Metáfora

(ou Do fim ao começo)

Eram umas dez horas da manhã quando chegamos Miguel e eu ao bar. Dispostos estávamos a beber até a queda se preciso fosse. E preciso era. Sentíamos que necessitávamos beber, pois acabávamos de nos encontrar imersos em tristes e melancólicos fins. Ângela e eu, Marisa e Miguel, se é que vocês entendem: fim. Quando um fim se faz presente n’alma, quando ele se consolida é o momento de senti-lo de todas as formas existentes, para se crer realmente nele. O álcool nos dá outra percepção de um fim. Por vezes místicas, algumas dramáticas, outras tantas depressivas simplesmente e numas mais, indiferente até, não se esquecendo é claro das faces cômicas, trágicas ou tragicômicas quando possível.

Dois eram os fins a serem sentidos pelo amargo do álcool: o meu e o de meu amigo Miguel. Duas mulheres seriam condenadas, apedrejadas ou talvez ovacionadas por nossas bocas alcoolizadas. Ou até quem sabe, nem isso.

Pedimos uma cerveja. Sentamo-nos defronte ao mar – havia mar onde nos encontrávamos. Cada um sorveu seu primeiro gole de cerveja como um católico faz o sinal da cruz ao adentrar uma igreja, num ritual sagrado. Estava estupidamente gelada a cerveja, que mereceu um comentário estúpido saído de minha boca:

– Gelada como meu coração!

– Boa! Esta foi muito boa, merece um brinde: os nossos corações antárticos! – Pediu Miguel. E brindamos àquela estupidez.

O sol já dourava forte nossas costas. O mar quebrava à nossa frente em ondas azuis absurdas e um vento sutil balançava os cabelos, a toalha da mesa e até fez voar um guardanapo. Miguel tendo observado o vôo do guardanapo atentamente quebrava o silêncio aéreo do vento:

– Uma vez Vinícius, há muito tempo atrás, você falou do amor como se fosse o mar em um poema teu, me lembro bem, foi num sarau lá na universidade. Metáfora interessante, elegante talvez… embora um tanto desgastada, mas e hoje? Dez anos depois, ainda acredita nisso?

– Se pergunta é porque discorda ou crê mais ainda. Responde primeiro.

– Talvez por causa da bossa, da poesia em geral, sempre acreditei nisso. Mas hoje penso diferente. Vê esse vento que sopra agora? É assim que vejo o amor.

– Fugidio? Passageiro? Fugaz? – Questionei.

– Possivelmente. Fugaz poderia ser a palavra: vento. – Ele olha para o horizonte. – Amor… é o vento que vai em busca do horizonte e se perde em obstáculos medíocres. Uma hora derruba até prédios, outra não atravessa papel e sempre desejando o impossível, nunca se contenta com a existência que possui. Sempre querendo o infinito.

– Não tinha feito tal comparação ainda – disse um tanto pensativo –, faz sentido…

Pedimos outra cerveja e ficamos perdidos em nossos pensamentos. Eu a interiorizar o que Miguel explanara. Miguel com cara de vazio, de horizonte infinito almejado, pensando em vento.

Ao longe o mar dançava em suas ondas. Parecia que o vento se declarava ao mar e este, estremecia em ondas. Ambos querendo o infinito.

Quebrando tal quadro avistamos uma cena, num certo ponto do início do almejar infindo (ou no mar se preferir) acontecia uma cena curiosa. Era uma imagem de dramaticidade cômica: um bombado, desses grandões malhados, subia e descia à água pedindo ajuda. Provavelmente era câimbra. Logo uma multidão se juntou para olhá-lo e dois outros grandões entraram n’água para socorrer. Tiraram-no com dificuldade – ele devia pesar uns cem quilos –, estava inconsciente ao que parecia. Fizeram-lhe uma respiração boca-a-boca. Sobreviveu.

– Será mesmo que me enganei com a metáfora? – Perguntei a Miguel.

– O cara não morreu…

– Eu também não, mas que o mar pode matar pode. Assim como o amor.

– Assim como o vento…

Calamo-nos novamente. Pedimos outra cerveja e a bebemos em silêncio. E a quarta, e a quinta e a sexta. Quebrei o silêncio na oitava:

– Sabe o que escrevi outro dia? Que estava enganado, que o mar não era o amor e sim, que o céu era o amor.

– Essa eu não vi. Explique.

– Na época em que escrevi não sentia que dizer ser o mar o amor era restringi-lo muito. Aí olhei para o céu e pensei: “isso é muito infinito” e, como estava no auge do amor, disse: “o amor é o céu”. Ele te envolve, te dá o ar, te faz viver. É azul – como o mar –, é lilás, é negro, ou seja, é felicidade, é amenidade, é treva. E creio que agora acertei na metáfora.

– É… – balbuciou Miguel um tanto confuso – desbancou meu vento…

Continuamos a beber. Eram cinco da tarde quando tomávamos a vigésima cerveja. Não conversávamos muito durante as horas passadas. Entornávamos diálogos de olhos encobertos por óculos escuros e monologávamos cada qual consigo mesmo. De quando em quando, uma saída estratégica para verter a cerveja no banheiro era o máximo de movimento brusco que fazíamos, quando não, era o esticar de braços para chamar o garçom.

Olhamos para os cascos amontoados ao nosso lado, os quais pedimos encarecidamente que os deixassem ali, como que para demonstrar a todos que aquelas cervejas bebidas simbolizavam a quantidade de lágrimas que não vertíamos por conta de nossos fins tão nobres quanto nossos egos.

Não estávamos de todo embriagados, apenas mais tontos do que o normal, talvez mais por causa da fome – não comíamos desde as nove da manhã – do que pelas cervejas. Pedimos uma porção de carne de sol e dois caldos verdes. Os devoramos rapidamente e decidimos por consenso que era hora de tomar algo mais forte. Pedimos duas caipirinhas só para adocicar um pouco nossas bocas e para iniciarmos com as bebidas quentes.

Tocava um chorinho no som do bar, afinal havia um revival do choro na atualidade e minha veia poética começava a acordar, desperta pela doçura do sopro da clarineta, pelo elegante espetáculo do pôr-do-sol que se produzia aos nossos olhos e pela sutileza do momento que o álcool provocava. Lancei mão de uma caneta e escrevi num guardanapo:

do mar só resta o espelho ao sol

ao vermelho que desponta

às quinze para as seis

do céu só resta ser o amor

e ser negro agora

ser-me luz difusa a um fim

Miguel leu em voz alta. Olhou para o céu e para o horizonte que ardia em hidroxélica paisagem lilás:

– Engraçado não termos pronunciado esta palavra até agora.

– Qual palavra? – Disfarcei.

– Fim. – Respondeu Miguel. – Será por medo de que não paremos mais de pronunciá-la?

– Não sei.

– Será que ela realmente existe?

– Pode ser como o começo. Será que ele existe, uma vez que pelo começo já se começa algo que vai ter fim? Ou talvez pelo fato de que, para começar, já se infere um fim?

– E o que é o fim, senão um possível começo não percebido?

– É… – Despenquei em nirvanicamente, não saber se pensava algo ou não. Olhava o horizonte (sempre o horizonte!) que se entorpecia de negrume e viajava nas notas do bandolim que chorava um chorinho muito triste, mas irremediavelmente esperançoso, como creio ser o chorinho: uma música triste, mas com uma esperança de que por si, por suas próprias notas, a felicidade há de se tornar possível.

Respirei fundo, engoli junto com um belo gole de caipirinha um choro que parecia querer se formar. Olhei a primeira estrela que despontava ao céu e fiz um pedido, recordando minha infância, onde sempre fazia o mesmo pedido. Pedia para namorar uma certa garota que nunca me dera bola. Como eu era (sou) idiota! Dessa vez pedi paz.

– Ainda fazes pedidos à Dalva? – Inquiriu-me Miguel.

– Não consigo parar de crer no mundo que forjei quando criança, ele ainda me é muito caro.

– É difícil nos livrarmos de nós depois de tanto tempo em companhia própria…

Depois desse lampejo psicanalítico começamos a observar que o bar enchia. Vários tipos: grupos em excursão, casais de todos os tipos, boêmios solitários virando uísques e mais uísques, amigos em férias de uma repartição pública qualquer… vários tipos por fim. Olhei a mesa ao meu lado e reparei duas moças muito simpáticas que tomavam algo que, creio eu, fosse Campari.

Uma tinha o cabelo muito negro e curto, quase raspado. Um rosto fino e pequeno com os traços um tanto quanto índios – uma dessas morenas irreais. Os olhos muito negros eram verdadeiras jabuticabas. Mas a boca é que se destacava naquele conjunto, o lábio superior levemente avantajado em relação ao inferior e ambos curtos. Não era uma boca que irradiasse desejo, mas sim lábios miúdos que denotavam paixão. Por fim, era uma morena dessas que não se vê em qualquer lugar: uma beleza que quase incomodava.

Sua companheira era uma moça deveras branca, sardenta, com um rosto comprido, parecia uma nórdica. Os olhos verdes muito claros e os cabelos ruivos, encaracolados e muito grandes aparentavam uma naturalidade não mais vista nos dias de hoje, onde qualquer um pode transformar-se em qualquer um (basta ter os requisitos necessários – $). Ela possuía um nariz tão perfeito que não cri quando o vi e até ele denotava ser natural a ela. Não posso dizer o porquê, mas tudo nela parecia ser realmente dela, nada implantado, pintado ou levantado e ela era imensamente linda.

Repensei minha primeira impressão e conclui que não só simpatia elas possuíam, mas profunda beleza também. Notem que uso o termo profunda beleza, não querendo dizer que estas fossem bonitas, mas sim que superavam tais conceitos, iam ao âmago, às profundezas da estética.

Fora o espetáculo que produziam àquele contraste, de peles, de bocas, de sorrisos; só se inferia um traço comum: as duas vestiam-se muito simplesmente. Vestidos floridos até a coxa, sandálias de couro e comportados brincos e colares hippies, nada de mais, mas um conjunto lindo com toda a certeza.

Olhei Miguel. Ele as olhava. Dei uma risadinha e perguntei:

– Há quanto tempo elas estão aí?

– Não sei. Realmente não sei. Só fui vê-las agora…

– O pior é que eu não olhei muito para esse canto. – Elas se encontravam ao nosso lado, mas do lado contrário ao mar e como se sabe, só víamos aquele horizonte aquático naquelas horas passadas.

– Será que pensam que somos veados?

– Espero que não… ou melhor, sei lá! Nos dias de hoje…

Comecei a reparar que a morena me olhava de quando em vez e eu fugia assustado quando via que ela me fitava, estremecia com aquele olhar. A ruiva também me encarava com um sorrisinho velado no canto da boca. Estremeci mais, meu ego foi às alturas: as duas me observavam!

Depois dessa pequena euforia inicial dei-me conta de que os mesmos olhares endereçados a mim tinham como destino meu companheiro Miguel, contive-me um pouco e perguntei:

– Será que ainda sabemos flertar?

– Não sei… acho que não se esquece. Né?!

– Sei lá, dez anos de fidelidade até de olhos… é difícil saber agora.

– Mas não é possível! Façamos o seguinte: vamos ficar observando mais um pouco, depois a gente age.

– Certo, mas vamos pedir um vinho também. Garçom! – E o garçom veio e nos trouxe a carta de vinhos. Pedimos um português seco que nenhum de nós dois conhecia. Caro, muito caro, mas felizmente aqueles eram dias de bonança e fartura, como nunca existiram antes ou depois.

Começava no palco o preparativo para um cantor que faria um show de voz, violão e mixers em cima de um repertório puído de MPB de boteco que agora, trinta anos depois de quando ele já havia se saturado, nos dava um repertório idiota, cheio de eletroniqueces estúpidas. Olhei aquele violão e pensei que deveríamos pedir para deixar-nos tocar uma música e em seguida a ofereceríamos às duas vizinhas de mesa. Contei a idéia para Miguel e ele se entusiasmou. Decidimos que ele cantaria e eu tocaria. Depois de um desacordo quanto a música – ele queria “Na ilha de Lia, no barco de Rosa” e eu “Rapte-me Camaleoa” –, optamos pela escolha dele.

Levantamo-nos e pedimos gentilmente para deixar-nos mostrar nossos dotes musicais antes do cantor começar sua apresentação. O moço do som não quis ser deselegante com os fregueses que mais lhe davam dinheiro naquele dia e permitiu que nos apresentássemos. Sentei-me à cadeira e Miguel ficou de pé. Tocamos e cantamos a música sem fitá-las. Por certo que só os músicos idiotas cantam olhando para quem se deseja. O olhar só deve vir durante os aplausos, pois assim se ganha mais pontos, afinal o objeto de desejo é contemplado por aqueles que são ovacionados (percebi que ainda sabíamos flertar). E assim o fizemos, declarando afinal que oferecíamos a música às duas vizinhas de mesa.

Voltamos confiantes. Havíamos tocado bem, não desafinamos, demos até um toque intimista à melodia. Estávamos com nossos egos beirando a imprudência. Sorrimos às moças e elas nos sorriram de volta, levantaram e passaram por nós como se não nos tivessem visto.

Àquele momento não entendi nada, senti uma vergonha profunda e fiquei vermelho qual pimentão. Olhei Miguel e ele estava um tanto desconcertado também. Rapidamente pus-me a pensar se teríamos perdido assim, tão rápido quanto foram nossos minutos de sucesso ao palco. Não, não era possível, estávamos confiantes… Cri que iria entrar numa de deprê, mas foi aí que uma voz feminina fez-se ao ar acompanhada de um violão suave:

– “Chega de tentar dissimular e disfarçar e esconder…”.

Olhei para Miguel e não me contive:

– Olha! São elas no palco!

– Não boto fé! Será que cantam para nós?

– Gonzaguinha irmão! Elas estão cantando Gonzaguinha para nós!!

– Não acredito…

E cantavam. A morena cantava e a ruiva tocava. Ambas magníficas, excelente técnica e apuro no toque pessoal. Eu me extasiava.

– “Não dá mais pra segurar: explode coração!”

As aplaudimos de pé, aí então finalmente elas nos olharam. Sentamo-nos e as duas vieram à nossa mesa:

– Podemos juntar as mesas senhores? – Perguntou a morena.

– E também as contas…? – Completou a ruiva.

– Será um imenso prazer tê-las por companhia – disse eu.

Sentamo-nos de maneira que não pensei ocorrer: eu e Miguel um de frente para o outro e as duas também, uma de frente para a outra. Um clima sem graça prostrou a todos e rimos um riso alto, daqueles que exorcizam situações constrangedoras.

– Nos apresentemos, não? – Perguntou a ruiva. – Meu nome é…

– Não! Espere… – Interrompi-a. – Desculpe, mas vamos fazer algo diferente, façamos o seguinte: quem estiver a sua direita escolhe um nome para você e assim por diante. Quando estivermos mais íntimos, se é que isso ocorre, não que eu não o queira, declaramos nossos nomes reais, ok?

– Gostei muito da idéia! – Disse a morena. – Comecemos pela Eli… ou melhor, por ela – aponta para a ruiva – e ele escolhe um nome para ela.

– Bem – iniciou Miguel fitando-a –, esses cabelos, esses olhos. Não sei, vou te chamar, ou melhor, vamos te chamar de Rita.

– Gostei – disse ela –, nunca fui Rita. Rita, Rita. – Ela repetia o nome como se fosse um eco. – Gostei: Rita!

– Agora sou eu. – Disse Miguel olhando a morena.

– Hum, deixa-me ver… que tal Milan?

– Como o Kundera? – Perguntou Miguel.

– Exato! Milan será teu nome. Agora o meu, vamos diga – e olhava no fundo dos meus olhos.

– Iracema.

– Uau! Virgem dos lábios de mel. Adorei! Pegou legal esse nome. Agora é você El… digo, Rita. Escolha um nome para ele.

– Pensei Moacir, quando você falou Iracema, mas não… não combina, esse nome traz muita dor, você não passa isso. – Ela pausou um pouco e depois continuou. – Que tal Menino do Rio?

– Excêntrico, mas confesso que gostei. Me deu até arrepio… – Falei tentando ser engraçado e todos ensaiaram uma risadinha de apoio. – Mi… – quis falar Miguel… – lan? Menino do Rio eu, quem diria?!

Naquele instante tive uma idéia. Peguei quatro guardanapos e escrevi os quatro nomes neles: Rita. Milan, Iracema e Menino do Rio. Sabia que a partir daquele momento, íamos representar um papel cada qual. Coloquei os guardanapos na frente dos respectivos atores e todos concordaram que era uma boa idéia. Olhei Miguel – agora Milan –, e sorri. Tenho certeza que ele compreendeu o motivo de minha risada.

Secamos o vinho e pedimos outro. Suave dessa vez, pois seco só agradava ao paladar de Rita e ao meu, sendo o doce um consenso.

– Vocês estão nesse hotel? – Perguntei.

– Sim. Hoje é nosso penúltimo dia. Só mais amanhã de curtição e domingo vamos embora. – Respondeu-me Rita.

– Pois então hoje e amanhã hão de ser dias de deixar a sincronia dos acasos guiá-las, não? – Perguntei encarando Rita.

– Com certeza – se adiantou Iracema –, o que vier há de ser bem vindo.

– Só uma curiosidade – perguntou Milan –, há quanto tempo vocês duas bebem aqui, digo hoje, nesse bar?

– Creio que chegamos umas duas horas depois de vocês – disse Rita –, porque vimos vocês lá no restaurante tomando o café da manhã e indo para cá.

– Fomos comprar umas lembranças – completou Iracema – e resolvemos vir aqui ver se encontrávamos vocês dois, mas convenhamos… vocês são bem lentos heim?

– Por acaso não nos viram? – Perguntou Rita.

– Não queria entrar nesse assunto agora, porque até a avistarmos, e isso era uma sete horas, nossas cabeças só pensavam em uma coisa…

Calei-me pensando que Milan completaria, mas surpreendentemente foi Rita tomou a iniciativa:

– Deixa eu adivinhar: foi o fim de um relacionamento?

– É tão óbvio assim? – Questionei.

– Só um pouquinho – disse Rita –, o tanto pra sentir o ar de dissabor em suas faces.

Esta Rita tinha alguma coisa de misterioso, um ar bem mais formal do que o de Iracema e aparentava uma sapiência maior que qualquer um de nós. Ainda não sei porque pensei isso, mas tinha quase certeza naqueles instantes. Provavelmente era por causa do seu olhar. Era arrebatador e ao mesmo tempo suave, como se soubesse o que emanar a cada instante, em cada situação.

– Como sabe? – Perguntou Milan, referindo-se ao fato do fim.

– Fora a cara de desengano dos dois, escutávamos a conversa de vocês e ouvimos quando falaram sobre pronunciar ou não a palavra fim. – Explicou-nos Rita.

– Como duas lavadeiras mui atentas! – Acrescentou Iracema.

– E nós, dois burguesinhos idiotas chorando dores de amores! – Riu-se Milan.

Conforme o tempo corria, o papo ia ficando mais amigável, ajudado pelo vinho, pelo bom tempo que soprava uma brisa fresca, pela lua que crescia e principalmente por Iracema que sabia ser muito engraçada. Nunca havia visto uma mulher com tamanha facilidade para fazer os outros rirem. Riamos muito. A noite prometia muita coisa, nem pensava em fim. Tudo parecia começar de novo.

Aquelas duas eram muito especiais, não se encontra uma dessas a qualquer hora e em qualquer local. Tenho certeza de que há dez anos atrás me apaixonaria pelas duas e viveria em constante aflição até que uma decidisse por mim. O engraçado era que naquele momento eu não havia sequer escolhido uma para um flerte mais direto. E mesmo assim, queria que a noite terminasse com uma das duas ao meu lado numa cama, como que para mostrar que mesmo após o fim eu ainda estava vivo, que poderia ter tudo sobre controle mais uma vez.

Eu olhei para Milan e ele parecia dizer o mesmo. O bar já ia fechar e fomos ao banheiro, aproveitei para conversar com Miguel e não com Milan:

– E aí, gosta de alguma?

– Vou te confessar uma coisa, as duas são lindas, inteligentes, interessantes, mas eu preferia ir dormir.

– Não sei. O que ganharíamos indo dormir? E o que perdemos indo?

– Mas e vice-versa?

– É, ta. Vamos fazer assim tentemos nos interessar por uma especificamente, se até as duas não der, vamos embora, OK?

– Eu fico com a Iracema.

– Como?!

– É, já que é assim eu quero a Iracema.

– Tudo bem, tudo bem… acho que a Rita é uma boa companhia esta noite.

Saímos e pedimos uma garrafa de uísque, fomos procurá-las e quando as encontramos elas estavam com uma de vodka em mãos. Rita dizia saber onde haveria um show e que ela colocava todo mundo para dentro. Entramos no carro de Iracema, Milan ao seu lado e eu e Rita brincando de palitinho com a vodka no banco de trás.

