Possibilidade

Quem vem à cidade grande, aos grandes centros urbanos pela primeira vez, se depara com um labirinto estático de concreto. Espanta-se mesmo não aparentando. São gigantes de vidro e luz, infinidade de vias, amontoados de homens e mulheres sobrepostos a concreto e metal, fios e mais fios por onde escorre o sangue elétrico e informativo que mantém vivos os homens e mulheres sobrepujados desse labirinto, carros e mais carros cortando o córtex asfáltico da cidade.

Quem chega à primeira vez vê que a cidade é labiríntica e estática, mas de uma estaticidade diferente, ela é caótica, é confusa, é agitada. Um labirinto estático onde a vida ferve. Onde tudo acontece ao mesmo tempo. Onde, aprisionado a concreto, metal, fios, vidros, asfalto e luz o mundo não pára. Tudo se combina em labiríntica estaticidade de infinitas possibilidades. Os mundos são sobrepostos e todos são possíveis.

Quem vem pela primeira vez se assusta e se encanta. São todas as possibilidades, e tantas…

Num contexto próximo a esse, seu José chega com a família pela primeira vez a uma cidade grande. Ele, sua esposa Adelina e seus cinco filhos – Wanderley, Waldison, Walton, Waldênia e Waldenice – pisam todos juntos nos solos dessa Brasília, vindos de algum lugar entre a bissetriz de norte e leste, dos interiores desses brasis possíveis, e perdem juntos suas virginais e castas impossibilidades de possibilidades.

Mundos e mais mundos se sobrepõem a suas faces logo na rodoviária. Após rodovias de pó ou piche chegam juntam a esse universo insondado de caras e mais caras visíveis uma única vez na vida e nunca mais –- embora sempre exista a vastidão de possibilidades do reencontro.

Seu José e sua família chegam em Brasília a convite de seu irmão Jessé, que há muito debandara de sua terra natal – aquela vila pequena onde as possibilidades se amofinavam em continuar ou continuar, de um jeito ou do mesmo jeito – e se fizera nesta “capital da República Federativa”, como ainda gosta de pronunciar, deixando para trás seis irmãos dos dez que ainda estavam vivos em seus marasmos bucólicos de impossibilidades e ajudou a erguer a infinidade de mundos que viria a ser (e é) Brasília.

Jessé era homem forte, desses que não se fabricam mais, movido a suor derramado e pouco sono. Na época do nascimento de Brasília, se fez na construção civil e até hoje, com seus cinqüenta e oito anos, se dedica a erguer concreto, dando mais carne ao mundo em que vive, fabricando mais mundos.

Há sete anos largara a cachaça – hábito que cultivava desde os quinze – e se dedicava à vida espiritual em uma comunidade evangélica que o acolhera de braços abertos e lhe dava o conforto espiritual necessário a uma vida de labor. Vivia com sua esposa Maria e seus três filhos numa casa concedida por seu enaltecido governador na expansão de uma cidade satélite do Distrito Federal, para não dizer favela.

Enquanto isso seu irmão José morava com sua família como caseiro de uma fazenda de um figurão da capital no interior da Bahia. Casinha de tapera simples e pouco confortável. Há dois meses havia sido mandado embora de sua choupana, uma grande empresa de frangos havia comprado a fazenda. José desesperou-se. A vila mais próxima não tinha condições de abrigar um indivíduo que nada possuía de tão extraordinário que pudesse alterar a estaticidade da cidadela. Só tinha contato com uma pessoa da família: Jessé, que de quando em quando lhe escrevia uma carta. Na última dissera: “Deus quer que você compartilhe conosco as bênçãos que temos conseguido aqui. Asseguro que moradia nosso homem garante…”.

O “homem’ a quem Jessé se referia era o governador. Sujeito totalmente deslocado no tempo, que possuía um discurso antenado com os mais pobres e servia-lhes de ”pai-patrão”, numa alusão clara às épocas de coronelismo que por aqui, todos sabem, longe está de acabar. Dava lotes, dava leite, dava pão e só disfarçava ao dar esmola: dava “ajuda”.

José viera. Juntara os poucos tostões que seu antigo chefe lhe concedera como prova de sua boa conduta (e para um sono cristão mais tranqüilo é claro) com algumas economias que possuía com o intuito de adquirir uma mula nova, e comprara passagens para Brasília. Durante a viagem somente algumas petas duras que uma amiga de Adelina compreensivelmente lhe concedera era o que lhes servia para forrar o estômago (a única possibilidade). Na cabeça de José giravam confusamente o medo e o dilúvio de possibilidades contido nas palavras “capital da República Federativa”, como seu irmão gostava de pronunciar.

Ao desembarcar na rodoviária José se espantara. Espantara-se tanto, estava com tanto medo, que ao mesmo tempo se maravilhava, se inebriava com aquela confusão de gente correndo de um lado para o outro, gritando, esbarrando nos outros…

José não percebia que a confusão e a correria que acontecia na rodoviária não era um fato normal. Ele olhava todos aqueles homens de azul e a polícia se confrontando e não entendia o porquê da briga. Havia uma infinidade de possibilidades para o que acontecia, eram tantas e tais que José não podia ver que ali ocorria uma luta por causa de uma greve. E que os homens de azul eram rodoviários lutando por condições mais humanas de vida. E que os polícias naquele instante eram extensão dos braços do “nosso homem” do qual lhe falara seu irmão, e que estavam ali também tentando garantir suas condições humanas de vida, nem que para isso tivessem de matar outros seres humanos.

José não compreendia. Sua euforia inicial fora abafada por uma agoniante sensação de descontrole. Os concretos da rodoviária se fechavam em trincheiras e complicavam mais o labirinto ao qual Deus queria que José compartilhasse. José se desesperava. Queria sair dali, mas não via possibilidade alguma – quem diria?! Ele está no mundo das possibilidades!

Mais confusão. Ônibus queimado, vidros quebrados, cassetetes, cavalos, sirenes, fumaça, água… De repente, um tiro. Mais um, outro e muitos outros.

No meio de um desses tiros o alvo fora José. Um tiro em cheio no meio da testa, fulminante. Mais uma bala de borracha que matava outro inocente, mais uma viúva, mais cinco órfãos de pai, mais um que se vai em vão (“e agora José?!”. Mais alguns indivíduos a serem acolhidos por um “pai-patrão” qualquer, perdidos no mundo de vastidão esperançante.

José morreu. Não morreu sereno. Morreu tenso, confuso. Tentando proteger sua família, tentando proteger a si, tentando sobreviver. Querendo paz. Querendo o vasto horizonte de opções que ele tanto almejava na “capital da República Federativa”. José morreu com o medo em seu coração, cravado de dúvidas e de possibilidades.

Agora eram mais seis. Mais seis seres humanos que teriam de lutar por suas condições humanas de vida em meio a um labirinto. Seis seres que a qualquer momento poderiam voltar à animalidade. Perdidos nas paredes de concreto do labirinto. E não só mais seis, mas sim dezenas, centenas (todos os dias chegam aos montes), milhares quem sabe! Adentrando no mundo dos mundos sobrepostos, na inércia veloz das vias desse labirinto. Aptos a escutar “homens” quais deuses e imersos numa vasta bruma de possibilidades e dúvidas infindas.

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