Quem dera

Ônibus maldito. Parece que cada minuto é uma hora nesse maldito ônibus maldito. Coletivo. Se a coletividade for isso, prefiro o individualismo. Se coletividade for esse roçar forçado de bundas, pernas, braços, sovacos e cabelos e esse eterno pisar e ser pisado por pés de todos os tipos, prefiro mil vezes a máxima liberal da potencialidade individual. Aqui nesse coletivo a ordem é: cada um por si e bundas, pernas, braços, sovacos e cabelos para todos.

Paradoxal. O coletivo lotado é paradoxal. Cada um quer apenas ver o seu lado e salvar o mínimo que seja dos seus míseros trinta centímetros de campo de ação. O pior é quando o sujeito, cônscio plenamente da luta selvática por seu espaço único, avidamente desejoso de ter para si mais que trinta centímetros de campo e ação e poder repousar a planta de seus pés livremente no chão do ônibus, solta, às vezes lépido e em outras mais, tenso e confuso, um gás qualquer de suas entranhas. Uma arma letal nesta intensa luta territorial dentro do ônibus lotado.

Quinze para as oito. Ainda faltam pelo menos mais vinte quilômetros até a minha parada. Pela atmosfera do trânsito que circunda o ônibus, a velocidade média do fluxo veicular é de dois postes por minuto. Meu Deus, dois postes por minuto, beirando o um e meio. A missão de tentar chegar no horário do trabalho é em vão. A primeira batalha perdida.

Alguém puxou a corda, fez o sinal para o ônibus parar. a parada está a apenas cinco postes de onde o sujeito puxou a corda. Vê-se o ar tenso do cara. Cinco postes, um minuto para cada dois postes, dois minutos e meio para descer. O cara não agüenta. Está quente, está seco, como já é fato nesse planalto central brasileiro pelos idos de abril. O sujeito não agüenta, pede tréguas, bate freneticamente na parte de cima da porta do ônibus e assovia para o motorista abrir logo a porta. O motorista, como bom general desta insana batalha de todos contra todos e do alto de seu sadismo, finge não ouvir. O cara berra mais: “Pô, abre aí motorista!!”. O motorista, depois de fingir não escutar os cinco gritos do cara, berra lá da frente: “Só posso abrir na parada!!”. Sua pouca, mais ainda, autoridade, faz o cara se calar, rendido, desarmado, não pode fazer nada. Só espera impaciente, xinga baixo, fala “que absurdo”.

Ninguém se esquenta muito com o cara. Afinal, essa é a luta dele para sair do ônibus. No fundo, todos sentem um pouco de inveja do cara por ele estar descendo logo, de estar se livrando do campo de batalhas do ônibus, ainda mais que agora, para os que estão de pé, uma nova batalha surge. Agora a busca é por conquistar o espaço que o sujeito que desceu deixou “livre”. É a árdua disputa por uma mísera parcela territorial que garanta o mínimo do espaço vital ratzeriano dentro do ônibus.

Olho para o lado e vejo que posso ter uma chance, é só eu conseguir tirar o meu pé de baixo das sacolas da moça ao lado, passar pela bunda avantajada do sujeito atrás de mim, segurar firme no apoio do ônibus e impulsionar meu corpo contra o cara que está dormindo em pé ao lado da porta. Meu território vai ser conquistado. Olho pra trás e vejo que um cara lá do fundo pensa o mesmo. Eu o olho no olho. Ele me encara com ar desafiador. Que vença o melhor. E esse vou ser eu com certeza. Não posso pensar na derrota. Mas é claro que, como experiente perdedor que sou, já vislumbro que, caso a missão não seja bem sucedida, posso tentar ainda ficar pelo menos no canto direito da porta, ali só tem um estudante meio bocó que eu posso me impor tranqüilamente e deixá-lo esmagado contra a tiazinha que não para de falar com a outra que está sentada.

No três eu vou. Um, dois… Merda, tenho que ir logo o meu adversário já começou o seu percurso. Me livrei das sacolas, passei a bunda gigante, estou quase lá, é só jogar o meu corpo pra frente e pedir desculpas e… Merda! De onde surgir essa tiazinha? Caracas, fomos vencidos, nós dois por uma tiazinha! Agora ficou ainda pior estou de cara, com o sujeito. Ambos com o olhar cúmplice de exímios perdedores. E o pior é que agora, ao invés de ter uma sacola em cima dos pés e uma bunda gigante me atacando, estou completamente torto, apoiado unicamente em um pé, enquanto o outro tenta não roçar nas coxas da moça ao lado, afinal, tomar um tapa no ônibus lotada de manhã cedo é demais para um perdedor só.