Chegamos ao local pretendido ao show, mas não havia movimento algum. Rita desculpou-se, crendo não estar mais certa do dia do evento. Elas então sugeriram uma praia mais longe do burburinho caótico dos centros e nos deslocamos a uma praia a uns vinte quilômetros de onde nos encontrávamos. Não era uma praia muito grande, mas era limpa e bonita. Havia algumas rochas nas proximidades e a água estava calma, mansamente servia de espelho aos céus. Perto de onde estávamos havia restos de uma fogueira, Milan e eu juntamos mais alguma madeira que por perto se espalhava e acendemos a fogueira. Iracema tirava um violão do porta-malas e começava a afiná-lo. Rita molhava seus pés na água. Eu deitei-me ao lado da fogueira e olhei as estrelas, suspirei fundo e me forcei por crer: “a vida ainda é”. Milan sacou de sua gaita e entoou uma melodia deveras melancólica, mas muito linda. Notas límpidas, um som claro, nada de conturbação de iniciante. Com certeza ele estava praticando muito depois de seu fim.

Rita aproximou-se, sentou-se ao meu lado e deitou-se em meu colo. Contemplei aquele rubror capilar e afaguei-lhe os cachos. Iracema acabava de afinar o violão quando disse:

– Tenho uma idéia. Cada um vai cantar ou tocar uma música e depois diz o motivo pelo qual escolheu, OK?

– Boto muita fé – disse Milan –, eu começo. – Ele pegou o violão e começou:

“Eu já esqueci você, tento crer

Nesses lábios que meus lábios sugam de prazer

Sugo sempre, busco sempre a sonhar em vão

Cor vermelha, carne da sua boca, coração…”

Ele cantou como nunca o vira cantar antes. De certa forma entendi o porquê daquela música, mas eu queria ver o motivo que ele daria àquela música. Sabia que quem estava na memória de sua pele naquele instante era Marisa e seja lá o que ele falasse negando isso, seria mentira.

– Uau! Arrepiei até. Não conhecia essa música – disse Iracema em tom de entusiasmo –, quem canta?

– João Bosco, a música é dele e do Wally Salomão – explicou Milan –, eu escolhi essa música porque creio que você pode dizer que vai esquecer as coisas, relegá-las à poeira que se vai com o vento, mas dentro de você, na sua pele, nada se apaga. E eu não quero apagá-las de minha pele.

– Nossa! Profundo… – falou Iracema pedindo o violão –, não conheço muito João Bosco, mas vou tocar uma que, pelo menos para mim, não perde em nada para esta, é mais ou menos assim:

“Já te vejo sair por aí

Te avisei que a cidade era um vão

Dá tua mão

Não faz assim

Não vai lá não…”

Cantou com maestria Chico Buarque. Aplaudimos-na de pé:

– Obrigada! Mas diz se essa música não é bem atual: as vitrines, a luz, a cidade, é só um vão… sei lá, adoro essa música. Acho que hoje, dois mil e dezessete já… está bem atual.

– É uma das minhas preferidas do Chico – disse eu –, se não, “a” preferida. Agora é você Rita.

– Bem – levantou-se de meu colo e pegou o violão –, lá vai:

“Todos acham que eu falo demais

E que ando bebendo demais

Que essa vida agitada, não serve pra nada

Andar por aí, bar em bar, bar em bar…”

Com toda a certeza, essa havia sido a melhor: triste na medida, nem forçada, nem desmedida, nem faltando. Foi o “Demais” mais na medida que já escutei em toda a minha vida. Quase sussurrado, mas ainda assim gritado como uma cantora de jazz dos anos cinqüenta. Genial! Contive-me e disse:

– Nem precisa explicar o motivo. Depois dessa interpretação…

– Eu também nem iria ter mesmo… – disse Rita voltando ao meu colo –, mas agora é você Menino do Rio…

– Hum, deixa-me ver, eu pensava em uma música, seria “Trem das cores” do Caetano, mas pensei outra que, não é que me agrade mais, mas com certeza me marcou a infância. Vou explicar o motivo desde já – me desculpei –, tinha eu uns dez, onze anos quanto me encantei por três cantores em especial: Chico, Raulzito e Cazuza. Minha mãe tinha uns vinis lá em casa e eu os escutava quase todos os dias e uma música me marcou muito, ela é algo assim:

“Perto do fogo, eu queria estar perto do fogo, umbigo de um furacão e no peito um gavião…”

Cantei à capela, sem violão. É óbvio que cantei aquela música em especial não só por me ter feito recordar minha meninice, e sim, pois mesmo com trinta e cinco anos, minha meninice continuara quase intacta. Escolhera aquela música sabendo que o “eu quero ser uma flor nos teus cabelos de fogo” comoveria Rita a ser-me por àquela noite, como certamente ela já era. Assim, necessidade não havia em brincar com o quer dela, mas brincava.

Sentir desejo de a ter realmente eu não sentia, era mais algo de conquista simplesmente, ou de adentrar em relacionamento perigoso só para me machucar e ver o quão vivo me encontrava, pensava em fazer aquela pequena apaixonar-se por mim estando eu indiferente, só para ver do lado de fora o que se passara comigo até o fim que amargava ainda em minha boca. Ah, meu espírito maquiavélico estava prostrando-se em mim, queria ter poder em minhas mãos e usufruí-lo da melhor (ou pior!) maneira possível.

Milan e Iracema levantaram-se e foram para beira do mar, ficamos sozinhos eu e Rita. Ela me olhava estranho, parecia estar triste, mas não uma tristeza de falta de seratonina no cérebro, ou algo como lágrimas de álcool: ela parecia triste por mim. Não me pergunte como sei isso, mas sentia assim. Ela me olhava com olhos de mágoa: cheios de amor, arrependimento, amargura e lágrimas. Algo em mim a deixava triste.

– Você quer ser uma flor em meus cabelos de fogo? – inquiriu-me ela – Ou quer somente brincar?

Engoli o que ela disse e quase ia proferir mais mentiras. Quase lhe disse que ela estava me ofendendo com aquela pergunta, mas me contive. Falei:

– Ia mentir, mas vejo que não merece. Realmente estou aqui como num grande jogo. Há poucos minutos deu-me uma vontade de te ter em minhas mãos, como um bebê, que lhe dá toda a necessidade de amor e cuidado. Queria que você se apaixonasse perdidamente por mim.

– Seu bobo! – Falou Rita já com um sorriso ao rosto. – Não vê que apaixonada eu já estou?

– Como?! – Perguntei visivelmente assustado.

– Não percebe? Desde o primeiro momento em que te vi eu te amo, talvez desde antes, pois já predizia tua existência. – Disse ela ficando cara a cara comigo.

– Você está brincando, não?! Que conversa esquisita…

– Te digo que antes de qualquer coisa, não foi amor à primeira vista. Não creio nestas besteiras. Foi amor à primeira sentida, entende? Assim que te senti, te amei: fácil e indolor. Só doeu agora há pouco, quando senti que me mentia.

– Não estou entendendo… – Pensei que ela estava embriagada, mas na realidade, embora já tivéssemos bebido deveras, ela não aparentava. Então começou a me olhar no fundo dos olhos, parecia querer entrar na minha alma, acariciou minha face e me beijou. Beijei-a também. Entreguei-me. Foi um beijo confuso, intenso. Ela tinha uma boca suave, esse era o termo, não uma boca de lábios macios ou molhados, mas suaves – leves –, e ao mesmo tempo, de uma intensidade tão forte que senti um calafrio na espinha.

De repente ela parou de me beijar, eu continuava de olhos fechados e de boca semi-aberta tentando entender tudo o que passava. Quando abri os olhos, vi um sorriso tão puro que quase acreditei que ela me amava. Deitei na areia e fiquei olhando o céu. Passou uma estrela cadente, tentei fazer um pedido. Não consegui.

– E então? Ama-me agora? – Perguntou ela deitada em meu peito. – Ou pelo menos acredita em mim?

– Não sei, não estou entendendo nada. E também não faço força alguma para entender.

– É, as vezes, não é preciso se entender as coisas – ela falava pausadamente acariciando os cabelos do meu peito. Por vezes só se complica tudo ao meter a razão onde, por momento, ela não merece ter vez. Amo-te. Simplesmente isso basta.

– Sei lá… – balbuciei esta fuga afagando-lhe os cachos.

– Aquilo que você falou um tempo atrás, sobre o amor… acredita daquela forma? O céu, o infinito… até arrepia pensar.

– Sim, a quantidade de mistérios existentes nas profundezas do mar é elevada ao infinito no céu. E amar é um mistério muito grande. Olhe você, por exemplo… embora creia eu – me contive um pouco –, você esteja brincando comigo.

– Assim você me magoa! – Falou ela visivelmente transtornada apoiando-se sobre os meus braços e a me olhar. – Não vê que eu te amo demais para suportar esse tipo de insinuação?

– Não vê que dá medo?!! – Bradei com ela.

– Calma meu Menino do Rio, não quero te assustar, longe disto… só quero demonstra meu amor. Quer que eu lhe dê alguma prova?

– Não precisa…

– Mas mesmo assim eu vou dar. – Levantou-se. – Sabe nadar?

– Sei.

– Dou-te minha vida neste então. – Tirou o vestido e nua foi para o mar. Não entendi nada. Fiquei olhando ela entrar ao mar. Ia adentrando, adentrando… até que sumiu. Assustei-me. Levantei e cheguei mais perto da água. Olhei ao lado e não vi os outros. De repente desponta Rita berrando por ajuda, dizendo se afogar. Hesitei um pouco, mas percebi depois que não era brincadeira e me atirei ao mar. Pensei um monte de besteiras ao mesmo tempo: que uma mulher se atirara ao mar por minha causa, que ela me amava, que ela brincava comigo, que eu era um idiota, que eu que deveria morrer… Quando cheguei até ela percebi que ela realmente havia se afogado, e com muita força a levei até a praia. Meus músculos estavam exaustos e fiquei tonto por instantes. Ela tossia muito e parecia fraca.

– Você é louca?!!! – Perguntei eufórico.

– Desculpa, eu não sei nadar…

– Meu Deus do céu! Por que você fez isso?

– Eu te falei, queria te provar o meu amor. Dei-te minha vida e você a aceitou. Você está a um passo de me amar também.

– Não! Você é louca! Eu nem sei mais o que penso.

Fiquei olhando aquela garota nua, molhada, respingando água, tremendo de frio e dizendo me amar. Beijei-a na boca e ela me abraçou forte. A levei para a fogueira, dei-lhe o vestido e fui ao carro buscar um agasalho para ela e para mim. Quando voltei, ela estava sentada com o queixo sobe os joelhos dobrados e contemplava a fogueira que ainda ardia. Juntei mais alguns gravetos e coloquei também uma tora grande de madeira para aumentar o fogo, ela estava um pouco verde e começou a estalar forte.

– Adoro o fogo. – Disse a ela quando me sentei ao seu lado. – É algo muito forte. – Parei e me recordei de um verso: – “Amor – chama, e, depois fumaça…” – citei Bandeira e a abracei –, tem certeza do que dizes?

– Nunca amei ninguém como te amo agora… cada amor é um amor.

Ela me abraçou e beijou meu pescoço. Arrepiei. Beijei-lhe a boca novamente e seus lábios leves levaram-me a pensar em amá-la também. Que fosse por aquela noite somente, mas amá-la como nunca amei alguém. Foi aí que me lembrei de Ângela. Mulher louca. Mais louca que essa Rita. Ia do amor ao ódio num piscar de olhos. Era assim que eu sentia com Ângela. Ela me amava com o amor mais belo do mundo às segundas e me odiava como o diabo à cruz nas terças e assim se passavam as semanas até que chegava o domingo, dia certo para a indiferença.

Lembrei desse amor louco e fiquei um tanto com raiva de mim. Agüentar dez anos dessa loucura não faz bem a nenhum ser humano. Misturando a essa raiva ouvi essas duas palavras vindas da boca de Rita:

– Te amo.

Tão suaves quanto aqueles beijos que nós produzíamos. Tão leves como aqueles lábios. Tão verdadeiros como seus olhos. Pensei comigo: “acho que a amo”, depois estranhei: “devo estar louco”. Mas depois desdisse: “ah, que se dane, vou amá-la” e a amei deveras. Abracei-a ao meu peito e perguntei em seu ouvido.

– Qual teu nome Rita?

– Elis.

– Nossa… lindo. É o nome da minha terceira filha.

– Você tem quantos filhos?

– Quatro: Gabriel, Ravi, Elis e Lia.

– Não aparenta… onde eles estão?

– Com a mãe.

– Com o fim?

– Justamente. O fim de uma vida vivida, passada e esperada. Ou não!

– Por que “ou não”?

– Porque a vida que vivíamos eu e Ângela, já está dentro de mim, já me faz. Ela não acabou. Ângela já me é.

– Eu não me importo. Sou bissexual mesmo… – E Rita, ou melhor, Elis, deu uma risadinha gostosa e beijou-me de novo. Comecei a cochilar e num clima de sonho, via Elis flutuando e lhe disse:

– Elis… também te amo!

– Eu sei… – disse ela me acariciando a face. – Mas qual é o seu nome?

– Ah sim, é Vinícius.

– Vinícius. – Ela disse meio balbuciando. – Vinícius… Vinícius… – Repetia como um eco.

* * * *

Dormi profundo. Acordei meio zonzo do álcool passado, olhei ao redor e não encontrei ninguém. Sentei-me na areia e percebi então como estava frio. As nuvens encobriam o sol, o mar estava nervoso e o vento forte jogava cinzas em mim. Levantei e fui até o carro. Não estava lá, só vi Milan, ou melhor, Miguel sentado em uma pedra.

– Irmão! Que noite! Que noite! – Bradava Miguel. – Há quanto tempo não vivia uma noite dessas!

– É… – respondi seco. – Cadê as garotas?

– Eu não sei. Saí com a Raquel…

– Raquel? – O Cortei.

– Sim, a Iracema se você quer assim. Saí com ela caminhando pela praia. Trocamos confidências, tocamos violão e gaita. Discuti jazz… você noção disso? – Perguntou-me eufórico. – Discuti jazz! Hoje em dia isso é raro. Cara, estou apaixonado.

– Mas onde elas estão?

– Não sei. Agente fez um sexo louco nas areias, no mar, nas pedras, aí depois eu dormi. Quando acordei não encontrei mais ela…

Caminhamos um bocado e nos certificamos de que nossas carteiras estavam intactas. Confirmado que elas não eram ladras, continuamos a caminhar. Alguns quilômetros à frente, conseguimos uma carona. Miguel não conseguia parar de falar de sua pequena Raquel, tão linda e inteligente e como ele não pudera fazer nada, a não ser se apaixonar. Estava tão empolgado que nem se lembrou de me perguntar como tinha sido comigo. Não liguei. Não estava a fim de falar. Chegamos ao hotel. Só uma coisa se passava na minha cabeça: Rita, ou melhor, Elis.

Fui para o meu quarto e tirei a roupa. Tomei um banho demorado para tirar a areia, as cinzas e o sal do corpo. Quando voltei do banho peguei minhas roupas e vi que no bolso do agasalho havia um bilhete de Elis. Dizia assim:

Meu Menino do Rio Vinícius,

Assim como o amor veio, foi.

Não te amo mais (você já me faz).

Se quiser me encontrar algum dia o endereço está atrás.

Beijos,

Elis (Rita dos cabelos de fogo)

Li o bilhete umas dez vezes. Não acreditava. Olhei o endereço no verso: Salvador. Nesse instante não pensei muito.

* * * *

Metáfora.

Ah viver de mar! Quem dera entrar, nadar, afogar e ficar boiando novamente…

Ah viver de céu! Quem dera voar, cair, levantar, alçar vôo novamente…

* * * *

Peguei o telefone e liguei para o quarto de Miguel. Acordei-o:

– Miguel?

– Fala…

– Arruma as malas.

– Por que?!

– Vamos para Salvador…

Just another day

Aquele dia tudo estava a dar errado. O ônibus meticulosamente adiantado, a chuva no meio do caminho, o outro ônibus quebrado ao longo do percurso, a chuva durante a espera do outro ônibus, o outro ônibus mais que lotado, os dentes sem escovar devido ao atraso, o bêbado a cair no meu ombro, um crente pregando desesperadamente. Enfim, um dia que parecia se perder nele mesmo.

No trabalho um caos normal, o mesmo filho da puta a me maldizer no telefone, o café já findo, a ressaca latejando e o computador – outro filho da puta – me sacaneando. Um dia comum essa parte.

Meio-dia. Correria. Almoço na universidade: fila imensa e desmedida. Dia atípico. Almoço sozinho. Nenhum companheiro saudoso a me amainar os ânimos. Só as mesmas figuras carimbadas de uma intelectualidade acadêmica medíocre.

Peguei minha pasta de soja, que as pessoas insistem em dizer que se chama torta, meu arroz integral e as duas rodelas de tomate e fui comer. Como sempre, nada de farinha ou pimenta. Só aquele suco estranho, pretensamente de goiaba, a amaciar a árdua descida da pasta de soja.

Nada muito diferente até então. Um dia de tudo dar errado, normal. Constatava esse fato quando me deparo com uma figura despretensiosa em minha frente. Cabelos grandes e encaracolados, um tanto molhados, um tanto desgrenhados. Comia devagar e aparentemente num estado catatônico. Cada garfada parecia um divagar sobre o nada. Os óculos grossos e arranhados não deixavam ver ao certo onde estava seu olhar, se a contemplar alguém ou se a se reter no vão dos segundos.

Levantei-me objetivando pegar mais suco e notei sua caneca vazia. Ofereci-me para pegar mais suco. Aceitou. Ao voltar notei sua face quase chorosa. Perguntei se estava bem. Falou que sim. Era uma figura bastante bonita com certeza e sua melancolia trazia algo ainda mais sutil a sua beleza.

Perguntou-me qual meu curso. “Geografia”, falei. Disse-me que era interessante e se iniciou um papo a toa sobre Milton Santos. “Grande figura”, conclusão final. O almoço também se findava.

Lembrei que não havia perguntado seu curso. “Pedagogia”, falou. Sorri no canto da boca. Pensei se teria novamente relações pedagógicas com alguém. Tremi na base. Maria não me era algo bom hoje. Até repensei sua beleza.

Saímos do restaurante e perguntei se fumava. Respondeu-me que tinha cigarro. Tomamos café e fumamos. Notei que sua boca era bem bonita. O cigarro dava ainda outra tez sensual àquela cena. Pouco falamos, olhávamos a chuva.

Perguntei seu nome. “Otávio”, respondeu. Achei que combinava. Foi nessa hora que me recordei que eu era heterossexual. Até então não me havia percebido que flertava com um homem. Estranhei-me. Notei sua barba e seu piercing e me ative: realmente ele era bonito.

Não sabia se estava mesmo interessado nele. Afinal, até onde eu sabia, era heterossexual. Ele começou a me falar que a chuva estava bonita. E na realidade, a chuva estava bem bonita. Recordei-me de uns versos de Drummond: “Maria chuvidia”. Sem sentido algum, recitei-os baixinho, quase para mim. Otávio completou: “E agora Juca? A chuva acabou…” e me fitou nos olhos.

Deu-me um beijo leve na boca e disse: “tenho de ir, a hora é pouca”. Consenti àquele beijo. Enquanto ele se ia, lembrei-me de perguntar: “porque você está triste hoje?”. Voltou devagar, pôs a mão no meu ombro e falou: “terminei com minha namorada ontem e hoje parecia que tudo ia dar errado…”. Sorri e murmurei: “entendo, entendo…”.

Trocamos os telefones, beijei seu rosto e falei: “se preocupa não, o mundo é assim mesmo: humano, demasiado humano” e fui embora.

Quando o dia acabou, deitado em minha cama, constatei: “e o dia nem foi bom”…

Itinerário de uma paixão

A moça estava naquele banco de madeira pequeno, ao lado das crianças debruçadas sobre a rede que as pipoqueava para lá e para cá. Ela olhava lentamente meninos e meninas que ainda eram portadores de uma ingenuidade genuína correndo saborosamente pelo pátio do casarão. Fitei-a por longo tempo, enquanto o sol derretia tudo o que conseguisse pousar. Ela fitava tudo sem se deter facilmente, olhava sem olhar, nem se atinava com o meu atinar. Parecia longe, alhures dali, mas ainda assim, completamente imersa ali.

Era uma moça um tanto morena, calmamente morena, de tez lisa e límpida, de pele brilhante entre sombras e sóis, morena clara claramente de endoidecer. Seus cabelos lisos e pós-curtos caíam pelos ombros nus, como se fossem um colar castanho posto em derredor do pescoço.

Estava sentada em um banco de madeira baixinho que fazia curvar suas costas sem se poder precisar se seria apenas devido à ação da gravidade ou se por teimosia do peso da vida a se abater. As pernas cruzadas dentro da saia branca de florzinha indo até os lívidos pés calçados por chinelinhas, mostravam mais do que seria necessário mostrar. Não qualquer vestígio de roupas de baixo. Não. Nenhuma tara era possível àquele momento. O que surgia do entremear das pernas cruzadas eram panturrilhas redondas, lepidamente redondas, sinuosidade que ia desde as panturrilhas até os ombros nus, passando pelas ancas e quadris. Tudo ali nela serpenteava. Escorregavam facilmente os olhos de cima a baixo, sem nenhum obstáculo plausível, a visão nela fluía.

