Hughlings Jackson comparou os afásicos aos cães (uma comparação que poderia indignar ambas as partes!), embora ao fazer isso ele estivesse pensando principalmente nas incapacidades linguísticas de afásicos e cães e não em sua sensibilidade notável, quase infalível ao “tom” e ao sentimento. Henry Head, mais sensível a esse respeito, usa o termo “tom do sentimento” em seu tratado sobre a afasia (1926), e ressalta que essa capacidade é preservada, e muitas vezes intensificada, nos afásicos.

É por isso que às vezes tenho a sensação — todos nós que trabalhamos de perto com os afásicos a temos — de que não se pode mentir para um afásico. Ele não pode compreender nossas palavras, e portanto não pode ser enganado por elas; mas o que ele compreende, é com uma precisão infalível: a expressão que acompanha as palavras, a total, espontânea e involuntária expressividade que nunca pode ser simulada ou falsificada, como se pode fazer tão facilmente com as palavras…

Reconhecemos isso nos cães, e com frequência os usamos com esse objetivo — para detectar falsidade, malignidade ou más intenções, para nos dizer quem é confiável, quem é íntegro, quem diz a verdade, quando nós — tão suscetíveis às palavras — não podemos confiar em nossos próprios instintos.
E, o que os cães podem fazer nesse campo, os afásicos também podem, e em um nível humano, imensamente superior. “A pessoa pode mentir com a boca, mas com o ar afetado que vem junto ela não obstante diz a verdade”, escreveu Nietzsche. Para esse ar afetado, para qualquer falsidade ou impropriedade na aparência ou postura do corpo, os afásicos têm uma sensibilidade fantástica. E quando não conseguem enxergar a pessoa — isso vale especialmente para nossos afásicos cegos — eles têm um ouvido infalível para todas as nuances vocais, para o tom, o ritmo, as cadências, a música, as mais sutis modulações, inflexões, entonações que podem dar — ou tirar — verossimilhança à voz humana.

É aí, portanto, que reside sua capacidade de compreensão — de perceber, sem palavras, o que é e o que não é autêntico. Assim, eram os ares afetados, os histrionismos, os gestos falsos e, sobretudo, os falsos tons e cadências da voz que pareciam falsos àqueles pacientes sem palavras mas imensamente sensíveis. Era àquelas incongruências e impropriedades extremamente flagrantes, até mesmo grotescas (para eles) que meus pacientes afásicos reagiam, não logrados e impossíveis de lograr pelas palavras.

Por isso riram do discurso do Presidente.

Se não se pode mentir para um afásico em razão de sua sensibilidade especial à expressão e ao “tom”, poderíamos então perguntar: o que ocorre com os pacientes — se é que existem — que são desprovidos do senso de expressão e “tom” mas preservam, inalterada, sua compreensão das palavras: os pacientes do tipo exatamente oposto? Temos alguns pacientes assim, também na ala dos afásicos, embora tecnicamente eles não tenham afasia e sim uma forma de agnosia, em especial a chamada agnosia “tonal”. Para tais pacientes, tipicamente, as qualidades expressivas da voz desaparecem — tom, timbre, sentimento, todo o caráter — enquanto as palavras (e construções gramaticais) são compreendidas perfeitamente. Essas agnosias tonais (ou “aprosódias”) estão associadas a distúrbios do lobo temporal direito do cérebro, enquanto as afasias ligam-se a distúrbios do lobo temporal esquerdo.

Entre os pacientes com agnosia tonal em nossa ala dos afásicos, que também ouviam o discurso do Presidente, estava Emily D., que tinha um glioma no lobo temporal direito. Ex-professora de inglês e poetisa de algum renome, com uma sensibilidade especial para a linguagem e grande poder de análise e expressão, Emily D. podia representar a situação oposta: como o discurso do Presidente soava para alguém com agnosia tonal. Emily D. não era mais capaz de distinguir se uma voz exprimia raiva, alegria, tristeza — coisa alguma. Como as vozes não tinham mais expressão, ela precisava olhar para o rosto das pessoas, suas posturas e movimentos ao falar, e fazia isso com uma atenção, uma intensidade que nunca apresentara antes. Mas acontece que isto também tinha limitações, pois, devido a um glaucoma maligno, ela estava perdendo rapidamente também a visão.

Ela verificou, então, que o que precisava fazer era prestar a máxima atenção à exatidão das palavras e do uso das mesmas, e insistir para que os que a cercavam fizessem o mesmo. Cada vez menos ela era capaz de entender a linguagem informal ou a gíria — a fala do tipo alusivo ou emocional — e precisava que seus interlocutores falassem em prosa — “palavras apropriadas nos lugares apropriados”. Descobriu que a prosa podia compensar, em certa medida, a ausência da percepção do tom ou do sentimento. Dessa maneira ela pôde preservar, e até mesmo intensificar, o uso da fala “expressiva” — na qual o significado era dado inteiramente pela escolha e referência adequada das palavras —, apesar de ficar cada vez mais perdida quando se tratava de fala “evocativa” (na qual o significado é dado totalmente pelo uso e sentido do tom).

Emily D. também ouviu, com uma expressão petrificada no rosto, o discurso do Presidente, acolhendo-o com uma estranha mistura de percepções intensificadas e defectivas — a mistura exatamente oposta à de nossos afásicos. O discurso não a estimulou — nenhum discurso a estimulava mais — e tudo o que era evocativo, genuíno ou falso, passou-lhe despercebido. Privada da reação emocional, teria ela (como o resto de nós) se deixado arrebatar ou engolido o que fora dito? De jeito nenhum. “Ele não é convincente”, ela comentou. “Não fala em prosa apropriada. Seu uso das palavras é inadequado. Ou ele tem deficiência cerebral ou alguma coisa a esconder.” Portanto, o discurso do Presidente não funcionou também para Emily, em razão de seu senso intensificado do uso formal da linguagem, da prosa apropriada, assim como não funcionou para nossos afásicos, que têm surdez para as palavras mas possuem sensibilidade intensificada para o tom.

Eis, portanto, o paradoxo do discurso do Presidente. Nós, normais — ajudados, sem dúvida alguma, por nosso desejo de ser enganados —, de fato nos deixamos enredar (“Populus vult decipi, ergo decipiatur”). E tão astutamente foram combinados o uso enganoso da palavra com o tom enganoso, que só os que tinham dano cerebral ficaram ilesos, não foram logrados.