Dos que vagam no meio da noite

Olhei-o disfarçadamente, de soslaio. Desavisadamente. Não queria que percebesse meu interesse. Olhei seu semblante cansado, havia ainda aquele ar de tristeza, mas não era mais o mesmo de antes, aquele ar de tristeza infantil, bobo. Agora era um ar destruidor de tristeza. Essa nova tristeza lhe entumecia a masculinidade. Outrora sua tristeza o amolecia, dando um contorno flácido à sua constituição. Agora era algo bruto. Talvez essa tristeza houvesse se aglutinado a um certo rancor ou a uma mágoa e nesse momento se ajustava em torno de uma superfície árida, sem fluidez. Seu rosto estava desértico e até a cor lembrava areia, só que sem qualquer minúsculo cristal de quartzo a reverberar alguma luz.

Ele não havia reparado que eu o olhava. Estava longe, longe, léguas. Não tanto ali, eu dele e ele de mim, mas de qualquer coisa, parecia ausente. Levava uma lata de cerveja à boca mecanicamente, intercalando um gole e um trago num cigarro. Aflitivamente descompromissado e perdido. Provavelmente não ouvia a música, a banda, o show. Parecia que a única coisa que lhe acometia era aquela tristeza. Retumbante. Agressiva e longe. Descompassava os pés com um pretenso ritmo que não ouvia.

Parei a poucos metros dele, queria e não queria olhá-lo. Fazia muitos anos. Será que eu ainda fazia parte daquela tristeza? Certamente algum tanto, ninguém passa incólume por um amor. Será que ele ainda era ele? Certamente não mais algum tanto, os anos atravessam alma e pele.

O pouco das nuvens no céu desmanchavam-se esfumaçando os tons violáceos do horizonte. Um frio outonal apavorava os meus ossos e o casaquinho verde de linha pouco me bastava. Um tremor percorreu minha espinha, talvez pelo vento, talvez porque pensei que os olhos dele me buscavam. Virei de costas e andei. Não queria beber, mas o impulso me conduziu a comprar uma cerveja.

Demorei delicadamente em cada ato: num tom alegre e de intimidade perguntei qual cerveja ela tinha, indecidi-me, pedi a de sempre, quanto é, mais barato, vai? sei, entendo. Abri a bolsinha de moedas com estampa da Índia. Ele que havia me dado. Quantos anos… Que bolsa boa. Paguei, abri minha cerveja e bebi, lentamente, quando me virei, ele não estava mais lá.

Minha mente se acalmou por não mais vê-lo, mas aquela sombra de que agora era ele que poderia estar me observando me arruinava a naturalidade. Media cado ato meu, minuciosamente, na intenção de que, se ele estivesse a me olhar, visse apenas o ondular da leveza que existe e insiste apenas em ser verdadeira. Havia um desejo secreto em mim de que ele ficasse mais triste ao contemplar a minha altivez genuína.

Mas, inadvertidamente, eu ainda o procurava nos cantos, de esguelha, percorrendo cada rosto na multidão. Não o encontrei. A poucos metros, avistei Rebeca, fui até ela e por lá fiquei, ainda catando rostos ao longe, sem vê-lo em canto algum. No fim do show peguei o carro sozinha, não dei carona pra ninguém. Numa calçada mais à frente foi que o avistei de novo, caminhando no meio da noite, sozinho, ainda com aquela novidade de tristeza. De fato eu já não o conhecia mais, podia ser qualquer pessoa agora. Certamente, era. Parei num semáforo, ele ficou quase ao meu lado. Não se virou, apenas continuou caminhando, suspirando profundamente, olhar fixo no horizonte adiante.

Alguém atrás buzinou pra mim, o semáforo ficara verde e eu não havia saído. Caí em mim e parti, ainda a tempo de vê-lo mais uma vez. Muito tempo se passara. Era apenas um desconhecido no meio do noite, indo do nada pra lugar algum.

Deixe uma resposta