Havia ainda, talvez antes de tudo, um olhar absurdamente dócil, precisamente bonito, infinitamente azul, indefinidamente possível. Mansamente olhando o mundo, tomando posse de tudo o que pudesse se ater ao seu coração por meio do toque da visão. Seus olhos eram aquela coisa nunca antes vista ou imaginada. Quando por segundos tocavam os meus, abatia-se em mim a sensação de não cabimento e eu esvaecia o olhar até prostrar-se ao chão. Me perdia inteiro, como se chão não mais houvesse e só nuvens se fizessem abaixo de meus pés. Definitivos. Aqueles seriam provavelmente os olhos definitivos de minha existência.

Fiquei ali contemplando ela por uma meia hora de infinitude tal, que não poderia existir mensuração de tempo que desse conta de contar aquele caminhar do mundo rumo ao imponderável. Pensei junto aos meus botões se poderia existir essa tal história de amor à primeira vista. Senti que deveria me abrir às possibilidades e deixar o que a vida quisesse me dar adentrar de qualquer modo. Foi nesse momento que um trem azul desgovernado despedaçou meu coração e minha cabeça em um milhão de pedaços, sem ter noção de que em algum dia pudessem voltar a se juntar novamente. Deixei a entrega condoer todos os rincões possíveis do que eu podia chamar de eu.

Ela entrou de uma vez arrebentando portas, janelas, paredes, tudo o que se encontrava pela frente.

Quando saí do meu estado de frêmito passional, já era noite e as costas do dia viam arder um sol pesado a morrer vagarosamente na paisagem sertanicamente chapadina. Corremos vários e variados a tomar uma cerveja gelada procurando apaziguar o sentido do calor que nos derretia ensandecidos, quando de repente meu corpo sentiu: ela estava chegando. Como numa imagem de milagre, mais do que numa miragem, ela surgiu novamente: emanava um olor de flores frescas, possuía um semblante de calma e olhava o mundo com aquele olhar de que tudo poderia desabar, mas ela ainda estaria íntegra.

Não contive o sorriso em minha face e tudo se fez brisa boa em meio àquele calor de 40°. Ela sentou-se à minha frente e me consumiu com o olhar. Foi um olhar de quem deseja. Não que eu antevisse que ela me desejava, era antes um olhar de quem deseja e sabe que deseja. Eu apenas derretia.

Ela falou amenidades sobre a vida, sobre o mundo e eu não consegui produzir muitos sons que não fossem apenas o murmurar apaixonado e concordante com qualquer proposição. A mesa foi diminuindo, ficando pequena para tanta presença que quando eu me atinei só estávamos nós dois. A conta havia passado dos cem reais, não havia metade do dinheiro na mesa e eu realmente não ligava para aquilo. Só conseguia continuar a concordar e me apaixonar. Era fácil, era doce, essa tanta coisa que o amor faz.

Como o bar havia fechado, propus que passeássemos um tanto pela Lua, até o sono vir calmamente se depositar sobre nossas pálpebras. A Lua estava lenta e pouco movimentada, apenas mais uns dois casais no auge da paixão troteavam enamorados pelos vales e canais.

Lá em cima pousei tímido minha mão sobre a dela e ela aquiesceu com outro toque. Falei pra ela que existia a noite, o breu e mesmo o velado coração de Deus, fazendo minhas as palavras de Hilst, mas insisti que o desejo seria apenas uma asa, sem outro par que fosse necessário para poder voar. Ela passou os dedos em meus cabelos e disse que preferia pensar que a asa só era boa, que assim ela podia se aninhar. Eu sorri longamente para ela e ela, como num espelho, sorriu no mesmo compasso.

Falei pra ela da saudade, como se ficar na Lua eternamente fosse possível para nós dois e burlar a saudade fosse fácil esquecendo-se da distância. Ela me calou apontando a Terra e dizendo: “deixa a saudade e a distância pra quando elas existirem, sente só o vôo”.

Confidenciei que um trem azul havia me arrebentado em cacos pouco tempo atrás e ela me confidenciou que juntou um monte deles e que estavam em seu bolso. Tirou alguns pedaços e me mostrou, vi neles o que era preciso para se re-erguer e a abracei. Ela abriu minha mão e foi colocando caco por caco me mostrando: “olha, toma aqui um punhado de vida, de palavras, de encantamento, de calma, de afeto, de desejo… junta tudo e cola com vontade, eu estou aqui pra te ajudar”. Deitei em seu colo como um pássaro afastado do ninho e deixei uma lágrima de esperança molhar sua perna, tentei falar de algum dia e ela me calou novamente mostrando uma estrela cadente em sua mão. Peguei a estrela e a abracei forte, tentando transpô-la para o dentro do meu peito, quando ela adentrou inteira escutei o barulho da locomotiva acionando e um trem azul vindo cadenciado no rumo da estrela.

A estrela fez-se sol e entrou no trem azul que me veio até a cabeça e ela lá, já no todo da minha cabeça.

Falei-lhe que rasgaria qualquer rodovia para vê-la novamente, disse que ela transpassava qualquer noção de beleza, disse que faria até o que não fiz para que nosso mundo cálido se fizesse. Ela me contou que se emocionava com o meu olhar e eu que era ela quem emocionava todo olhar. Amei-a, pois, com um toque de vistas primeiras e a amei ainda ao lha saber. Dormimos abraçados ali mesmo na Lua, com sorrisos francos e corações já abertos ao fim. Sabedores da distância e pertencentes da saudade, mas não precisávamos falar sobre qualquer coisa, bastava apenas sentirmo-nos presentes um para o outro.

Despencamos da Lua ainda de manhã cedo, caí no meu quadrado de sempre e escutei quando ela pousou em seus morros. Gritei do alto do planalto o mais forte que pude gritar, soluçando a falta por todo o peito e de longe, lá das gerais, ouvi um eco lentamente aproximando-se com um beijo carinhoso no rosto.

Hoje vivemos dessa comunicação primitiva e mágica: eu lanço ventos de acalento e benfazejo daqui e ela me manda faíscas de presença urgente de lá. Encontramo-nos sempre no impossível dos sonhos e nos tocamos ao pousar as vistas nos pores-do-sol.

Espero, sem esperança alguma, o dia que me terá compaixão e me fará revê-la.

Impaciência, nervosismo e duas doses de preguiça

Marta esperava tranquilamente por Caio sentada junto ao balcão. Conversava com Tuco enquanto reparava na foto do Tim Maia que ficava emoldurada junto ao banheiro. Na foto, Tim olhava o bar meio de longe, meio de perto, parecendo que queria sacar o clima do boteco. Pensou longe que a sucessão dos tempos é uma coisa absurda. Esse mesmo bar, àquela época, as pessoas andando com precatas e meias, capangas dependuradas. Olhou ao redor, vários tinham capanga e precatas ainda. O tempo passa, mas a humanidade fica, pensou. E o espaço é só uma aglutinação de marcas humanas sujeitas a uma retroalimentação constante, completou.

Caio estava deveras atrasado. Marta já olhava com um ar de pouquíssimos amigos. De tanto cansaço resolveu pedir uma cerveja. Bebia tentando controlar a impaciência, o nervosismo e um pouco da preguiça. Esse cara nem é tanto assim, mas sei lá, parece ser razoável e tem uma barba boa, meditava enquanto dava uma ou outra olhada para o celular em cima da mesa procurando observar quantas horas seriam. Não tinha cara de quem faria a barba constantemente, Marta avaliava Caio mentalmente enquanto acendia um cigarro, buscando uma forma de estabelecer se tinha feito a escolha certa ao convidá-lo para o encontro.

Ainda fui eu a tomar a iniciativa. Que pelo menos tivesse sido ele. O mané deve estar se achando. Eram frases que pululavam à cabeça de Marta de quando em quando.

No meio do segundo cigarro, Caio chegou:

– Oi princesa, desculpe o atraso, falou Caio beijando o rosto de Marta.

– Tudo bem, nem estou aqui a tanto tempo. Mentiu Marta agora mais aliviada, mas um tanto ainda nervosa e com preguiça daquilo tudo. To aqui nessa, eu que me enfiei e ainda fico impaciente com a situação? Pensou enquanto pediu um outro copo para o Tuco. E o cara nem pede o seu próprio copo? Arrematou mentalmente.

Toda vez que Marta ficava nervosa sentia os nervos de suas mãos ficarem tensos e relaxados ao mesmo tempo. Era uma sensação estranha que lembrava um tremor, mas também parecia uma quentura, o problema era que começava a suar.

– Então, nem esquenta não que eu acho que vou tomar uma coca, disse Caio acendendo um cigarro.

– Você não bebe? Perguntou Marta.

– To dando um tempo. Tava bebendo demais, aí sabe como é, é melhor uma pausa e coisa e tal…

– Claro, claro. Mas você não se importa se eu continuar bebendo?

– Numa boa – Caio falou rindo um pouco – to dando uma pausa, mas não sou alcoólatra não. Não to em nenhum AA ou coisa parecida, se tivesse teria saído com você pra um restaurante, cinema e não para um bar…

– Claro, claro, repetiu Marta em conflito mental se o “oi princesa” inicial seria o mote da conversa ou se o papo ia se conduzir mais pra leveza do “não sou alcoólatra” final. Ela ainda estava com preguiça.

A conversa fluía razoavelmente, o cara no final era boa prosa mesmo, a cerveja descia fácil, o cigarro entrava e saia macio, as ideias se entrosavam. A barba dele era realmente boa, pensava Marta, já se sentindo sem preguiça alguma.

No meio da segunda cerveja, Caio resolveu tomar “só um uísque pra dar uma descolada na garganta”. Nesse mesmo momento vários conhecidos de Caio apareceram, o cara conhecia o bar inteiro na verdade, praticamente todo mundo. Não que aquilo fosse realmente incômodo para Marta, dava até um charme razoável ao sujeito, meio Don Juan, um certo arzinho vagabundo. Sempre aquela coisa das mulheres se encantarem por um anjo decaído, ela relativizava enquanto prestava atenção à conversa de Caio com o dono do bar.

A noite avançava, no amanhã ainda existia uma sexta-feira antes da redenção e o “só um uísque pra dar uma descolada na garganta” já tinha se transformado em cinco. A língua de Caio ficara num tal de grau de moleza que ela desacreditava um tanto, mas ainda assim um certo desejo pelo cara mantinha-se num alto grau de constância.

Ainda era cedo da noite, e o cara bebia bem, quando Marta reparou nas horas percebeu que se ela quisesse algo àquela noite com o maluco era melhor ela se arranjar logo, senão ela corria o sério risco de ficar sobrando na mesa, enquanto Caio trocava ideia com cada ser humano que adentrasse ao bar.

– Mas e então, esse bar tá ficando meio chato, não? Perguntou Marta com um olhar altamente desafiador para Caio e com as mãos pingando de suor.

– É, a gente pode ir pra algum outro lugar melhor mesmo… Concordou Caio.

– Tem um hotel meio vagabundo mas sem manchas estranhas nos lençóis ou nas paredes aqui perto…

– Nossa, esse convite eu aceito com toda a certeza, Caio disse com a língua parecendo o silvo de uma cascavel.

Pagaram as contas e foram ao hotel. O ambiente era bem decadente, ficava em cima de uma loja de tênis e a escada que dava acesso à recepção, que se constituía apenas de uma singela mesa, tinha uma luz parca que falhava. Quando chegaram à recepção o cara que cuidava dos quartos quase soltou um “Caio, a quanto tempo…”, mas se controlou assim que viu a cara de poucos amigos de Marta.

Entraram no quarto com um abrasador senso deslocalizado de não reparar em nada. O cara tem uma pegada boa pelo menos, Marta internalizava o processo querendo vencer o nervosismo ou a impaciência, afinal, preguiça naquele momento não havia. Rapidamente estavam nus, ela por cima dele, corpos arfavam num quarto vagabundo e desejavam um ao outro.

Puts, tava precisando mesmo disso hoje, Marta se agraciava enquanto percorria lentamente o corpo de Caio.

– Esse hotel só podia ter um isolamento acústico melhor, não preciso de forma alguma ficar escutando essa professora de orgasmos aí do lado, disse Marta esperando uma risada ou um “não esquenta com isso e presta atenção aqui”, vindo forte e bruto de Caio enquanto lhe agarrava. O estranho foi que nada aconteceu, o cara nem ao menos deu um sorrisinho. Ciente do que poderia ter acontecido, Marta olhou para o rosto do sujeito e viu a merda que acontecera: Caio estava dormindo.

– Puta que pariu, que merda, sentenciou Marta.

Marta ainda tentou em vão dar uma sacudida no cara, mas Caio apenas começava um ronco baixinho, meio tímido ainda. Com certeza aquilo viraria uma motosserra a qualquer hora, pensou.

Com a calma que Deus lhe deu, foi até o banheiro e tomou uma ducha enquanto resolveu algumas questões que haviam ficado em fulgor em seu corpo. Saiu do banho, fumou o último cigarro do maço de Caio olhando pela fresta do outdoor que tampava a visão da janela e maldizendo seu processo de escolhas, vestiu-se e saiu. Caminhou um bom tanto à esmo procurando internamente o seu processo bruto de novo. Sem autopiedade Marta, dizia de si para si.

Entrou no primeiro boteco que encontrou. Só tinha uma mesa com dois casais e um sujeito barbudo com um simpático ar de melancolia de fim de noite sentando junto ao bacão assistindo de rabo de olho o programa do Jô que começava. O sujeito passava freneticamente a mão na barba. O cara parece que tem piolho nessa barba, pensou Marta enquanto ficava de pé junto do balcão. Pediu uma cerveja. O cara que estava ao lado olhou para ela e disse:

– Sabe quando o que resta de uma noite é a sensação de que ela se resumiu a umas três míseras coisas?

– Quais seriam? Perguntou Marta fazendo com um sinal se poderia pegar um dos cigarros do maço que estava no balcão.

– Impaciência, nervosismo e duas doses de preguiça, disse o cara puxando um cigarro e entregando-o para Marta.

– Por que isso me parece tão familiar? Perguntou Marta enquanto acendia o cigarro e com um sorriso altamente controlado no canto da boca.

– Você poderia me explicar a sensação, que eu avalio se é algo próximo ou não, senhorita… Deixou no ar o cara, esperando que Marta completasse e passando os dedos no bigode.

– Marta.

– Muito prazer Marta, impaciente Paulo ao seu dispor, retrucou o cara enquanto servia Marta.

– Impaciente?

– Bom, desde já muito mais nervoso e com um pouquinho de preguiça, do que impaciente…

– Bom, Paulo, deixa só eu molhar o bico que eu te conto então, disse enquanto soltava um leve bocejo e sentia os nervos das mãos se contrair e relaxar ao mesmo tempo.

I Ching pela manhã

A poeira e os fiozinhos quando flutuam no ar em contraste com o despejar calmo do sol ao céu, trazem sempre aquele saudosismo estranho de que algo não fique do jeito que está, mas sim como já existiu em algum modo. A lentidão da manhã que os conduz estabelece algo ainda mais saudoso, mais distante. É como se o passar dos segundos confundisse-se com as partículas em suspensão e produzisse a própria lentidão, está que é a própria constatação da saudade.

O mundo de dentro de casa desanda em desalinho com os segundos do mundo do lado de fora. Há a ausência de si e de tudo. Só as partículas que se movem estaticamente no ar parecem ter vida, ter vez e, talvez, até voz. Dialoga-se com as partículas suspensas e brilhantes e elas falam uma língua muda, escrevendo palavras no ar, hieróglifos etéreos que se alteram a cada segundo.

Cada frase dita é uma verdade absorvida e ruminada pelos neurônios. Cada palavras perdida entre uma molécula e outra de oxigênio e gás carbônico é apenas mais uma partícula em movimento desalinhada, a percorrer um descaminho.

As verdades todas cabem dentro de partículas aleatórias, que mudam de trajetória a cada segundo. É como se o que fosse necessário saber seria apenas a irregularidade do traçado das partículas para daí, prever o futuro. Mas o que importa são as coisas que já existiram em algum modo. As que cabem realmente.

Acorda-se das partículas brilhantes e em suspensão facilmente: basta a consternação de uma melancolia qualquer que arrebata toda a possibilidade de que as coisas caibam em algo. Querer. Basta querer bem simples e sem engodos que se seja as próprias partículas. Talvez sendo apenas partículas possa-se caber melhor e de fato em algo.

Harry

Harry sempre usava os mesmos caracteres para escrever suas notas. Tinha esse apego por uma forma de letra que nada mais era que seu passado tão quisto e nunca vivido. Reminiscência do não acontecido no talvez uso de uma máquina de escrever. Quando colocava uma palavra ela saia como se fosse um documento de repartição pública na década de 1960, pura nostalgia desmedida e não concebida. Cada palavra ganhava a forma de uma dor que nunca tinha se passado e, mesmo, nunca havia sido.

Harry digitava sempre com a mesma fonte, usava sempre os mesmos símbolos e começava sempre com a mesma intenção: dizer algo especificamente a alguém. É certo que de quando em quando ele pensava em utilizar artifícios para que as palavras pudessem ser lidas por outras pessoas e que também as trouxessem algo mais que o percorrer dos olhos por sobre algumas letras à toa. Dissimulava palavras para todos enquanto transmitia sua verdade para alguém.

Harry não sentia neste fato o ato mero de ser mentiroso, afinal, escrevia simplesmente e de fato e se a alguém caberia mais que as particularidades da ligação da palavra à mente, isso não cabia a ele. Constatava esta proposição, mas não lhe competia a autoridade de se ater a ela, pois que escrevia também e somente.

Harry no fundo era um escroto, ao que sabia que o que quer que ele escrevesse seria filtrado como bem aprouvesse a quem lesse, já que todos e todas são ilhas a milhas de uma coerência num mar pleno de inteligibilidade. Sabia disso e dissimulava tantas vezes não saber. Escolha própria mesmo, daí não ser nem tanto um escroto, pois que se assumia, mas sim um louco, já que tal moralidade escapava a um aceno maior com qualquer intenção de manter-se íntegro.

Harry escrevia então para alguém. Alguém que poderia ter ficado para trás em alguma curva estranha, alguém que poderia ter se instalado sorrateiramente sobre seus devaneios, alguém que talvez nem existisse, mas que lhe marcava a presença de seu próprio ser no estado de então. Alguém com letra maiúscula: Alguém. Diferia do ninguém pelo fato mesmo da não existência não cabida e até mesmo por uma significação desmedida. Alguém que separava o objeto de sua escrita do resto do mundo e que já permitia para ele que classificasse o mundo de sua escrita em Alguém e Não-Alguém, dois pólos como no ímpeto – quase? – humano de estabelecer dualidades e dicotomias.

Harry entendia então que sua escrita baseava-se agora em alguns pressupostos: os caracteres de nostalgia, a dissimulação aos outros e outras, a – má? – intencionalidade de um escroto talvez louco e a destinação a Alguém. Já havia mais que um quê de motivação, havia a própria escrita neste então.

Harry passava para a parte mais primordial, quase que a essência de todo o fato. Harry buscava o quê dizer. Já havia prospectado toda a sua consciência na ânsia de trazer à tona o sentido e o significado de seus caracteres nostálgicos, mas perdia-se no ato mero de elucidar seu ímpeto de escrita. (A inconsciência então era domínio que nem se sonhava adentrar.) Suas letras escureciam-se no ocaso das linhas e ficavam pejadas de matéria inerte. Talvez tivesse fincado-se no mesmo lugar que a (in)definição de Alguém, na mesma curva estranha, mas talvez fosse o tanto que se dizer que o cegava a ver o além. Talvez o tanto (in)definisse os códices possíveis e não permitisse a dualidade do específico e do total, do particular e do universal.

Harry constrangia-se por não conseguir preencher o vão das letras, por ficar na intenção e na existência mera do ato de escrever. Harry queria ir além de seus atos e significar tudo para além dele mesmo, queria ser meta, ser para, ser trans.

Harry escreveu, por fim, assim mesmo: só ato, só fato – de fato –, só letras com caracteres saudosos, só intenção, só a escrita turva para Alguém. Harry escreveu e pensou que pelo menos isso lhe aliviasse a existência por alguns segundos. Conseguiu um bom tanto, desejou o imponderável e alcançou o que o ligava ao perdido do não vivido.

Harry sorriu ainda uma vez. Talvez Alguém também.

4176. Ficar e gritar

Faz assim. Fica e grita. A situação já está p

ar

a lá de tensa. Ir não vai adiant

ar .

Fic

ar

vai ser como se houvesse uma p

ar

tida p

ar

a bem próximo. Então, fica e grita. Mas grita bem alto. Grita p

ar

a que o mundo todo te alcance. Grita p

ar

a que nada mais possa fic

ar

entra-
vando o mundo. Grita até que suas cordas vocais se estilhacem e você fique sem voz, sem vez, sem nada e que fique.

Fica p

ar

a que o alumbramento do mundo possa servir aos seus interesses. Se entregue ao gosto pes

ar

oso do interesse pelo fic

ar ,

pois aqui é o reino do céu. Aqui é o mundo do reino encantado dos céus. Aqui é o céu. A gente mora dentro do céu e ele tem gosto de fogo queimando plantas no mês de junho. E ele tem gosto de fumaça. E fica. E se quiser grita.

Faz assim… Fica… Se precis

ar

grita. Mas não pega um ita no norte. Fica como ita firme cá. Fica como um belo pirá dentro do m

ar .

Se falt

ar

ar

eu vou est

ar

aqui p

ar

a lhe
ajud

ar.

Não vou te deix

ar

na π

or. (not to be)

Pode parecer estranho o que eu digo ou como eu digo. Mas diga que fica. E, se precis

ar ,

grita.
Mas não vai. Ainda.

Dos que vagam no meio da noite

Olhei-o disfarçadamente, de soslaio. Desavisadamente. Não queria que percebesse meu interesse. Olhei seu semblante cansado, havia ainda aquele ar de tristeza, mas não era mais o mesmo de antes, aquele ar de tristeza infantil, bobo. Agora era um ar destruidor de tristeza. Essa nova tristeza lhe entumecia a masculinidade. Outrora sua tristeza o amolecia, dando um contorno flácido à sua constituição. Agora era algo bruto. Talvez essa tristeza houvesse se aglutinado a um certo rancor ou a uma mágoa e nesse momento se ajustava em torno de uma superfície árida, sem fluidez. Seu rosto estava desértico e até a cor lembrava areia, só que sem qualquer minúsculo cristal de quartzo a reverberar alguma luz.

Ele não havia reparado que eu o olhava. Estava longe, longe, léguas. Não tanto ali, eu dele e ele de mim, mas de qualquer coisa, parecia ausente. Levava uma lata de cerveja à boca mecanicamente, intercalando um gole e um trago num cigarro. Aflitivamente descompromissado e perdido. Provavelmente não ouvia a música, a banda, o show. Parecia que a única coisa que lhe acometia era aquela tristeza. Retumbante. Agressiva e longe. Descompassava os pés com um pretenso ritmo que não ouvia.

Parei a poucos metros dele, queria e não queria olhá-lo. Fazia muitos anos. Será que eu ainda fazia parte daquela tristeza? Certamente algum tanto, ninguém passa incólume por um amor. Será que ele ainda era ele? Certamente não mais algum tanto, os anos atravessam alma e pele.

O pouco das nuvens no céu desmanchavam-se esfumaçando os tons violáceos do horizonte. Um frio outonal apavorava os meus ossos e o casaquinho verde de linha pouco me bastava. Um tremor percorreu minha espinha, talvez pelo vento, talvez porque pensei que os olhos dele me buscavam. Virei de costas e andei. Não queria beber, mas o impulso me conduziu a comprar uma cerveja.

Demorei delicadamente em cada ato: num tom alegre e de intimidade perguntei qual cerveja ela tinha, indecidi-me, pedi a de sempre, quanto é, mais barato, vai? sei, entendo. Abri a bolsinha de moedas com estampa da Índia. Ele que havia me dado. Quantos anos… Que bolsa boa. Paguei, abri minha cerveja e bebi, lentamente, quando me virei, ele não estava mais lá.

Minha mente se acalmou por não mais vê-lo, mas aquela sombra de que agora era ele que poderia estar me observando me arruinava a naturalidade. Media cado ato meu, minuciosamente, na intenção de que, se ele estivesse a me olhar, visse apenas o ondular da leveza que existe e insiste apenas em ser verdadeira. Havia um desejo secreto em mim de que ele ficasse mais triste ao contemplar a minha altivez genuína.

Mas, inadvertidamente, eu ainda o procurava nos cantos, de esguelha, percorrendo cada rosto na multidão. Não o encontrei. A poucos metros, avistei Rebeca, fui até ela e por lá fiquei, ainda catando rostos ao longe, sem vê-lo em canto algum. No fim do show peguei o carro sozinha, não dei carona pra ninguém. Numa calçada mais à frente foi que o avistei de novo, caminhando no meio da noite, sozinho, ainda com aquela novidade de tristeza. De fato eu já não o conhecia mais, podia ser qualquer pessoa agora. Certamente, era. Parei num semáforo, ele ficou quase ao meu lado. Não se virou, apenas continuou caminhando, suspirando profundamente, olhar fixo no horizonte adiante.

Alguém atrás buzinou pra mim, o semáforo ficara verde e eu não havia saído. Caí em mim e parti, ainda a tempo de vê-lo mais uma vez. Muito tempo se passara. Era apenas um desconhecido no meio do noite, indo do nada pra lugar algum.

Doce julho

Naquela época o ápice mesmo era fazer carrinho de rolimã. Silas dominava uma técnica apurada de produção. Vivia mentalizando projetos. Sempre perambulava em meio aos montes de entulhos detrás do colégio e da igreja, atrás de matéria-prima para a fabricação de seus carros, disputando espaço com vários moleques e algumas ratazanas em mamonais imensos. Um resto de velocípede era sempre valioso, pedaços de madeirites ou compensado só precisavam de uma lixada, banquetas quebradas podiam ser serradas, um pedaço de plástico podia se reverter em um bom aerofólio, tudo, enfim, podia ser utilizável de algum modo.

A época era julho, todos os moleques de férias, o céu azul muito louco, vento, pipas, cerol escondido da mãe, lâmpadas queimadas disputadas a tapa, passeios pelos bambuzais da erosão pra pegar vareta, mesada em papel de seda e linha 10, goma de polvilho pra selar.

Julho sempre representava uma redenção de algum modo: no meio do ano, enquanto todos trabalhavam, apenas os moleques dominavam as ruas. Jogo de bete em várias, golzinho com sandália, queimada e sua invariável aproximação inter-gêneros.

Vários redemoinhos iam e vinham lançando uma névoa castanha nos olhos. Sempre passava o tiozinho levando algumas vacas e bezerros pras chácaras atrás do asilo, onde, nessa mesma época reuniam-se várias crianças para roubar cana ou jaca.

Junto a julho ainda tinha aquele gosto bom das festas juninas que naquela época se realizavam apenas em junho: bombinha, traque, quentão escondido, correio elegante, cadeia do amor, sair vagando de quadra em quadra, conjunto em conjunto, atrás de uma festa junina displicente. E quando julho chegava sempre havia em quem se pensar: a doce flor de ipê da escola que só veria daqui um mês ou a rosa vermelha que quis lhe conhecer na quadra do colégio durante a grande festa junina – a da igreja.

Julhos: quentes de dia e frios de noite. Vento na medida. Batata na fogueira. As noites em volta das fogueiras eram sempre diferenciais. Os mais velhos deixavam os mais novos ficarem ali, enquanto diversos ensinamentos eram disseminados: a arte de ver prima pelada no banheiro, a dose de traçado pra espantar o frio, como zoar bem zoado um amigo, um cigarro estranho que rolava de mão em mão, um partilhar de mundo calmo num beco qualquer.

Silas amava os julhos, era apaixonado por Helen e Karen – “seria o ‘hein’ do final?”, ele se questionava –, e gostava mesmo de fazer carrinhos de rolimã. Seu melhor amigo Wesley – Nego, como preferia – estava sempre junto nas incursões que fazia aos entulhos e aos lixões. Cada viagem era uma aventura botânica (guerra de mamona), zoológica (guerra de tanajura), geológica (guerra de pedra), geográfica (polícia e ladrão, que sempre acabava em alguma dessas guerras).

Certo julho Silas e Nego resolveram fazer “o melhor carrinho”. O objetivo era levar “o melhor carrinho” para a corrida de carrinhos de rolimã, cujo trajeto se iniciava no início da quadra, ao lado da Banca do Seu Toinho e acabava na pista do colégio, totalizando quase 800 metros. A construção do carrinho foi primorosa, foram necessárias mais de seis incursões aos entulhos e lixões e ainda algumas invasões às obras do hospital em construção para conseguir toda a matéria-prima.

Depois de uma semana intensa de trabalho, “o melhor carrinho” estava pronto para testes. Nego e Silas brincaram o dia inteiro e concluíram que “o melhor carrinho” estava pronto para a competição. Na sexta-feira marcada estavam lá os dois, prontos a provar que eram os melhores projetistas de carrinhos de rolimã. Nego com uma blusa de goleiro do Botafogo, calça de moletom e uma joelheira que ele tinha achado no lixão colocada no joelho esquerdo. Ele seria a força-motriz do carrinho, ou o cara que dá o empurrão inicial. Silas usava um penico na cabeça – que encontrara no lixão e ao qual insistia haver lavado bem antes de usar – e resolvera ir sem camiseta “porque estava muito calor” no dia. Ele seria o piloto d’“o melhor carrinho”.

Havia seis carrinhos na disputa mais um patinete de rolimã – novidade na competição àquele ano. Quando foi dada a largada Nego empurrou com toda a velocidade possível seu amigo Silas dentro do carrinho, e “o melhor carrinho” logo tomou a dianteira. A direção de Silas com os pés era perfeita, desviara das britas no meio do caminho, escapara da cratera na pista do lado do colégio, já vislumbrava a vitória certa. Nos metros finais escutou um “Vai Silas!” muito forte e doce vindo do conjunto “E” da quadra. Ao olhar pra trás viu que era Karen que acenava e torcia. Naquele momento se sentiu o rei, com a vitória na corrida e o coração de Karen nas mãos. Perfeição maior só se conseguisse dar finalmente um beijo de língua naquele dia. O problema foi que a virada pra olhar Karen impossibilitou que visse a segunda cratera que havia na pista, do lado do armarinho Big Amor e que o prostrou ferozmente com a cara no asfalto, possibilitando apenas que ele visse a dupla da quadra 22 ganhar a corrida. Todo estatelado no chão, Silas pensou apenas que tudo doía pra caralho. À sua frente estava “o melhor carrinho” destruído e seu amigo Nego falando “porra, que diabo foi isso?!”.

“Tudo bem com você?” a voz doce veio de novo, “tudo” Silas respondeu. Era Karen que lhe ajudava a levantar. “Se apoia em mim que seu pé ta bem machucado”, ela disse. Saiu dali mancando e apoiado em Karen, enquanto Nego resgatava os pedaços do carrinho e dizia “a gente não ganhou a corrida véio, mas tu voou bonito, hehehe”.

Depois daquele dia as coisas mudaram um tanto. Na mesma noite, já de pé enfaixado, Silas foi até a quadra atrás do colégio encontrar Karen. Não deu seu primeiro beijo de língua, mas ficou a noite toda conversando com ela. Foi naquele julho que Silas compreendeu que havia feito uma escolha, no outro julho já não fez mais carrinho de rolimã, passou quase que todo o mês com a alma pós-festas juninas e rosas, margaridas, crisântemos, jasmins, flores de laranjeira, começaram a lhe subir cotidianamente à cabeça.

Descampado d’alma

A coisa não estava nem tensa nem difícil, nem amena nem tranquila, nem

nada nem além, mas ele queria saber algo um tanto sobre o que acontecia em sua vida.

Foi Júlia foi quem avisou, Marcelius é muito bom passa lá que ele fala tudo. Foi.

Chegou lá com a cara blasé de sempre aquele olhar de peixe caído observando a

quantidade infinita de enfeites que adornavam a casa de Marcelius, centrou a mirada

numa carranca enorme posta do lado do batente esquerdo da porta, lado oposto ao

vaso com a espada­de­são­jorge. Marcelius atravessou uma porta que dava para um

quartinho cheio de velas. Ele teve tempo de ver umas cabeças de bonecos dentro do

quartinho antes que a cortina de miçangas se fechasse num balanço sincopado. As

cabeças pareciam de cera se derretendo. Marcelius sentou­se à mesa, era um sujeito

corpulento, com um sem fim de tatuagens minúsculas naquele tom cinza aquoso de

cadeia em cima dos braços, uma camisa de seda vinho aberta até o umbigo, uma

barbicha de bicheiro e um sem número de colares, pulseiras e enéis, todos muito

prateados, muito dourados, muitos. Marcelius esfregou uma colônia de cheiro

extremamente doce nas mãos, na cabeça, no rosto e no peitos e ainda jogou um

punhado para trás. E então meu filho qual é a contenda, perguntou Marcelius, é amor,

trabalho, inimigo, saúde, qualquer coisa a gente trabalha. É tudo disse ele. Quero

saber tudo. Mas tudo é tanto meu rapaz. Sei que é. É que tem essa coisa que rodeia

que eu não sei bem o que é como é e pra onde vai. Menino tu tá mesmo é perdido,

vamos abrir essas cartas, acho que depois uma obrigação pra Omulu pode resolver ou

quem sabe um pedido pra Oxalá abrir os caminhos e te colocar nos eixos.

Em cima de um pano de seda vermelho que tinha um cheiro misturado de

perfumes vários, Marcelius começou a embaralhar as cartas. Quer colocar o nome de

alguém? O meu. Só o seu? Só. Menino egoísta esse, tudo bem, qual o seu nome? Paulo.

Pensa bem no que te aflige e corta o maço em três partes. Qual monte? O esquerdo. A

Casa de Deus, eita. Na sequência veio o Diabo, a Morte e o Louco. No meio Marcelius

colocou a Lua. Num tá muito bom não, viu? O que? Tudo. Sabia! Espera um pouco,

pensa assim: os desígnios de Deus são muito grandes e te colocaram nessa situação

incontrolável, você não é responsável por tudo estar assim, mas o problema foram

essas tentações do mundo mundano, os pecados, as vontades – sexo demais, heim meu

filho? – todas essas coisas que passam, acabam, findam e só dão retorno muito tempo

depois – quando for pra debaixo da terra e virar verme, não é menino? E você sempre

se perde com sexo garoto! Meu pai, como você se perde, menino fuder é bom, mas não é

tudo! Marcelius falava e fumava um Dunhill atrás do outro, ainda molhava o bico de

quando em quando com uma vinho tinto Canção, ria muito de algumas coisas que

pensava internamente e, trejeitoso, deixava as pernas relaxaram­se por debaixo da

mesa até, surpresa, tocarem as de Paulo.

Tantos caminhos, né? Tantas coisas, tudo meio aleatório – mas pro projeto do

Maioral tudo tem um encaixe, mesmo parecendo tão louco. E o desfecho, ah o desfecho,

você vai se iludir de novo. Cair nas graças do que parece ser mas não é mais uma vez,

talvez, você sempre vá buscar isso: a insensatez da ilusão. É só isso, então? É meu

garoto, eu se fosse você fazia uma oferenda pra Oxalá, pra ver se ele te guia pra

alguma coisa mais certa, menos tortuosa. E como faço isso? Ah meu filho, anota aí:

canjica branca, mel, rosas brancas e um alguidá número três de louça, me traz napróxima sexta e anota os pedidos que você quer que aconteçam. Ok, quanto devo?

Setenta pelas cartas, a oferenda vai ser mais 200. Tudo isso? Sem sacrifício não se tem

pedido atendido meu garoto.

Ele colocou os setenta num pires que estava em cima da mesa como indicara

Marcelius. Pensou que aquele ato era meio psicanalítico, não pegar no dinheiro e fazer

com que ele pensasse naquilo tudo. Quer mais uma carta de conselho meu filho? Pode

ser. A Roda da Fortuna garoto, só se lembre de uma coisa: nem tudo que reluz é ouro…

Saiu de lá com aquele tanto de coisas na cabeça: a ilusão, os pecados, as

vontades, volições, carne. Na parada de ônibus a moça com o shorts torante fazia ele

pensar mil bocados e imaginar como seria uma punheta vindoura. Tentou guardar

bem a imagem do top e dos shorts, torantes, para se lembrar mais tarde. É melhor que

fique tudo na cabeça, não é mesmo? Pensou de si para si. Depois do gozo, o

arrependimento, mas pelo menos taí, uma imagem na cabeça. Num rompante,

lembrou­se de que não tinha esse apelo todo em si ao sexo, mas, como o dito das cartas

não se contradiz, só se incorpora, saiu feito assim mesmo, coisa sexual plena.

Entrou no ônibus e ficou pensando naquilo tudo que vivia, que não era nem

tenso nem difícil, nem ameno nem tranquilo, nem nada nem além. Olhou pro horizonte

e viu aquelas nuvens que pairavam com sinais plenos de que iriam despencar borrando

de cinza a linha do céu. Deus deve estar aí, deleitando­se com seu big brother

particular. Será que os satanistas tem razão? Talvez Lúcifer tenha tido mesmo ideias

interessantes acerca da mente perversa de Deus e tenha tido apenas a inclinação de

querer iluminar as pobres criaturas humanas para o horrível teatro que havia sido

milagrosamente criado apenas para a satisfação de um nome: Deus. Se há alguém

demasiadamente humano, esse alguém é Deus, nossa imagem e semelhança. Cessou

os pensamentos um pouco, ficou torcendo para lembrar de tudo isso que pensara e

procurar alguma coisa sobre tudo isso na internet. Fechou os olhos um tanto e fixou o

olhar no horizonte da memória que se abaulava em dois montes, todos torantes.

Logo que chegou em casa Júlia ligou. E aí? E aí moça, de buenas? Tranquila, to

te interrompendo? Não, minha punheta eu bato depois. Ai seu escroto, que merda…

Merda não, o orifício é outro, bem menor, inclusive. Tá bom mestre da escatologia, só

me diz uma coisa, foi lá no Marcelius? Fui. Ah, e aí, me conta… Ah, sei lá, nada de

mais ou de menos, só aquela coisa toda mezzo teoria psicanalítica, mezzo auto­ajuda a

la Ana Maria Braga, mezzo macumbeiro. Porra, ele não falou nada legal? Porra, se

dizer que minha vida é uma grande ilusão é uma coisa legal, então, Buda já havia me

cantado essa pedra tempos antes. Mas ele só falou isso? Só. Disse que eu gosto muito

de sexo também. Não falei que ele acerta. É, mas a pergunta é, QUEM não gosta de

sexo realmente? Sei, sei… Mas ele não te falou mais nada? Ah, disse que eu tinha que

fazer uma oferenda pra Oxalá. Legal, talvez seja bom mesmo, tu tá muito esquisito. É,

legal só se for pra ele e pra Oxalá, porque eu vou ter que desembolsar 200 mangos com

a brincadeira, sem contar o mel, as flores e coisa e tal. Num é brincadeira cara, num

zoa com os orixás assim… De fato, foi mal, mas, enfim… Não sei se quero fazer isso,

não botei muita fé nesse cara com essa parada de vudus. Orixás! Voduns são outra

coisa…. Tá, tudo bem, enfim, não botei fé e, além do que, tudo o que ele me disse eu já

sabia, não me acrescentou muito. Ai meu, procura então outra pessoa, tem a Bela daborra de café… Ih, essa daí eu já fui algumas vezes, estou até agora esperando a tal da

fortuna que ela viu claramente num pinguinho de borra que ela insistia em chamar de

moeda. É, ela é meio foda mesmo, tem dia que é joia, mas tem dia que não tem clima.

Fora os cinquenta mangos que se gasta… É, ah, olha só cara, tem o Pai Niquinho de

Xangô, o sujeito é fera, já fui lá algumas vezes e foi muito bom. Hum, sei… Lembra

daquela vez que eu estava bem mal por causa do Marcos? Qual vez? A milésima

segunda ou a milhonésima quarta? Ai meu, para! Aquela vez que eu tentei fazer

aquela coisa…. Sim, aquela que você bebeu Q­Boa? Porra, essa mesma… Lembro,

lembro bem… Pois é, quem me tirou da parada braba foi ele. Bom, talvez eu possa até

ir mesmo, ele joga o que? Búzios. Hum, talvez seja a hora de me encontrar com as

minhas origens africanas. Isso, vai que você até tem que raspar a cabeça! Júlia… O

que? Eu já tenho a cabeça raspada. Não é isso, pô, tu me entendeu… Anota o telefone

aí.

Dois dias depois lá estava ele pegando o segundo ônibus para chegar ao

terreiro de Pai Niquinho. Pelo menos a coisa é no mato, não é esse cabaré pós­moderno

religioso da urbália enfurecida, pensou ele. Acho que estou começando a me sentir

tonto, será que eu vou receber algum espírito? Será que espíritos baixam em terreiros?

Será que orixás são espíritos? Porra, porque que eu não fiz aquelas aulas de história

afro­brasileira na graduação, agora não seria esse ser tão sem sapiência sobre esse

afro­universo. Mas se bem que, universidade não é o lugar de se aprender essas coisas,

a tradição deve morar na tradição, ou seja, lá no terreiro. Mas e se a tradição, uma vez

que inventada, for reinventada dentro da universidade? E lá se configurarem os novos

terreiros do século XXI, afinal, temos até igreja drive­tru, por que não um terreiro

acadêmico? Logo no meio desse devaneio ele reparou que havia passado da parada em

que deveria descer. Apressou­se, deu o sinal e desceu. Retornou o caminho calmamente

fumando um cigarro e pensando nas merdas que havia conjecturado.

Quando chegou de frente a um muro baixo e longo todo pintado de vermelho

com um portão verde pensou que havia acertado o endereço conforme a explicação

dada pelo próprio Pai Niquinho ao telefone. O portão não estava fechado com corrente,

só passado o ferrolho. Bateu palma e ouviu uns passos se aproximando. Uma senhora

veio ver quem era. Olá. Olá meu filho, o que deseja? Vim falar com Pai Niquinho.

Hum, tá certo, ele não chegou ainda mas venha entrando, venha.

Assim que entrou no terreiro teve de súbito uma tontura, a senhora reparou.

Tudo bem? Só uma tontura, tive ainda agora no ônibus também. Ah sim, é esse tempo,

tá muito quente, quer um copo d’água? Sim, eu aceito. Então venha, venha. Tenho de

terminar de varrer essa casa. A água gostosa como poucas águas conseguem, tinha

aquela temperatura exata de uma água na sombra desde de manhã cedinho e aquele

gosto bom de barro de moringa. Senta aí meu filho, logo Pai Niquinho chega.

Não tardou muito, Pai Niquinho chegou. Era um sujeito branco de tez serena,

vestia­se com uma bata bonita de pano da costa de tons verdes bem fortes, dois colares

de contas, um branco e vermelho e outro amarelo, calças brancas e uma precatas de

couro bem adornadas. Olá. Olá. É você que veio ver os búzios? Sim. Seu nome é…

Paulo. Paulo, isso mesmo. Foi Julinha quem te passou o telefone, não? Foi sim. E como

ela está, tudo bem? Creio que sim, ela é meio daquele jeito. Sim, é mesmo, falta firmara cabeça um pouco, tá meio perdida, mas é um amor de pessoa, pense numa Oxum

doce. De fato é doce mesmo. Mas bem, espere um pouco que eu vou arrumar as coisas,

fique à vontade. E saiu para outro cômodo da casa. Enquanto isso ele resolveu dar uma

olhada no ambiente de fora, o terreno era grande com muitas plantas ao redor:

goiabeira, mangueira, jaqueira, coqueiro, um sem fim que ele não sabia o que era,

além de umas tantas plantinhas enfiadas umas ao lado das outras. Depois de uns

quinze minutos contemplando o lugar, Pai Niquinho voltou, chamou­o pra dentro e

começou os trabalhos.

Perguntou coisas aleatórias, nome completo, data de nascimento, se já tinha

jogado alguma vez, se estava nervoso, se estava com as pernas cruzadas, se tinha

alguma coisa específica que queria saber. Tudo. Mas como assim, tudo, meu filho?

Tudo é tanta coisa…. É, sei disso, mas é sobre isso que eu queria saber, tudo. Hum,

então tá, dentro de tudo o que me aparecer aqui nos búzios, eu abro TUDO o que

estiver. E começou a juntar e espalhar búzios variados em cima do que parecia uma

peneirinha toda coberta de pano. Fazia umas caras estranhas, tirava concha, botava

concha, tirava tudo, jogava de novo, sem dizer palavra alguma. No décimo minuto

mudo, Pai Niquinho, suando um pouco, olhou nos olhos de Paulo e perguntou: você

está vivo? Num susto Paulo falou sim, até onde eu saiba, estou bem vivo. Estranho,

muito estranho, tem algo muito errado aqui, ou certo, vai saber. Como o que? Bem, não

tem nada aqui. Nada? Nada. Não tem nem quem é meu orixá e essas coisas? Ninguém

é dono da sua cabeça, ninguém quer a sua cabeça. Como assim? Olha meu filho, nunca

tinha visto isso na vida, mas é isso. E isso é grave? Não sei, nunca tinha visto isso. E o

que eu devo fazer agora? Vejo só meu bem, isso pode ser uma coisa muito, mas muito

ruim, você pode ser alguém que nenhum orixá quer ou você pode ser alguém a quem os

orixás concederam a liberdade plena, compreende? Hum… Eu te diria uma coisa meu

filho, viva sua vida em paz, vá em outra casa, procure com outro zelador pra ver se não

é algo que aconteceu comigo hoje, de não ver NADA aqui. É, e olha que eu vim aqui pra

saber TUDO. Pois é meu filho, estranho isso, preciso, inclusive pesquisar mais sobre

isso. E quanto custa a consulta? Faz assim meu filho, precisa pagar não, viu? Vai em

paz. E ele foi.

Saiu de lá com uma coisa estranha no peito, era uma coisa que não estava nem

tensa nem difícil, nem amena nem tranquila, nem nada nem além, era uma coisa. Era

ele. Saiu meditando sobre aquilo tudo, primeiro seria a ilusão infinita segundo as

cartas de Marcelius, agora o vazio pleno, ninguém quer minha cabeça? Qual o

problema dela? Sempre achei que tinha uma cabeça muito feia mesmo. Mas, e se

alguém a quisesse, o que isso significaria? Provavelmente nada, e também, tudo.

Ele caminhou um tanto, parecia desgovernado, mas sabia que chegaria à

parada de ônibus. Quando lá chegou, resolveu caminhar mais um pouco até a outra

parada, caminhou na verdade umas cinco paradas, na última começou a chover e, ao

invés de se proteger da chuva, resolveu continuar caminhando. O caminhar me é,

pensava ele, pé ante pé, o caminhar me é, o caminhar me é. A chuva desabava forte,

torrencial, Oyá lançava raios fervorosos em meio ao gelado da chuva que compensava

todo o calor já tido, Tupã estrondava o mundo. Tudo cinza, nebuloso, cabuloso. Mas ele

caminhava tranquilo, em paz, só. Olhou para cima, olhou o descampado de ao redor da

pista, olhou pro acostamento enlameado abaixo de seus pés, respirou fundo e tremeu.Sentiu todo o peso da solidão, permear seus poros, se encrustar em suas células, se

assentar entre seus átomos. Eles em si já são menos cheios que vazios. Qual átomo, eu.

E ninguém na minha cabeça.

A chuva foi passando, ele todo enlameado, todo encharcado, só, caminhando.

Sabia que iria voltar a pé para casa, sabia que eram mais de quarenta quilômetros de

distância, mas a certeza da solidão e o sem limite da liberdade, lhe davam a sensação

de que ele devia ir. Só. Para algum lugar, qualquer. Provável que sua casa, certo que

por lá. Mas o que importava não era o final, onde chegar. O que importava era o

trajeto, o processo. Pé ante pé, o caminhar me é. O horizonte se mostrava tímido, por

baixo das nuvens que se dissipavam. A liberdade se introjetava plena. Ele não sabia

tudo, tampouco nada. Ele ia. Afinal, a coisa não estava nem tensa nem difícil, nem

amena nem tranquila, nem nada nem além. A coisa estava. Só.

Demonstrar

Paulo não sabia muito bem o que o movia àqueles dias. Estava bem, estava feliz e nem se sentia vazio. Não tinha sensação de que lhe faltava algo, de que lhe prescindia algo sólido ou que necessitava de um sentido. Apenas sentia. Andava um tanto atarefado com coisas do cotidiano, andava como devem andar as pessoas que correm atrás do prejuízo, que adiantam seus lados. Paulo estava vivendo.

A escolha de ter se libertado de ambicionar Eliane, de a colocar como o eterno objeto do desejo, dava-lhe ainda mais impulso de viver. Paulo respirava vida. Paulo entendia agora plenamente que Eliane era música realmente, era algo a ser sentido, sem sentido algum, só sentir. Era um deleite que se fazia em suas notas auditivas memoriais.

Nesse dia em particular Paulo começava a tentar retomar sua vida sabendo que Eliane seria somente ele agora, somente o que lhe fazia ser o que era até então. Eliane era Paulo, da forma mais simples que se pode ser. Paulo entendia isso e sabia que aspirar a ela novamente era coisa que não lhe cabia, então, quis retomar algumas coisas que andavam perdidas. Começou escrevendo uma carta:

Iara,

Como vai sua vida? Almejo em todos os sentidos plenos que esta palavra possa ter, que esteja bem, em paz e em boa companhia. Eu ando bem, aliás, ando. Parei de ficar parado. Eu sei que esses tempos andei rotas tortuosas em que não lhe coube ocupar um assento. Sei que ocupei todos os assentos e foram apenas minhas pernas esticadas e uma bolsa qualquer, nem ao menos era uma pessoa de fato ao meu lado. Ímpeto egoísta de alguém que padece de transtorno bipolar e que só consegue lidar com isso sendo consigo mesmo.

Não quero invadir a tua privacidade construída sem minha presença – que nem sei a quantas anda –, só queria apenas lhe dizer que pensei em você agora e que você coube como uma luva na imagem que eu tinha a minha frente: uma begônia em flor.

Abraços infindos tentando fazer contato,

Paulo.

Realmente Paulo não queria algo mais que dizer aquilo para Iara. Não queria que fossem palavras tentando um arrombo de paixão – esta que Paulo não sentia mais por ela –, mas somente que fosse o carinho guardado que se manifestava ao léu, que se fazia presente. Paulo sabia que Iara poderia não entender nada, que poderia até ficar com raiva, afinal, as últimas vezes com que Paulo estivera com Iara não havia sido um momento muito proveitoso, teria sido o lapso de um definir-se que, com certeza, Iara não entendera.

Paulo desenhou uma das begônias na carta, guardou no envelope e saiu de casa na intenção de entregar a carta na casa de Iara. Enquanto percorria o caminho, várias imagens passavam por Paulo, as flores numa casa qualquer, o casal que se beijava num portão, um cachorro que seguia idiotamente uma cachorra no cio, enfim, um mundo que não lhe cabia inteiramente, mas ao mesmo tempo, lhe acolhia de braços abertos. Quase o conforto de um acalanto no frio. Paulo abraçava o mundo sem sentido.

Havia ainda um resquício de qualquer sensação de erro sobre seus ombros. De que Leminski lhe cabia inteiramente: “até aprender que só o erro tem vez”. Mas nada o demovia de sua condição de felicidade. Nem esse gosto de erro na boca e nem mesmo a idéia de que ele só erraria sempre. Paulo sentia.

Enfim, Paulo chegava até a casa de Iara. Olhou a janela aberta, o jardim com a kalanchoe amarela bem florida que ele lhe dera um dia, o fícus dando uma sombra boa e quebrando a calçada. Tudo ali, no mesmo lugar. Olhou a casa um pouco mais e sentiu um frio na barriga pensando que poderia vê-la a qualquer momento. Foi até a caixa de correio e depositou a carta. Saiu tranqüilo, sem pressa, acendeu um cigarro e pensou que a melhor coisa para ele seria se Iara estivesse escutando qualquer coisa de princesa quando lesse a carta e que sentisse – não entendesse – o que demovia suas palavras e que ficasse feliz. Que lhe escorresse pela face não uma lágrima de esperança ou de rancor, mas um sentimento bom de que se é querido, de que se é importante.

A noite chegava e Paulo andava por aquela rua que ele caminhara por algum tempo, as crianças na rua, os carros bloqueando a passagem, becos com flores. Deu outro abraço no mundo e foi embora desejando que a vida fosse sempre assim. Sentia que viver ainda era.

Da profundidade do ser

“Não se revoltarão enquanto não se tornarem conscientes e não se tornarão conscientes enquanto não se rebelarem.”

George Orwell

Ribamar andava apreensivo, angustiado, perdido. Fumava três carteiras de Calvert ao dia. Por vezes tinha visões de vultos através de sua percepção lateral, não se virava para ver se eram de verdade, tinha medo de que as imagens dissipassem-se ao ar. Ele precisava acreditar que estava mentalmente perturbado, era o único consolo para sua mente. Suava frio, pensava que sua esposa deveria crer que ele estava enlouquecendo. Estava. Lembrou-se das frases do pastor: “O Diabo não quer ver ninguém bem, entrega tua alma ao nosso senhor Jesus Cristo e tudo irá se resolver. Quer seja um problema material, quer seja espiritual. Sangue de Jesus tem poder!” Maldizia as frases em sua mente, pensava que nada tinha mais uma explicação plausível.

Levantou-se da cama procurando minimizar os barulhos, Elizabete fingia não ver que seu esposo levantava. Ribamar fingia não perceber que sua esposa sabia que ele não agia racionalmente. Ribamar foi até o quarto das crianças. Olhou o Juninho, o Alceu, o Pedrinho, a Marinã e a Paloma. Pareciam dormir tranqüilos, imaginava que deveriam dormir angustiados sem saber se amanhã haveria comida antes da escola. Na escola as roupinhas remendadas e puídas, deveria causar-lhes vergonha. Vergonha do próprio pai. Vergonha de seu progenitor, vergonha dos cinqüenta por cento de Ribamar que se incrustavam em seus genes e em suas vidas. Ribamar amou-os e os odiou ao mesmo tempo.

Voltou ao seu quarto, viu quando Elizabete sua esposa, desligou rapidamente a luz do abajur. Olhou para ela, sorriu. Tirou sua roupa e deitou-se ao seu lado. Maquinalmente, como sempre fizera, penetrou-lhe o sexo. Igual a todos, fez um sexo frio, porcamente feito, um sexo medíocre, banal, mecânico. Daqueles que geram filhos que sentem vergonha de seus pais. Acendeu um Calvert e fumou pelado olhando pela janela da sala do barraco as outras casinhas de lona e de madeirite da invasão. Pensou em seu último emprego, foi nas frentes de trabalho, varria pistas movimentadas. Lembrou-se do quão miserável foram aqueles dias. Aquele trabalho acabava com a dignidade de qualquer um e piorava quando os outros respeitáveis cidadãos e cidadãs não lhe outorgavam o devido respeito. Chorou ao lembrar que agora não tinha mais nada, nem ao menos a labuta indigna que exerceu outrora.

Pensou muito nas últimas horas, pensou, pensou e pensou. Não chegou a conclusão alguma. O sol amanhecia bem devagar lá no leste, de onde viera para esta terra maldita, que só lhe proporcionava desgosto. Indignou-se. Abriu a porta e saiu à rua. Estava pelado, nem se deu conta disso. Olhou para si e riu, um riso que veio do fundo de sua alma e que demonstrava que ele não se importava com mais nada. Algumas irmãs da igreja que em outros tempos ele freqüentou, estavam na rua, vinham de uma vigília da corrente de libertação das almas. Viram Ribamar e assustaram-se, correram para dentro da igreja. Ribamar passou pela frente da igreja, parou, olhou-as e riu.

Continuou seu caminho, não sabia para onde. Andou muito tempo pelo cerrado, cruzou a linha do trem e continuou andando. Chegou no Eixo Monumental, entrou naquela avenida larga que mais parecia um aeroporto e continuou andando em meio a alguns carros, que não tinham viajado no feriadão. Todos buzinavam, gritavam, xingavam, riam, tentavam atropelá-lo. E ele imerso num nada gigantesco, simplesmente não lhes dava tino. Andava nirvanicamente, prostrado em nada. Chegava perto de Brasília, seguia firme em sua caminhada. Até o momento nenhum policial tinha vindo tomar satisfação e prender-lhe por atentado ao pudor. Continuava andando.

Nas proximidades da Torre ouviu-se uma sirene, Ribamar nem notou. Prosseguiu seu caminho rumo ao Nada. O camburão parou de frente a Ribamar. Saltaram três PM’s com risos em suas faces e ódios em suas vozes:

– E aí peladão? – indagou um PM que aparentava ser o chefe dos outros, tinha um ar de cafetão e fedia a metros de distância – Fugiu do hospício? Olha malucão, vamo facilitá as coisa que a gente não vai precisá usá a força. Levanta as mão e fica quietinho.

Ribamar não parecia escutar nada, estava prostrado de frente aos PM’s com uma enorme cara de nada. Alguns turistas da Torre desceram para ver o que acontecia. Rodearam a cena. Ribamar fitou-os calmamente. Outro PM interveio:

– Vamo mantê distância, porque o peladão é perigoso. Deu uma risadinha, todos ao redor também riram. Ribamar avançou um passo. Os PM’s assustaram-se e engatilharam as armas. Ribamar deu mais um passo. O PM que estava de frente a Ribamar estava nervoso, mirou na cabeça de Ribamar e bradou:

– Fica quietinho seu doido varrido, se não eu vô ter que usar de força bruta.

O PM suava, a situação ficava tensa. Ribamar deu mais um passo, virou-se para um turista, pegou seu pinto e balançou. Os PM’s irritaram-se e avançaram sobre Ribamar, este esquivou-se com uma agilidade que nunca tivera e parou ao lado de uma turista. Segurou-a pelo braço. Um PM falou:

– Olha aqui peladão, a situação tava fácil, mais agora tu complicô. Solta a moça!

Ribamar riu bem alto, um riso que veio de suas entranhas. Um riso com cara de molecagem. Ele soltou o braço da moça. Num estalo, recobrou a consciência. Come se fosse Adão ao comer a maçã oferecida por Eva, viu-se nu e envergonhou-se. Finalmente escutou os PM’s:

– Mãos pra trás e fica quietinho que num vai te acontecê nada!

Ribamar não se lembrava como tinha chegado ali, estava confuso tentando coordenar suas idéias, colocou as mãos para trás. Alguns turistas tiravam fotos. O flesh de uma máquina o cegou momentaneamente, ele ficou meio zonzo, tirou suas mãos das costas e neste fatídico momento, Ribamar solta um peido estrondoso, daqueles que seu pai solta depois de uma bela feijoada. Nesse instante um dos PM’s, num movimento de impulso dispara a arma e a bala acerta em cheio o meio da testa da turista que Ribamar havia segurado o braço. A turista cai sem dar um grito sequer, o sangue escorre pelo asfalto, o cheiro de pólvora espalha pelo ar, o clima de dúvida contagia a todos, Ribamar cai de quatro no chão, o PM que atirou grita aos quatro ventos:

– FILHO DA PUTA! E cai ao chão chorando.

Ribamar ainda não compreendia nada. De quatro e nu no chão, uma multidão ao seu redor, um cadáver atrás, um PM chorando em sua frente e uma dor fina em seu intestino. O silêncio toma conta da cena. Todos olham atônitos para Ribamar. Um silêncio mortuário que se ouvia a quilômetros. Ribamar via o ódio nos olhos de todos. O silêncio penetra Ribamar e de repente como se fosse um lapso no espaço e no tempo, Ribamar solta outro peido estrondoso e aflito, um peido saído do fundo de sua alma, um peido que era a resposta de sua alma ao que ela achava do mundo, um peido barulhento e fétido, que se fez ouvir a quilômetros de distância.

Ao escutar tal estrondosa flatulência de Ribamar, o PM que atirara enfurece-se como nunca havia se enfurecido na vida. Num impulso maior do que tudo ele levanta e descarrega o resto das balas sobre o corpo esquálido e nu de Ribamar. O PM vai até o corpo ensangüentado e nu e começa a lhe chutar todas as partes. Ninguém faz nada. Ninguém compreende nada.

E assim acaba esta história. No final das contas, não serve para nada e não demonstra a profundidade do ser. Termina assim, Ribamar nu, morto com sete balas em seu corpo, o sangue escorrendo pelo asfalto. Uma moça a poucos metros de distância, também morta, com uma bala em sua testa, o sangue escorrendo pelo asfalto. Enfim, vidas que eu criei e tirei de repente. Ribamar deixa sua família ao Deus dará, sem nenhuma fonte de renda e a turista, deixa seu curso de medicina em São Paulo sem conclusão, um namorado e uma família a chorar sua perda, que na verdade será apenas algum gasto a menos.

Quanto ao PM, ele vive sua vida com outros tantos que prendeu. Hoje fica nu e de quatro todos os dias em uma sela ínfima com mais trinta e cinco detentos. Peida muito. Os outros turistas e PM’s e aqueles que assistiram as reconstituições pela TV, vivem suas vidas medíocres e de quando em vez relembram o assunto que espirou o prazo de interesse em cinco dias. Peidam muito. Vivem suas vidas medíocres à espera de suas mortes, que fatalmente virão. E, por fim, todos irão encontrar Ribamar e a turista, mais cedo ou mais tarde. Pois a profundidade do ser acaba (ou inicia?) quando o poço da vida chega ao seu fundo e este fundo pode ser o limiar de uma morte estúpida.

Constatações

Era uma garota diferente. Não se atinha a certas afetações de uma possível generalização da condição feminina. Não possuía o mínimo sexto sentido, não tinha tensão pré-menstrual e o pior (ou melhor, talvez), havia passado toda a sua infância normalmente: boneca, casinha, papai e mamãe, unidunitê… Não faltava graça nela, de fato, era até jeitosa, tinha o seu quê de beleza e de feiúra, tinha enfim, sua humanidade.

Apreciava a companhia de pombos (e isso é uma coisa rara). Todos os dias sentava-se nos bancos perto da fonte de um shopping, em plena perpendicularidade solar e olhava os pombos banharem-se na fonte. Invejava-os um bom tanto e almejava a condição de suas liberdades.

Nunca pensara em ter filhos, mas sempre que via os pombos, imaginava o “quão bom deveria ser imiscuir meus genes com o deles”. Não era um intento zoofílico ou qualquer outra perversão congênere, era apenas uma constatação, como todos os seus sentimentos, afinal, não sentia: constatava coisas em seu corpo.

Os pombos na fonte eram uma de suas constatações particulares de seu dia. Não era mensurável em bom ou mau, apenas verificável. Uma perda dos segundos que era imperceptível. Não como o resto de seu dia, conquanto a viagem de ônibus de volta à sua casa fosse uma impercepção constatável um tanto próxima.

Sempre pensava em trazer pedaços de pão para jogar aos pombos e vê-los euforicamente digladiando-se do mesmo modo que faziam quando lhes jogavam as sobras das marmitas, mas nunca se lembrava. Todos os dias de pombos eram a mesma coisa: só o devir da imagem da luta colomba se fazia e o fato sempre fato não se produzia.

Certa vez sentara um moço estranho no banco ao seu lado e se aproximou: “te vejo todo dia aqui, você gosta de pombos?”. Ela nada respondera, somente constatara para si: “gostar… é eu devo gostar de pombos” e se levantou bruscamente sem dizer palavra, deixando ao moço atônito somente a impressão de algo estranho.

Nesse dia ficou confusa. Até sua segunda maior constatação do dia não foi a mesma. Mal viu a paisagem pela janela do ônibus. Estava com a idéia “gostar” em sua cabeça, ou mesmo em seu corpo, mas não entendia: “onde deve começar isso?”. Tentou lembrar o rosto do moço que perguntara acerca dos pombos, mas não conseguia se recordar. Só conseguia ver pombos no rosto dele. Nesta noite em seu sonho viu algo bem nítido e colorido (sempre sonhava tons de cinza): pombos.

No outro dia, em seu horário de almoço, preferiu não ir ver os pombos, foi passear pelos labirintos do shopping. Constatou que se perdera cinco vezes. Quando viu luz fora, saiu e de cara encontrou os pombos. Olhou-os com ar diferente e decidiu: “não gosto de pombos”. Passou perto da fonte sem olhar pombo algum e, desde então, nunca mais pensou neles.

CONFISSÕES À SURDINA

Era uma noite medíocre aquela. Noite dessas que não possuem cara de noite, como se fosse meio-dia de um feriado caído numa segunda-feira, mas em pleno constatar das oito horas da noite. O telefone havia tocado, era para mim:

– OK, mas eu não posso ir, também é aniversário de minha irmã hoje, tenho que abraçar a bichinha, ela ta precisando…

Ao outro lado da linha a pessoa parecia meio forçada a me convidar para aquela festinha, era uma amiga de minha ex-namorada que me perguntava se eu não queria ir à festinha que estava acontecendo lá na casa dela. Despistei, joguei essa conversa da minha irmã e disse que depois ligava para ela desejando-lhe feliz aniversário. Depois liguei:

– Parabéns mulher! Tudo de bom nessa vida pra você, muita luz… Eu vou indo e você? Que bom… pois é… sério? Nossa, que bom… ainda bem né? Pois é moça, to morrendo de sono, depois a gente se fala mais, to precisando dormir… você sabe né, a vida é dura… amanhã a lida continua. Então um beijo. Tchau.

Missão cumprida. Não que aquilo fosse uma árdua tarefa ou então desprovida de prazer. Gosto dela, gosto muito, aliás. Não um amor de amante, mas um amor suave no fundo do coração, desses saudosismos que queremos que fiquem lá no passado mesmo, onde foram perfeitos e onde existem realmente, para pensarmos que a vida deve ser ainda boa. Um séqüito esperançante.

Peguei novamente o telefone, aproveitei e liguei o som. Uma Fátima Guedes só pra relaxar. Liguei para minha atual namorada:

– Ela saiu? Ah… ta bom. Não, não… É… Pois então obrigado. Boa noite pra você também. Tchau.

Por que será que as namoradas sempre estão na casa de uma “amiga” quando mais precisamos delas? Uma noite pouca como aquela e eu só. Reparem bem que as aspas no ‘amiga’ não se referem a nenhuma cornitude plena e já conhecida, mas sim a um ímpeto machadiano de querer sempre ser Dom Casmurro – mas afinal, Capitu pulou ou não pulou o muro? –, digo isso por que sempre há essa dúvida errante que nos envolve aos lençóis e às cobertas, nessas noites poucas e claras.

Passei o olho no meu caderno de anotações, pensei: “acho que um anti-marxismo não pega bem agora, deixa os academismos para mais tarde”. Cantarolei um pedaço da música: “mais dóceis e livres como eu…”. Senti essa tal de liberdade querendo ser sentida, levantei-me da cadeira e decidi, se Manoel Bandeira deixar, eu saio de casa agora:

“Amor?… – chama, e, depois, fumaça:

O fumo vem, a chama passa…”.

Tomei banho, me troquei e saí, Chico no som do carro e nenhum rumo a se seguir. Parei no DI. O DI era uma praça, que em outras épocas havia sido um grande point da boêmia pós-moderna das satélites de Brasília, hoje era um local decadente pela presença desenfreada desses neo-metal skatistas – um mix de movimento hip-hop de playboy, homossexualismo desabrochando, resquícios de postura punk, maconheirismo puro e simples e outras tantas referências, como manda o figurino de um movimento pós-moderno –, o quadro de degredo da praça se completava com a presença massiva de maloqueiros-passadores-aviões a trabalhar e de playboys taguatinguenses freqüentadores dos bares que se instalaram na região.

Saí do carro e sentei num bar que, segundo minha memória, havia sido um local de cachaçadas memoráveis e de poesia flutuante no ar, além de rolar uma boa música – boa no repertório, uma vez que o cantor era uma desgraça, se não falha minha memória. Sentei e pedi uma vodka com duas pedras de gelo e duas fatias de limão, comecei a degustá-la e a observar o ambiente. Como um bom geógrafo olhei primeiro o lugar: vi que o espaço havia se alterado bastante desde a última vez , as cores, as luzes, o banheiro… era definitivamente outro lugar, já não era mais o mesmo. Observei o cartaz de uma festa rave que ia ocorrer logo, abaixo, um folder da inauguração de um lound, pensei: “é… este lugar não é o mesmo”.

Como um antropólogo-filósofo esmiucei as essências humanas ali contidas: muitas figurinhas carimbadas no meio alternativo mais hard, alguns homos à procura de um flerte, algumas ex-skatistas recordando suas proezas passadas, também à procura de um flerte, uns metaleiros errepegistas à procura de flerte, dois casais saudosistas em crise – deveriam querer estar em estado de flerte – e eu.

Como um ecólogo iniciei um longo trabalho de averiguar as relações que ali se estabeleciam: um olha uma, uma olha o ar, outra olha um e um a olhar um outro: verdadeiro balaio de gato pós-moderno. Um levanta e vai ao bar reclamar, um volta e olha uma ao passar. Uma levanta e vai ao toalete se arrumar, uma vai também para fofocar. Um se julga super-homem (quase nietzschiano) em voz alta para se sobrepor ao som e fazer com que um outro se ligasse. Um outro me olha e eu desvio o olhar para minha vodka – não queria escutar aluguel de ninguém àquela noite.

As horas voam e as vodkas vêm – ou vêem, dependendo do ponto de vista –, as pessoas iam se acabando, esvaindo-se sem eu constatar: o bar já ia fechar. Olhei ao lado havia uma moça quase caindo da cadeira e a dona do bar cutucando-a com a conta. Chamei a dona:

– Isso cobre a minha conta e a dela?

– Cobre sim senhor.

– Então acerta tudo…

Levantei fui até a moça e a cutuquei, em resposta ela grunhiu um pouco. Cutuquei mais. Ela nem se mexeu. A dona do bar chega então com o troco e me pede para ajudar a retirar minha “amiga”, pois precisava fechar o bar. Abracei a moça e a levei para um banco da praça. Vi que a única coisa a se fazer era enfiar o dedo em sua goela e fazê-la vomitar, foi o que fiz. Nunca havia visto tanto vômito em minha vida, parecia uma cachoeira, a coitadinha a cada golfada ficava mais amarela e logo vi que não era só cachaça o que ela havia consumido (ali devia ter uns dois caldos de mocotó e mais um de feijão pelo menos).

Esperei um pouco, sentei ao seu lado e a fiquei observando. Ela era até bonita. De repente ela caiu no meu ombro e continuou dormindo. Comecei a ficar com sono, até que pesquei um pouco.

Acordei com ela em meu colo. Ela não era muito bonita. Era muito branca, a melhor coisa que possuía eram suas formas meio arredondadas. Os cabelos eram muito bonitos, negros, bem escorridos e muito grandes. Ela se vestia toda de negro e tinha uma maquiagem borrada – também negra – nos olhos, além de resquícios de um batom – também negro – em seus lábios. Era um contraste muito grande a alvura de sua pele e o negrume de suas indumentárias.

Passei os dedos em seus cabelos e comecei a afaga-los. Ela se mexia um pouco. O dia estava amanhecendo e o movimento da praça já havia se findado. Pombos começavam a fartar-se das sobras dos pães de cachorro-quente dispostos no chão. Olhei a garota mais um pouco, comecei a acha-la bonita.

Ela começou a se mexer muito, parecia que sonhava com algo muito agitado, de repente ela caiu no chão. Assustei-me e vi que ela havia acordado, vi que estava completamente zonza. Olhou pra mim e disse:

– Puta que pariu! Que dor de cabeça do caralho!

Chovia. Chove.

Água quente. Era tudo o que Eliane queria. O martírio gélido do corpo molhado de chuva e lama não era algo que ela buscasse, preferia, sim, outras quenturas em se falando de água. Pelo menos naquele então. Queria a água de seu chuveiro queimando sua pele e adormecendo seu corpo. Ou então, água saindo de seus poros e escorrendo lânguida por um corpo outro, do seu já em dormência. Queria mesmo os líquidos efusivos de sua intimidade viscosamente impregnando o ambiente em brasa, saindo de seu corpo dormente e incrustando-se em outro corpo. Como alternativa não havia, foi-se ao seu banheiro.

A noite estava como toda noite chuvosa: plena. Noite em que dormita a vida e tudo parece estar acompanhado de um solo de guitarra crua. Plenamente noite e não dia vivido às altas horas da madrugada.

Seu corpo nu tremia. Era um frio que se espalhava e a abraçava. Envolvia, quase em braços, seu corpo e lhe arrepiava toda a pele, ouriçando ainda mais seu estado de espírito e desejando que os outros dois quereres que lhe percorriam a mente fossem mais do que feitos, fossem plenos.

O banheiro em seu pálido semblante entrava em contradição com a proposição do que lhe cobria: azulejos. Não eram azuis. Eram brancos. Uma impressão hospitalar que a repugnava lhe pedia para a apagar a luz, foi o que ela fez. O rádio ligado em uma FM qualquer conduzia aquela música triste, desesperançosa, antítese do verde, ou algo verde musgo iluminado pela Lua. Era um Tom que lhe dizia coisas Demais, um blues angélico que queria decair a noite plena inteira sobre suas costas. Ela queria calor.

A água do chuveiro caía devagar sobre seu corpo. Parecia que a simples trajetória entre o chuveiro e seu corpo era uma eternidade para a água que ansiava por manter a noite plena sobre Eliane. Ela relutava em crer que esse ímpeto de noite plena fosse se consumir realmente, continuava seu banho.

Lentamente, seu corpo relaxava.

Corpo. Palavra bonita, pensava Eliane. Corpo combinava com seu corpo. Seu corpo parecia realmente um corpo. Incorporava-se na palavra e esta ganhava corporeidade em seu corpo. Suas estrias, suas gorduras, suas celulites. Tudo corpo, tudo ela. Sentir o corpo com seu corpo, parecia algo plausível. O breu instalado no banheiro envolvia seu corpo, e este ganhava mais materialidade.

Água. Sentir. Corpo. Quente. Noite. Som. Querer.

Um corpo bastaria a si?

Lentamente, seu corpo percorria seu corpo. Tramas e entranhas. Seu querer era ser corpo. Sentir seu corpo o sendo. Sua mão, sendo seu corpo também, volvia e envolvia sua pele. Sua mão era pele também. A água quente dava mais ciência de si. Uma perna fora da água e a sensação de existir, a água caindo sobre os cabelos e a impressão de ser. A mão tocando o corpo em água quente e aquecendo mais a existência. Existir pode ser prazer também e que Buda se cale.

Eliane, em seu nirvana corpóreo, tinha a dimensão de que ser corpo era tudo o que ela precisava. A lentidão dava lugar ao frêmito e existir parecia depender de sua mão. De seu corpo.

Tudo envolvia: o calor da água, o vapor por todo o banheiro, a escuridão, o som, a plenitude da noite, seu próprio corpo. Tudo ardia.

Lá fora chovia, chove. A noite continuava plena e dormitando todos e todas em suas casas. Só Eliane existia em seu corpo.

Bambayuque

Era com aquela música que ela odiava que Paulo chorava por Maria. O cigarro seco no canto da boca seca pela seca do cerrado, misturava nos olhos de Paulo as lágrimas cristalizadas com a nicotina e o ar parado. Um aboio lamurioso cantado com sofreguidão percolava o ar junto à fumaça. Tudo seco. Paulo, uma seca só e o cerrado pegando fogo.

Uma lua ali, nem meia-inteira, apenas começo de sorriso, plena de vermelha pela fumaça das fogueiras da seca, no meio do cinza do céu de noites de agosto. E Maria longe léguas, com a propriedade da memória, perdida de Paulo para o sempre de agora, que é a eternidade que mais incomoda, esse sempre do presente.

Quando Maria se foi, no momento exato da despedida, foi-se embora com um beijo e um abraço. Beijo que não pôde ser colado e abraço que não pôde ser apertado. Nesse momento Maria perdeu seu “i”, que rimava com quem ria, e virou Mara somente.

Distanciando-se, indo para qualquer lugar em que Paulo não estivesse lá, com seu sempre presente corpo, Mara levou o que cabia dentro do seu peito e deixou para Paulo, além do peso dele mesmo só em companhia e corpo para o fardo de seu sempre, um de seus “as” e virou Mar.

Mar então sumiu de vez pelas fretas do mundo. Dando o ar da graça a todos que de Mar quisessem as águas. E Paulo em sua seca sempre, tateava com o resquício de mar incrustado em seus olhos, no meio da penumbra da noite cinza, sem saber que Mar perdia seu “r” e se evadia da liquifeição para ser desde então, Ma somente.

Depois disso feito, foi-se a dança da paixão deles, para o sempre do presente agora.

A noite, a cor e o poder

(ou “Você sabe com quem está falando?”)

Três e vinte e cinco da madrugada. Dalton acorda assustado com o choro de seu filho de apenas seis meses de idade. Eloísa, sua esposa, diz que a possibilidade de que o choro seja por efeito de uma dor de ouvido é grande – faz frio – e o eficaz remédio que sua mãe lhe dera já havia se findado. Dalton não questiona o sexto sentido de sua esposa e, mesmo cansado de sua última escala de serviço, sai em busca da solução para o choro de seu filho e para o seu sono.

A farmácia era próxima de sua casa, apenas um quarteirão à frente. Dalton sai em seus trajes de cama: bermuda furada, camiseta gasta pelo tempo (as melhores para o sono), meias de lã e chinelo de couro. Seu rosto cansado, com ares de poucas horas de descanso, estava triste naquela madrugada.

Dalton andava mecanicamente pela calçada quando o som de uma sirene se faz próximo. Dalton lembra de seu trabalho: “Que saco, até aqui a labuta me persegue…”, suspirando sua apertada última escala de serviço.

O camburão da polícia pára ao seu lado e um dos policiais grita a Dalton:

– Parado aí negão – Dalton era negro… –, mão na cabeça!

O policial inquisidor sai do carro e anda na direção de Dalton, que ainda grogue de seu sono incompleto, pensando em remédio, trabalho, esposa, cansaço e choro continua em busca da solução para o seu sono como um moto perpétuo inconsciente, sem notar que o policial falava consigo. Havia um ar de sonho em sua mente. Dalton continuava andando.

Nesse momento todos os policiais já se encontravam fora do camburão e o inquisidor primeiro, em sua raiva (fora ferido seu ego de autoridade), saca de sua arma e berra a Dalton:

– Ô negão, cê tá surdo porra?!! Mandei parar!!!

Dalton pára, se vira e começa a tomar conhecimento da situação, começa a despertar lentamente (seu ego de autoridade fora ferido – Dalton era tenente da polícia).

– É comigo? Questiona Dalton aos policiais.

– Tem outro negão chapado por aqui? Responde o inquisidor primeiro com aquele ar de questionamento e agressão típico dos policiais que fazem a ronda noturna.

– Você!! Ataca Dalton – o inquisidor também era negro…

– VOCÊ?!! – pergunta outro policial indo de encontro a Dalton – cadê o respeito negão, cê tá viajando né?!!

Dalton compreende o que acontece: a noite, sua cor e sua aparência não condizem com seu poder. Ele não é ninguém, ele é um cidadão com todos os direitos e deveres comuns a todos os de bem, mas ele sabe que não está com sua carteira de militar em mãos, apenas um talão de cheques e um cartão de banco, ele conhece bem o preconceito de seus companheiros de serviço – ele também é assim –, ele sabe que precisa se impor, mostrar que é alguém, que eles não sabem com quem estão falando.

– Vocês sabem com quem estão falando?! Pergunta Dalton com lágrimas de raiva aos olhos (ele sabe agora o que se passa na cabeça de quem ele aborda em uma batida).

– EU JÁ ESTRESSEI COM ISSO DE VOCÊ!!!! Grita um dos policiais e avança com um tapa na face de Dalton (seu ego de autoridade se rompe em mil pedaços) e este chora como há muito tempo não chorava (só não comparável à morte do Ayrton ou à final de 98).

– Ah negão deixa disso, cê deve tá muito loco… Zomba o inquisidor primeiro que nesse mesmo momento leva um soco de Dalton.

Aqui, as coisas se complicam para Dalton. Ele é xingado (como nem na infância), ele é chutado (como aquela bola que ele tanto estimara), ele apanha (como nem sua mãe o batera), ele chora e grita (como se fosse seu filho com dor de ouvido). Seu ego já não ousa se pronunciar, calou-se diante de tanta humilhação.

Os policiais colocam Dalton no camburão. Ele sangra, ele chora, ele se cala, já não há mais nada o que se fazer agora. Mas ele sabe que o poder ainda jaz em suas mãos, mesmo não tendo conseguido utilizá-lo quando necessário. Mesmo que seu sangue se misture a suas lágrimas nesse instante, ele tem plena consciência de que a vingança é um prato que se degusta frio. Ele é alguém, esses que lhe bateram, lhe xingaram, lhe humilharam não sabem com quem estão falando. Não tem a mínima noção.

Dalton sabe que ele pode mudar todas as regras que lhe foram impostas nesses últimos instantes. E à primeira oportunidade ele vai virar o jogo…

Seu ego renasce de seu sangue e de suas lágrimas.

A mais pura verdade

Foi numa noite leve, em que a peleja de rimas assistida já se findara, que me ocorreu uma coisa absurda, fato nada estranho, posto que às sextas-feiras coisas absurdas acontecem aos borbotões. Lembro-me vagamente de algumas coisas que antecederam o fato absurdo: além da peleja, recordo-me dos amigos – Giosconni e Martin –, de algum papo sobre o éter, sobre Marx e talvez, até mesmo, sobre separação. Lembro-me bem de uma donzela ébria que sorriu fagueira para minha pessoa na fila do banheiro e que logo se foi a dançar com uma garota – que não recordo a feição. Atina-se em minha memória que, passado pouco tempo, a donzela ébria veio recolher-se à nossa mesa, assim o fez para fugir da garota que lhe concedera uma dança e que, nos recônditos menos visíveis do expor-se ao mundo, queria a ela como eu a queria também: ébria, lépida e fagueira sob uma cama, champanhe no umbigo, vendas nos olhos e lingerie de renda vermelha. A donzela ébria, pouco afeita a carícias femininas acabou por buscar auxílio em nossa mesa e nós, como bons cavalheiros que somos, a recebemos com todas as honras, gracejos e benfazejos possíveis.

– O que queres beber? Lhe perguntei.

– Aceito um absinto. Ela respondeu certeira.

– Absinto?! Perguntou Giosconni.

– Eita porra! Enfatizou Martin.

– Não contrariemos a moça – eu disse –, não vês que ela está traumatizada? Acabou de ser assediada por uma outra dama. Precisa de algo forte para beber e acalmar os nervos. Garçom! Traga uma garrafa de absinto aqui para a mesa!

Rapidamente o garçom nos deixou uma garrafa do inebriante e verde lubrificante social e ainda com alguns apetrechos a mais para dar um toque de finesse a nossa mesa. Bebíamos como se deve beber, fumávamos como se deve fumar e conhecíamos a moça como se deve conhecer uma moça. Tudo fluía naturalmente e sem nada de absurdo. A moça nos falava que havia vivido durante oito anos acorrentada ao pé de uma cama num porão de uma chácara lá pras bandas do Incra 8. O autor de tal crime contra a humanidade, havia sido seu próprio marido, que, enciumado por possuir dama tão linda como esposa, não admitia sequer que seu odor fosse sentido por outro que não ele.

Escutávamos sua história embasbacados. Como poderia existir sujeito tão cruel?! Contou-nos que para manter sua boa forma, o sujeito havia montado toda uma aparelhagem de academia no porão e que a obrigava a fazer quatro horas por dia de malhação – fato ao qual eu intervi dizendo que somente este, seria das maiores perversidades que se pode fazer contra alguém. Disse-nos ainda que para manter seu corpo bronzeado, seu marido havia instalado lá uma máquina de bronzeamento artificial.

– Um maníaco! Disse Giosconni.

– Psicopata dos infernos! Retrucou Martin.

– Que nem Deus tenha pena desse miserável! Afirmei severo.

Queríamos saber como havia terminado aquela terrível história, como, afinal, ela havia conseguido se libertar de seu cativeiro de oito anos. Ela enfim nos contou tudo, disse que numa bela manhã ao acordar viu que seu algoz dormia profundamente e conseguiu observar a chave de sua corrente caída do bolso do paletó jogado no chão. Ela cuidadosamente levantou-se, procurou não arrastar suas correntes pelo chão, pegou a chave, tirou a corrente de sua perna, subiu até a casa pegou três facas de cortar pão, voltou até o porão e as cravou uma após a outra nas costas daquele cretino. Fugiu então para nunca mais rever aquele porão maldito e agora estava aí, querendo curtir a vida.

– Brindemos, pois! Sugeri erguendo uma dose de absinto.

– À vida! Disse Martin.

– Ao fim das correntes! Exclamou Giosconni.

– Morte aos psicopatas! Disse ela entornando de uma vez uma boa dose do bom e velho lubrificante social.

Iolanda, seu nome. Pobre Iolanda. Acorrentada durante oito anos num porão do Incra 8. Condoí-me por ela. Senti muito pesar por sua vida sofrida, mas ao mesmo tempo senti-me muito feliz por sua volta por cima.

Lá pelas tantas, vi que ela já estava mal um bocado. Não conseguia erguer a cara da mesa e balbuciava qualquer coisa sobre uma amiga. Perguntei para ela se não queria dormir um pouco em meu carro, afinal, seria mais confortável. Ela olhou-me com o ar ébrio e encantador de sempre e aquiesceu com a cabeça. Levamo-la para o carro e o coloquei mais perto de nossa mesa de modo que a pudéssemos observar. Continuamos nossa troça e nossa bebericagem. Foi neste preciso momento que Martin nos alertou:

– Ali diante, vejo uma deusa. Falou pausadamente enquanto tentava se atinar com a realidade em sua frente.

– Creio que anjos dominaram a terra. Ponderou Giosconni já de caneta em punho pronto a escrever apontamentos metafóricos sobre a beldade que se fazia presente.

– Queria muito fazer sexo. Completei.

Martin escreveu o seu apontamento e solicitou ao garçom que o entregasse até sua deusa. Bilhete entregue, riso fácil percorrendo a outra mesa, Martin sumindo atrás da laranjeira com sua deusa, ficamos eu e Giosconni ali bebericando um tanto mais. Giosconni falava qualquer coisa sobre a saudade de seu regaço tão quisto e distando quilômetros e sobre vontade e desejo e, eu já sob o efeito entorpecente do absinto, comecei a escutar pouco e observar a outra dama que até então acompanhara a deusa de Martin. Era uma moça simples, mas de feição marcante, morena da pele lisa, vestido florido solto, pernas torneadas, sorriso breve e tímido e cabelos lisos como de uma Iara. Imaginei-a numa praia: vestido branco, sem nada por baixo, lua cheia, ela entrando no mar e voltando tímida para mim: “a partir de agora, amo você”.

– Dom Giosconni, perdão pela falta, mas não te acompanho faz algum tempo, tenho de ir ali falar com uma sereia. Disse eu já me levantando e indo até a moça.

– Boa noite. Eu disse triscando-lhe suave os ombros nus.

– Melhor agora. Ela respondeu. Pensei que nunca fosse vir a meu encontro. Falou-me segurando minha mão e se levantando. Vamos sair daqui?

– Pra qualquer lugar… Disse enfático.

E partimos naquele mesmo instante. Levei-a até o carro sem ter a mínima idéia de onde ir, só queria mesmo possuí-la de qualquer forma. Quando entramos no carro ela beijou-me suavemente e eu correspondi inteiramente. Dei a partida e comecei a dirigir a esmo pensando que ela não merecia um hotel vagabundo qualquer. Quando passávamos perto de um matagal, ela não se conteve, segurou firme em mim e disse:

– Vira o carro e entra aí nessa estradinha que eu não posso mais esperar.

Não pensei duas vezes e entrei matagal adentro cantando pneu. Foi nessa hora que eu escutei um gemido vindo do banco de trás do carro. Freei o carro bruscamente e alguém caiu no assoalho. Lembrei-me que Iolanda dormia no banco de trás. Iara – ou a moça linda de vestido florido e ombros nus, a qual eu ainda não sabia o nome – perguntou-me quem era a moça. Disse-lhe imediatamente que era uma sobrevivente de um cativeiro terrível, que havia passado oito anos acorrentada num porão de uma chácara no Incra 8.

– Pobrezinha, disse Iara indo ao banco de trás, com um ar de profunda compaixão.

Levantou-a do chão, colocou-a em seu colo e começou a fazer cafuné em seus cabelos cacheados. Achei linda a cena. Liguei o carro novamente e continuei a empreitada em meio ao matagal. Quando chegamos em um pequeno descampado parei o carro. Tirei um vinho tinto do porta-malas – como se sabe, todos devem andar sempre com um bom tinto no porta-malas para ocasiões propícias – abri-o e me servi de uma boa golada. Quando dei por mim as duas saíram do carro, vieram em meu rumo e me abraçaram. Num piscar de olhos, estávamos nós já nus e nos beijando. Vi quando as duas se beijaram também. Não tive coragem de dizer para Iolanda que ela tinha fugido de uma mulher horas atrás, talvez ela gostasse também de mulher e só não havia se atinado com a que a tirara para dançar. Mas o que importa é que fizemos sexo os três ali mesmo, em meio ao descampado, debaixo da lua, selvagens, como bons herdeiros do pecado original. Mãos, pernas, seios, bundas, membro, encaixes, desencaixes, malabarismos e outras peripécias mais, como tem que ser.

Passado o fogo inicial, deitados estávamos eu e Iolanda sobre o colchão de ar de casal – posto que sempre se deve andar com um colchão de ar de casal no porta-malas para ocasiões necessárias –, fumando um cigarro e bebendo alguns goles do restante vinho, quando vimos Iara andando levemente em nossa frente. Ela dançava uma música que não se ouvia e o pior, dançava bem. Foi bem no momento em que ela fazia uma pirueta no ar que vimos uma coisa absurda: de repente asas saíram de suas costas e ela ganhou os ares. Fez umas duas ou três cambalhotas no ar, deu um rasante sobre nós, parou por cinco ou seis segundos em nossa frente e se despediu, sumiu em meio à amplidão da noite estrelada.

Fiquei embasbacado. O que havia sido aquilo? Eu estava completamente atônito, sem conseguir proferir palavra que fosse, quando vi Iolanda se levantando e começando a vestir sua roupa. Olhei para ela e fiz uma cara do tipo “você não vai querer conversar sobre isso?”. Ela me olhou calmamente enquanto vestia sua calcinha e disse:

– Nem era das melhores, já estive com anjos que tinham uma pegada melhor.

Não comentei nada. Devo ter feito uma cara pior ainda. Ela continuou:

– Sabe o que mais me deixa puta?

– Não, falei.

– Depois dizem que anjos não têm sexo… Eles estão é muito avançadinhos esses tempos. Acredita que um dia desses fiquei com um que era masoquista? Vê se pode…

Não entendi bulhufas do que estava rolando, só reparei que eu estava realmente atrasado no que se refere às questões sexuais pós-modernas. Tive apenas uma sacação: “ah foi por isso que ela a pegou também, no final, não era mulher, era um anjo… e eu que pensei que fosse uma sereia… que mané que eu fui…”.

Entramos no carro e ela me disse para deixá-la lá mesmo no bar onde nos encontramos, ainda tinha esperanças de encontrar a tal amiga. Fomos em silêncio. No meio do caminho liguei o rádio, tocava Miles Davis, ela aumentou bastante o som. Quando chegamos, ela desceu, foi até a minha janela e me deu um puta beijo na boca. Disse que não ia me dar seu número de telefone, pois que a gente devia se encontrar por acaso mesmo. Concordei com a cabeça, olhei para o bar e vi que nenhum dos meus dois amigos estava ainda lá. Lembrei que não tinha deixado um puto para a conta e a gente tinha bebido pelo menos uma garrafa de absinto, pensei comigo: “ah, da próxima vez pago uma água mineral, quem sabe até com gás…”. Dei a partida, aumentei o som e fui para casa flutuando no asfalto.

A ilusão

Há toda essa necessidade de se fazer ouvir, de ser mais do que somente essas letras parcas endereçadas a mim mesmo e tomadas como palavras definitivas. Há uma vastidão no mundo e deste conheço menos do que o ínfimo. Fato é que ninguém deva conhecer muito mais, mas o que pesa é todo este ímpeto de querer abraçar o mundo e não conseguir, de sentir ser até essa sensação algo de pouca valia, como sendo apenas e somente um sentimento pequeno-burguês à toa.

E aí eu sinto vontade de dar backspeace em todo este parágrafo anterior e se não o fiz agora foi somente pelo fato de querer explanar sobre algo que desconheço e estar tão aflito que não tenho coragem de tomar atitudes drásticas. Aí então percebo que se alguém, que não eu, lê este, se torna fato o primeiro período deste parágrafo que produzo agora, mas se por acaso de minhas composições neurofisiológicas alguém, ou eu mesmo, não lê este texto da forma como está aqui, prova-se que tive coragem de apagar o já escrito e o que estou a escrever não possui mais lógica alguma. Mas o caso é que até então está tudo aqui: o primeiro parágrafo, o primeiro período do segundo parágrafo e todo o resto deste último, logo, o ato de ler isto se transforma em uma afirmação – em descontinuidade temporal – de um estado de espírito, de uma contemplação da alma, de um ato mecânico e de uma ida sem volta em meio a letras e idéias que se passam em algum lugar e algum momento em minha pessoa.

Uma questão se põe assim agora: em consonância com o que eu escrevo agora e ao mesmo tempo em que “leio” a informação grafada, há um vão, uma descontinuidade entre o que penso e o que coloco em palavras, imaginem então o que não há entre o que estou escrevendo agora e o que alguém, ou eu mesmo, está lendo agora. Há sempre um vazio entre a escrita e a leitura e ninguém ou nada é capaz de contemplar tal lapso espaço-temporal. O meu agora – realmente agora – é se não outro totalmente diferente de seu agora, ou meu agora – o de fato agora. E aí nunca haverá realmente um agora que se possa conduzir entre escritor e leitor e aí a escrita serve de pouca coisa e novamente penso na tecla backspace.

Mas, novamente não se preocupem, se alguém lê isto “agora”, é fato que continuei e que o backspace foi somente um pensamento – sem desqualificá-lo por inteiro.

Vários vãos entre a impressão e o papel, a tela do monitor e os caracteres, os dedos e as teclas do teclado, os impulsos e os dedos, os pensamentos e os neurônios, os neurônios e a alma. Nada é inteligível então. A lógica é só ilusão.

A garota que queria morrer

“Creio firmemente na fusão desses dois estados aparentemente contraditórios, sonho e realidade, numa espécie de realidade absoluta, numa super-realidade.”

Breton

Ela vivia de rock’n’roll, era movida por rock’n’roll. Sentada em sua cama olhava para a parede coberta de imagens, pôsteres de antigos bastardos (cabeças de motor). Viajava em nuvens púrpuras, pulando de pára-quedas junto a um guitarrista alucinado. Graças a Lucy que, com seus diamantes está no céu, agora também via submarinos amarelos. Encontrava-se à quatro mil trezentos e vinte horas em boas vibrações, mas não adiantava nada, queria morrer. Pensava em várias maneiras de seguir adiante, pensou em vodca com suco de laranja e enroladinhos de presunto. Lembrou-se de Joy, rapidamente colocou The Idiot no toca-discos enquanto assistia uma gravação tosca em VHS de Werner Herzorg. Tremeu, não se pendurou, não achou local para a corda. Nem tinha corda e, ainda mais, para que imitar os outros? Acendeu um incenso. Tentou meditar, tentou se lembrar de palavras que lhe desse conforto. Só pensava numa revista em quadrinhos: Morte – o grande caminho da vida.

Sin CityAcidade dos pecados – sua visão do mundo. Desejou ser como o ‘V’ e mudar a sociedade sozinha. Viver numa anarquia. “O caos precede a anarquia”. Sua mente estava um caos. Caos de informações, de emoções, de angústias… Curtia agora um dirigível de chumbo, não havia Cura nenhuma nesse momento. Pensou em si, no que seria ela. Era boca suja como Johnny Rotten, era mulher como Janis Joplin. Como uma garota de Bauru, achava Cazuza um anjo. Se cansou da auto-análise e leu Castañeda disfarçado de Moebius. Em sua frente a bandeira vermelha de Che balançava. Ideais, lutas, dialética, veias abertas de uma América Latina, a história era um conjunto de transformações da massa, seria ela uma utópica? Não, nunca se deu bem com os ideais burgueses. Pedras rolavam em sua cabeça. Satisfação! Analisou sua descendência negra. Nunca a negou! Pantera negra quis ser um dia, não vivera na época certa, conseguira somente ser uma inimiga pública. Não era uma refugiada mas brincava de jazz ácido. Não era uma máquina de sexo, mas queria paz, união e diversão.

Estudara em uma escola de escândalo, onde às vezes se escondia com ratos em um porão. Em meio a plebe rude revoltada nas ruas, via abortos elétricos pelo chão, afinal vivia numa capital. Capital inicial, início de algo. Nunca soube o quê. Sonha com uma sociedade alternativa, com chicos, marias, gilbertos, gals, caetanos, elises, miltons, zés, joãos, tudo aos Montes. Cantando tropicálias, xotes, bossas, reggaes, tudo… Tudo girava em sua psique. Deus, diabo, sol; diabo, deus, sal. Se sentia uma pagadora de promessas e ao mesmo tempo uma bela da tarde. A fraternidade era vermelha, a igualdade era branca, a liberdade era azul e o amor era rosa, cheio de bolinhas pretas e triângulos alaranjados. Sentia muito Ódio, queria morangos, chocolates e tomates verdes fritos, para comê-los com Felini, às oito e meia, num café Bagdá. Em sua mente passou um tempo de violência e lembrou-se de novo de sua morte tão desejada. Não queria uma morte trágica como a de Bob. Não queria morte com arma como a de Peter. Não queria morte com remédios como a de Marilyn. Sentir mais dor? Sempre vivera numa paranóia constante que não lhe deixara viver, por que mais sofrer? Tudo é dor.

Hemp começava a se espalhar pelo ar. Seus olhos começaram a ficar em brasa, fumaçando fumaça. Gostaria de ser uma Lee, mas no máximo era uma Silva. Lembrou-se da rádio rock’n’roll, donzelas de aço, buracos púrpuras, sapos rosas, panteras, correntes alternadas e continuas, sepulturas, missas negras, caçadores… Pensava muito. Pensou em Cartola: “sorrir, eu pretendo levar a vida/foi chorando que eu vi a mocidade perdida”, por isso não chorou, as rosas não choram. Sincronismo do acaso… por que nem o acaso chegara a ela? Trocou de disco. Colocou John Lee Hocker e começou a pensar de forma blues, melancolicamente, de certa forma, pensou soul a la Aretha.

Mortes, doenças, fome, misérias, guerras, políticos, pobreza, desigualdade, ricos, pessoas bonitas, corrupção, hipocrisia, dinheiro, arrogância, tortura, polícia, bandidos, prostituição, mídia, trabalho escravo, marketing, quebra de países, queda de bolsas, fusões empresariais, capitais especulativos, capitalismo selvagem e selvático, desonestidade, ira, ganância, cobiça, gula, volúpia, não pronunciarás o nome de Deus em vão, não matarás… ela come carne! Não entendia mais nada. GLOBALIZAÇÃO!!! Esta era a palavra da moda. Buda os ilumine. Papai, mamãe, titia, cachorro, gato e galinha. Família, algo sem lógica. Vida, algo sem lógica. Morte futuro de todos. Ela suava frio e quente ao mesmo tempo. Suava morno.

Viu que era uma música ao longe, um capitão da areia. Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois… quinze! Quinze? Lógico, sentia fome agora. Alma rebelde e profeta. Pensou ser Desdêmona, mas só conseguia ser Messalina. Gostava de ambos os sexos, não fazia distinção, o que lhe atraia não era o físico e sim o tudo. Como seria sua lápide mortuária? “FOI POETIZA – SONHOU – E AMOU A VIDA” como Azevedo. Arte pela arte? Aquilo que pretendia fazer seria sua mais bela obra. Entraria para a história. Não queria se matar, queria morrer. Sentiu que a chamavam. Era Jim. Atravessou as portas da percepção. “This is the end, my only friend, the end”. Deitou-se em sua cama, olhou pela última vez em seu caleidoscópio, bebeu o último gole de vinho, perdoou sua vida Judas, fechou os olhos e simplesmente parou de viver.

Adágio para ela

Há meia hora de espera em cada minuto. Chega aos tímpanos o movimento do ar vibrando notas velhas, gastas, usadas ao infinito, infinitamente plausíveis a esse momento, de um choro antigo que, carinhoso, afaga os cachos da espera. Cada compasso é medido em cinco segundos e a música se maneia em uma presença absurda. A máxima constatação da presença. Duas horas de música em apenas quatro minutos. Ainda assim ela virá. Certeza.

Dobrando a esquina o nariz já se atina em compreender o mistério do ar envolvente que exala de cada poro de seu corpo. Ela vem perfume em flor. Ela vem flor. Vestida de primavera, tomara-que-caia, tons verdes rosas. Ela e seu vestido são uma só. Já se sabe disso desde antes de duas horas atrás. Cada leve movimento seu e de seu contíguo verde-rosa vão par-e-passo com o ar, com a vibração em ondas do ar, como se aqui mesmo houvesse mar. Como se vento e mar fosse. Um maremorso ela é.

Agora já se vê de longe sua presença. Close em suas panturrilhas arredondadas e duras. Close em sua nuca. Chega ao apogeu o segundo movimento da sinfonia. As batidas são mais lentas, o compasso é mais demorado, a bateria chia como se ovos fossem fritados em uma frigideira num dia ensolarado de domingo pela manhã cedinho. Close em seu olhar. Seu olhar demora pelo menos cinco dias. Cada piscada é a fotografia do infinito. Ela retira a franja da testa, movimento único de mãos, corpo e cabelo. Ela. É. Toda. Uma.

Sua silhueta se move cadente. Candeia como se estrela fosse. Estrela que é. Pelo menos dez planetas giram agora ao seu redor e mais algumas centenas de cometas e mais alguns milhares de meteoros e mais um infinito ao seu redor. Como se céu fosse. Como céu que é.

Nada profana seu corpo. Nenhum adereço. Nenhum retoque. Nenhuma profanação. Tudo como sua intervenção em sua natureza disse que deveria ser. Tudo como deveria ser. Tudo como a é.

Já era prevista a sua chegada. Dez minutos atrás, em fato, duas horas e seis minutos atrás, o bar calou. Tudo serenou. As pessoas ficaram em estado de ar, de mar, de movimento de brisa. Quando ela chegou, o bar parou. O som não pôde parar, teve que se contorcer para fazer valer a sua presença com a presença dela, teve que se retorceu e se virou do avesso até que o piano conseguiu marcar compasso, levando pérolas aos poucos, ao mar.

Reles mortais tentaram uma aproximação, mas quando próximos ela virou um vulcão em lava que cobria tudo, preferindo a solidão. Sentada em frente ao balcão, copo de Martini na mão, ela acendeu um cigarro como se não houvesse solução e nem mesmo problema, e nem mesmo questão, quiçá resumo houvesse, mas ficou só a constatação de que ela fumava um cigarro e, ainda assim, tinha em flor o hálito.

Quando a banda parou alguns instantes, logo o bar se apressou em colocar alguma trilha sonora outra. Close no silêncio promovido pelo encontro do copo de Martini com a sua boca. Menino bonito, menino bonito. Ela repetia lentamente enquanto sua expirava a fumaça do cigarro. Menino bonito, menino bonito. Ela repetia com o olhar perdido no horizonte que começava e acabava com as grades da loja em frente. Ela ficava. Ela estava ali. Uma mulher teve um ataque cardíaco e um homem um ataque histérico quando entraram no bar e se depararam com ela.

Naquela noite, o bar ficou aberto e as pessoas em estado de alumbramento durante dez dias. Desatentos pensaram que foram oito horas.

Dizem que as santas exalam perfume de flores depois de mortas. Ela está viva.

Como Assim AVC?: uma história sobre recomeçar / Lísia Daniella

A experiência de quase-morte e os desdobramentos de uma vida enclausurada no próprio corpo são os panos de fundo da história real de uma jovem de 30 anos que sobreviveu a dois acidentes vasculares cerebrais, condenando-a ao prognóstico da tetraplegia e da síndrome do encarceramento. A jovem, aparentemente saudável, fora dos possíveis fatores de risco para a ocorrência de um AVC e vivendo o auge do seu trintênio, morreu para renascer e ser jogada à prisão sem grades de si mesma. Incapaz de falar e movimentar qualquer membro do corpo, mas plenamente consciente, recolheu os cacos que sobraram da sua vida e, com a ajuda fundamental da família e dos amigos, se libertou do cárcere, rasgando o roteiro do papel dramático e inservível que os médicos lhe entregaram para construir o próprio roteiro de superação da sua tragédia particular. A vida pulsando dentro de si foi o primeiro degrau da escada mental que ela utilizou para sair do buraco de incertezas em que se viu após o coma. Você descobrirá de que forma os demais degraus foram construídos, a partir de um verdadeiro tour pelas situações mais agonizantes que uma pessoa totalmente incapaz experimentou. Esta história é dela, mas é também de todos que, de alguma forma, sobreviveram e aprenderam o que é a vida após uma tragédia particular, seja você vítima, parente, amigo, profissional da área da saúde ou apenas um curioso por histórias de sobrevivência e recomeços. Você vai explorar o desconhecido e imprevisível mundo da reabilitação física e emocional, pelo relato pessoal de quem sobreviveu e recomeçou uma nova vida. Esta é uma história que fala de fé, mas também de desânimo; que fala dos anjos e demônios que surgiram durante a sua trajetória, mas também do que eles lhe ensinaram; que fala dos dias sem cor e sem gosto, mas dos dias mais coloridos e saborosos que é possível vivenciar; que fala sobre quem acreditou ter perdido tudo, mas na verdade só encontrou o que realmente precisava para recomeçar. Ela recomeçou e você também descobrirá que pode recomeçar, seja lá o que tenha lhe feito paralisar. Está pronto?

Drogas para adultos / Carl Hart

‘Drogas para adultos’: uma perspectiva sem preconceitos

Carl Hart

18 de junho de 2021

O ‘Nexo’ publica trecho de livro em que o autor – com base na ciência e em experiências pessoais – argumenta a favor dos benefícios do uso recreativo de entorpecentes e explora os efeitos da criminalização desta prática

Em 10 de dezembro de 1986, James Baldwin foi o orador principal no almoço do National Press Club. Apenas 44 dias antes, entrara em vigor a Lei Antidrogas. Baldwin aproveitou a oportunidade para criticar a nova legislação, referindo-se a ela como “uma lei ruim”. Ele previu que ela exacerbaria a discriminação racial e “só seria usada contra os pobres”. Além disso, instou especificamente os políticos negros a pressionarem pela legalização das drogas em nome de seus eleitores. Dezesseis dos vinte membros do Black Caucus do Congresso votaram a favor da nova lei.

Naquela época, eu servia na Força Aérea dos Estados Unidos e estava estacionado na Royal Air Force Fairford, em Gloucestershire, Inglaterra. Fazia parte da unidade policial responsável pela segurança da base. Eu nem sempre havia sido policial, nem queria ser. Mas, em 14 de abril de 1986, nosso país bombardeou a Líbia, em retaliação a atos de terrorismo patrocinados pelos líbios contra soldados e cidadãos americanos. Os aviões KC-135 que forneciam reabastecimento aéreo para os bombardeiros saíam da nossa base, então estávamos em alerta máximo para contra-ataques.

Como parte das medidas aprimoradas de segurança básica, fui selecionado, para meu desgosto, para reforçar a polícia de segurança. Na minha nova função, patrulhava a base com um rifle M16, às vezes por dezesseis horas seguidas. Eu odiava esse trabalho. Mas fazia o que me mandavam porque havia jurado obedecer aos meus superiores, bem como apoiar e defender a Constituição contra todos os inimigos dos Estados Unidos, externos e internos. Eu não me considerava particularmente patriota. Estava apenas fazendo o que era certo, do mesmo jeito que era certo não matar outro ser humano, não mentir e não usar drogas. Era certo e simples.

As observações de Baldwin, na minha opinião, estavam erradas. Fiquei num silêncio descrente, ouvindo com atenção enquanto ele apresentava seus argumentos. Sua sugestão de que a polícia aproveitaria a oportunidade — proporcionada pelo novo estatuto — de prender seletivamente os negros era difícil de aceitar. “Se as pessoas não usarem ou venderem drogas”, pensei comigo mesmo, “elas não serão presas.” Naquela altura da minha vida, embora tivesse sido parado pela polícia mais de uma vez por nenhuma outra razão além da cor da minha pele, eu ainda era ingênuo demais para entender plenamente que certas comunidades eram superpoliciadas e submetidas a um tratamento injusto pela polícia.

Os comentários ponderados e não condenatórios de Baldwin sobre drogas e legalização eram diferentes da narrativa pública dominante. O fato de ele não condenar as drogas parecia estranho. Suas opiniões eram desconcertantes. Elas certamente não eram formadas pelos incontáveis anúncios de utilidade pública que traziam poderosas advertências antidrogas feitas por celebridades. “Fumar crack é como colocar uma arma na boca e apertar o gatilho”, dizia um desses anúncios, cuja mensagem assustadora deixou uma impressão indelével em mim. Eu temia que as recomendações de Baldwin levassem a mais drogas e caos em bairros com poucos recursos, como aquele de onde eu vinha.

As opiniões de Baldwin sobre as drogas pareciam irresponsáveis. Fiquei perplexo e decepcionado. Ele era um dos poucos pensadores que eu realmente venerava. Seus escritos tinham me ajudado a ver que os americanos brancos, enquanto grupo, não eram meus inimigos, ainda que, de vez em quando, alguns me frustrassem pra caralho. As palavras de Baldwin expressavam essa relação com nossos irmãos e irmãs brancos de forma eloquente: “Nunca consegui odiar os brancos, embora Deus saiba que muitas vezes desejei matar mais de um ou dois”.

Sei agora que Baldwin estava certo sobre as drogas, assim como estava certo sobre tantas outras questões importantes. A aplicação da Lei do Crack levou, de fato, a uma discriminação racial desenfreada em prisões, acusações e condenações. Os efeitos dessa prática repugnante continuam a reverberar até hoje. Eu levaria mais de uma década para tomar consciência dessa injustiça, apesar de vários de meus próprios amigos e parentes terem sido presos e cumprido pena por violar essas leis.

Essa percepção me fez repensar meus pontos de vista sobre as drogas e sua regulamentação. Tenho vergonha de admitir isso agora, mas houve um tempo em que acreditei sinceramente que as drogas destruíam certas comunidades negras. Isso apesar de, no mesmo período, ter comparecido a um sem-número de eventos sociais organizados por colegas brancos, geralmente em comunidades brancas, nos quais quase sempre eram servidas substâncias psicoativas — tanto legais quanto ilegais — como lubrificantes sociais. A disponibilidade de drogas era abundante. No entanto, elas não destruíram essas pessoas brancas ou suas comunidades. As pessoas a quem me refiro são algumas das mais responsáveis e respeitáveis que conheço. São cientistas, políticos, educadores, ativistas, empresários, artistas, personalidades da mídia e muito mais. Elas são seus filhos, seus irmãos, seus pais, seus avós. São você… e eu. E são usuários de drogas, embora na maior parte usuários enrustidos.

Carl Hart é professor nos departamentos de psicologia e psiquiatria na Universidade Columbia e pesquisador do Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York. Seu livro anterior “Um preço muito alto”, publicado no Brasil pela Zahar, recebeu o PEN/E.O. Wilson Literary Science Writing Award.

https://www.nexojornal.com.br/estante/trechos/2021/06/18/%E2%80%98Drogas-para-adultos%E2%80%99-uma-perspectiva-sem-preconceitos

O alimento dos deuses / Terence McKenna


1. Deveria ser criado um imposto federal de 200% sobre o tabaco e o álcool. Todos os subsídios governamentais para a produção do tabaco deveriam ser cortados. Os alertas nas embalagens deveriam ser reforçados. Devia ser cobrado imposto federal de 20% sobre o açúcar e seus substitutos, e todo o apoio para a produção do açúcar deve ser interrompido. Os pacotes de açúcar também devem conter avisos, e o açúcar deve ser um tópico obrigatório nas matérias sobre nutrição nos currículos escolares.
2. Todas as formas de cannabis devem ser legalizadas e deve ser cobrado um imposto federal de 200% nos produtos derivados da cannabis. A informação quanto ao conteúdo de THC no produto e as conclusões atuais relativas ao seu impacto sobre a saúde devem estar impressos na embalagem.
3. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial devem parar de fazer empréstimos aos países que produzam drogas pesadas. Somente a inspeção internacional e o certificado de que o país está cumprindo a determinação poderá restaurar a possibilidade de receber empréstimos.
4. Deve haver um controle estrito sobre a fabricação e a posse de armas de fogo. É a disponibilidade irrestrita de armas de fogo que tomou o crime violento e o abuso de drogas problemas tão relacionados.5. A legalidade da natureza deve ser reconhecida, de modo que seja legal a posse e o cultivo de todas as plantas.
6. A terapia psicodélica deve ser legalizada e a cobertura dos seguros de saúde deve incluí-la.
7. A regulamentação da moeda e da atividade bancária deve ser reforçada. Atualmente a ligação dos bancos com os cartéis criminosos permite a lavagem de dinheiro criminoso em grande escala.
8. Há uma necessidade imediata de apoio maciço à pesquisa científica relativa a todos os aspectos do uso e do abuso de substâncias, e um compromisso igualmente maciço com a educação pública.
9. Um ano após a implementação dos quesitos acima, todas as drogas ainda ilegais nos/ Estados Unidos devem ser descriminalizadas. o intermediário é eliminado, o governo pode vender drogas 200% acima do preço de custo, e esse dinheiro pode ser colocado num fundo especial para pagar os custos sociais, médicos e educacionais do programa de legalização. O dinheiro resultante dos impostos sobre álcool, tabaco, açúcar e cannabis também pode ser colocado neste fundo.
10. Também a partir desse período de um ano devem ser anistiados todos os infratores em casos relativos a drogas, caso não tenham envolvimentos com armas de fogo ou assalto criminoso.

4176. Um dia quis eu ser poeta

(Para mudar, não pense)

Corpos sem consciência vagueiam
Fico perdido em pensamentos
Estou preso e cercado
Por onde passo sou fuzilado
A penumbra foi embora
Claridade me ofusca a alma

O que identifica é o que é meu
num ato individualista

Mentiras sobre mentiras
Todos estavam com suas máscaras
Ia andando apressado
Corria, sem olhar para os lados
Levemente, em busca de alívio
Minha vida é uma nau sem rumo
Sem vela, sem mastro, sem nada

A única coisa que existe

O homem que confundiu sua mulher com chapéu: e outras histórias clínicas / Oliver Sacks

O homem que confundiu sua mulher com chapéu: e outras histórias clínicas 

Oliver Sacks


O DISCURSO DO PRESIDENTE


Mas o que estava acontecendo? Uma gargalhada estrondosa explodiu na enfermaria dos pacientes com afasia, justamente na hora do discurso do Presidente, e todos eles estavam tão ansiosos para ouvir o Presidente falar…

Lá estava ele, o velho Sedutor, o Ator, com sua hábil retórica, seus histrionismos, seu apelo emocional — e todos os pacientes rebentando de rir. Bem, nem todos: alguns pareciam perplexos, outros, indignados, um ou dois, apreensivos, mas a maioria parecia achar graça. O Presidente estava, como sempre, induzindo — mas, ao que parecia, induzindo-os mais ao riso. O que eles poderiam estar pensando? Poderiam não estar compreendendo o Presidente? Ou talvez estivessem compreendendo bem demais?

Com frequência se dizia que aqueles pacientes — os quais, embora inteligentes, sofriam a mais grave afasia receptiva ou global, sendo por isso incapazes de compreender as palavras em si —, não obstante sua condição, entendiam quase tudo o que lhes era dito. Seus amigos, parentes e enfermeiras, que os conheciam bem, às vezes mal conseguiam acreditar que eles eram mesmo afásicos.

Isso acontecia porque, quando lhes falavam com naturalidade, eles percebiam uma parte ou quase todo o sentido. E naturalmente as pessoas falam com naturalidade.

Assim, para comprovar a afasia, o neurologista precisava fazer um esforço extraordinário para falar e comportar-se de maneira não natural, para remover todas as pistas não verbais — tom de voz, modulação, ênfase ou inflexão sugestivos — além de todas as pistas visuais (expressões, gestos, todo o repertório e postura que em grande medida são inconscientes e pessoais); era preciso suprimir tudo isso (o que podia exigir um disfarce total da pessoa e a total despersonalização da voz, chegando ao ponto de usar um sintetizador de voz computadorizado) a fim de reduzir a fala a meras palavras, uma fala inteiramente destituída do que Frege denominava “cor do tom” (Klangenfarben) ou “evocação”. Com os pacientes mais sensíveis, era apenas mediante essa fala altamente artificial, mecânica — meio parecida com a dos computadores de Jornada nas estrelas — que se podia ter certeza absoluta de sua afasia.

Por que tudo isso? Porque a fala — a fala natural — não consiste apenas em palavras, nem (como julgava Hughlings Jackson) só em “proposições”. Ela consiste na expressão vocal — em exprimirmos tudo o que queremos dizer, com todo o nosso ser — e isso, para ser entendido, exige infinitamente mais do que o mero reconhecimento das palavras. Essa era a chave para a compreensão dos afásicos, mesmo quando eles não conseguiam entender coisa alguma das palavras em si. Pois, embora as palavras, as construções verbais em si mesmas possam nada transmitir, a linguagem falada normalmente é impregnada de “tom”, envolta em uma expressividade que transcende o verbal; e é precisamente essa expressividade, tão profunda, variada, complexa, sutil, que é perfeitamente preservada na afasia, embora a compreensão das palavras seja destruída. Preservada — e muitas vezes mais do que isso: fantasticamente intensificada…

Também isso se evidencia — com frequência do modo mais surpreendente, ou cômico, ou dramático — para todos os que trabalham ou convivem estreitamente com afásicos: parentes, amigos, enfermeiras e médicos. A princípio, talvez, não vemos grandes problemas; e depois percebemos que houve uma grande mudança, quase uma inversão, em sua compreensão da fala. Alguma coisa perdeu-se, foi destruída, é verdade, mas algo surgiu em seu lugar, intensificou-se imensamente, de modo que — pelo menos nas expressões vocais imbuídas de emoção — o sentido pode ser totalmente percebido mesmo que todas as palavras se percam. Isto, em nossa espécie, o Homo loquens, parece quase uma inversão da ordem normal das coisas; uma inversão, e quem sabe também uma reversão, a algo mais primitivo e elementar. E essa talvez tenha sido a razão por que Hughlings Jackson comparou os afásicos aos cães (uma comparação que poderia indignar ambas as partes!), embora ao fazer isso ele estivesse pensando principalmente nas incapacidades linguísticas de afásicos e cães e não em sua sensibilidade notável, quase infalível ao “tom” e ao sentimento. Henry Head, mais sensível a esse respeito, usa o termo “tom do sentimento” em seu tratado sobre a afasia (1926), e ressalta que essa capacidade é preservada, e muitas vezes intensificada, nos afásicos.

É por isso que às vezes tenho a sensação — todos nós que trabalhamos de perto com os afásicos a temos — de que não se pode mentir para um afásico. Ele não pode compreender nossas palavras, e portanto não pode ser enganado por elas; mas o que ele compreende, é com uma precisão infalível: a expressão que acompanha as palavras, a total, espontânea e involuntária expressividade que nunca pode ser simulada ou falsificada, como se pode fazer tão facilmente com as palavras…

Reconhecemos isso nos cães, e com frequência os usamos com esse objetivo — para detectar falsidade, malignidade ou más intenções, para nos dizer quem é confiável, quem é íntegro, quem diz a verdade, quando nós — tão suscetíveis às palavras — não podemos confiar em nossos próprios instintos.
E, o que os cães podem fazer nesse campo, os afásicos também podem, e em um nível humano, imensamente superior. “A pessoa pode mentir com a boca, mas com o ar afetado que vem junto ela não obstante diz a verdade”, escreveu Nietzsche. Para esse ar afetado, para qualquer falsidade ou impropriedade na aparência ou postura do corpo, os afásicos têm uma sensibilidade fantástica. E quando não conseguem enxergar a pessoa — isso vale especialmente para nossos afásicos cegos — eles têm um ouvido infalível para todas as nuances vocais, para o tom, o ritmo, as cadências, a música, as mais sutis modulações, inflexões, entonações que podem dar — ou tirar — verossimilhança à voz humana.

É aí, portanto, que reside sua capacidade de compreensão — de perceber, sem palavras, o que é e o que não é autêntico. Assim, eram os ares afetados, os histrionismos, os gestos falsos e, sobretudo, os falsos tons e cadências da voz que pareciam falsos àqueles pacientes sem palavras mas imensamente sensíveis. Era àquelas incongruências e impropriedades extremamente flagrantes, até mesmo grotescas (para eles) que meus pacientes afásicos reagiam, não logrados e impossíveis de lograr pelas palavras.

Por isso riram do discurso do Presidente.

Se não se pode mentir para um afásico em razão de sua sensibilidade especial à expressão e ao “tom”, poderíamos então perguntar: o que ocorre com os pacientes — se é que existem — que são desprovidos do senso de expressão e “tom” mas preservam, inalterada, sua compreensão das palavras: os pacientes do tipo exatamente oposto? Temos alguns pacientes assim, também na ala dos afásicos, embora tecnicamente eles não tenham afasia e sim uma forma de agnosia, em especial a chamada agnosia “tonal”. Para tais pacientes, tipicamente, as qualidades expressivas da voz desaparecem — tom, timbre, sentimento, todo o caráter — enquanto as palavras (e construções gramaticais) são compreendidas perfeitamente. Essas agnosias tonais (ou “aprosódias”) estão associadas a distúrbios do lobo temporal direito do cérebro, enquanto as afasias ligam-se a distúrbios do lobo temporal esquerdo.

Entre os pacientes com agnosia tonal em nossa ala dos afásicos, que também ouviam o discurso do Presidente, estava Emily D., que tinha um glioma no lobo temporal direito. Ex-professora de inglês e poetisa de algum renome, com uma sensibilidade especial para a linguagem e grande poder de análise e expressão, Emily D. podia representar a situação oposta: como o discurso do Presidente soava para alguém com agnosia tonal. Emily D. não era mais capaz de distinguir se uma voz exprimia raiva, alegria, tristeza — coisa alguma. Como as vozes não tinham mais expressão, ela precisava olhar para o rosto das pessoas, suas posturas e movimentos ao falar, e fazia isso com uma atenção, uma intensidade que nunca apresentara antes. Mas acontece que isto também tinha limitações, pois, devido a um glaucoma maligno, ela estava perdendo rapidamente também a visão.

Ela verificou, então, que o que precisava fazer era prestar a máxima atenção à exatidão das palavras e do uso das mesmas, e insistir para que os que a cercavam fizessem o mesmo. Cada vez menos ela era capaz de entender a linguagem informal ou a gíria — a fala do tipo alusivo ou emocional — e precisava que seus interlocutores falassem em prosa — “palavras apropriadas nos lugares apropriados”. Descobriu que a prosa podia compensar, em certa medida, a ausência da percepção do tom ou do sentimento. Dessa maneira ela pôde preservar, e até mesmo intensificar, o uso da fala “expressiva” — na qual o significado era dado inteiramente pela escolha e referência adequada das palavras —, apesar de ficar cada vez mais perdida quando se tratava de fala “evocativa” (na qual o significado é dado totalmente pelo uso e sentido do tom).

Emily D. também ouviu, com uma expressão petrificada no rosto, o discurso do Presidente, acolhendo-o com uma estranha mistura de percepções intensificadas e defectivas — a mistura exatamente oposta à de nossos afásicos. O discurso não a estimulou — nenhum discurso a estimulava mais — e tudo o que era evocativo, genuíno ou falso, passou-lhe despercebido. Privada da reação emocional, teria ela (como o resto de nós) se deixado arrebatar ou engolido o que fora dito? De jeito nenhum. “Ele não é convincente”, ela comentou. “Não fala em prosa apropriada. Seu uso das palavras é inadequado. Ou ele tem deficiência cerebral ou alguma coisa a esconder.” Portanto, o discurso do Presidente não funcionou também para Emily, em razão de seu senso intensificado do uso formal da linguagem, da prosa apropriada, assim como não funcionou para nossos afásicos, que têm surdez para as palavras mas possuem sensibilidade intensificada para o tom.

Eis, portanto, o paradoxo do discurso do Presidente. Nós, normais — ajudados, sem dúvida alguma, por nosso desejo de ser enganados —, de fato nos deixamos enredar (“Populus vult decipi, ergo decipiatur”). E tão astutamente foram combinados o uso enganoso da palavra com o tom enganoso, que só os que tinham dano cerebral ficaram ilesos, não foram logrados.