Aflição. Quentura. Ar seco. Uma gota de suor corre lépida e fagueira em minhas costas e eu sinto um pequeno arrepio. A questão é se concentrar. O meu adversário e agora irmão de desgraça percebe o meu plano B e o executa exemplarmente. Nesse momento eu não o vejo mais como meu adversário, agora eu queria cumprimentá-lo, ele é um como eu. Que teve o apreço dos céus de lhe dar a oportunidade e a capacidade de conquistar um pouco mais de espaço nesse coletivo lotado.

Se eu acreditasse em Deus poderia até rezar por mais espaço, eu até tento, mas meu espírito cristão cristalizado culturalmente em meus atos policialiscos mentais não me deixa orar para algo em que eu não acredito. Mais um paradoxo dentro do coletivo: não acredito em Deus, mas sei que sou cristão.

Não sei se pela minha franqueza, ou pela minha fraqueza, de não ter rezado, Deus me achou um cara bacana e providenciou o meu momento de paz. Um cara que estava do meu lado dá o sinal. Eu fico tenso, daqui há pouco eu devo estar em paz e com os dois pés no chão do ônibus. Espero, agora realmente o ônibus parece ir a um poste e meio por minuto. Tudo lento, tudo parado. Parece um desses filmes experimentais europeus que eu não entendo nada e digo no final que achei a fotografia muito bonita. Tudo em outro modus operandi.

Enfim, o cara desce e leva consigo mais duas pessoas. São três a menos agora. O fundo do ônibus fica em polvorosa, é uma exasperação pela tranqüilidade que pode vir agora. Eu coloco os meus pés calmamente no chão e olho pela janela. O dia ficou até mais bonito. Passamos o primeiro semáforo que engaveta todo o trânsito, só faltam mais três pela frente. Lá fora uma barriguda explode em rosa e contrasta com o azul mais que azul do céu. Parece que uma poesia ainda cabe mesmo neste campo de batalhas móvel.

Olho para as pessoas que sentam no banco à minha frente. Um cara dorme e baba com fones de ouvido. Acho que ele escuta algum rap. Do lado dele há uma moça. Ela lê alguma coisa. Sempre que posso, tento ler o que as pessoas estão lendo nos ônibus, normalmente é a Bíblia, algum livro religioso, tipo “Ele veio para libertar os cativos”, alguma coisa sobre concursos públicos ou então “O código da Vinci”.

Já li capítulos inteiros sentado ao lado de outras pessoas no ônibus, até partes inteiras da Bíblia. Gosto mais do Antigo Testamento, tem mais cara de gente, parece mais com seres humanos falando, tem um ar de fábula maior, tem um gosto de lenda. O Novo Testamento é mais poético, mas também, mais piegas.

Olhei de novo o que ela estava lendo, torcendo para que, se fosse a Bíblia, pelo menos não estivesse em Mateus. O ônibus estava lento, dava para ver calmamente o que ela lia. Eu tinha acabado de consertar a minha miopia mais uma vez e estava com olhos de lince com minhas novas lentes. Demorei para me concentrar no que ela lia. Por fim, consegui:

“Sabe, Johann, disse Hemingway, eu também não escapo de suas eternas acusações. Em vez de ler meus livros, escrevem livros sobre mim. Parece que eu não gostava de minhas mulheres. Que não me ocupei suficientemente de meu filho. Que quebrei a cara de um crítico. Que fui pouco sincero. Que fui orgulhoso. Que fui macho. Que me vangloriei de duzentos e trinta ferimentos de guerra quando tive apenas duzentos e seis. Que me masturbei. Que fui mau para minha mãe.

– O que você quer é a imortalidade, disse Goethe. A imortalidade é um eterno processo.”

Em algum momento da minha vida aquelas palavras eu já havia lido. Certo que não na Bíblia. Imortalidade não se fala assim, com esse tom sério e possível, é sempre algo por vir, por se ter, por se querer e ao lado de Deus. Fora que, Hemingway e Goethe, ao que consta em minha parca lembrança do catecismo que fiz, não foram personagens bíblicos. Mas, onde eu teria lido aquelas palavras antes?

Pensei em perguntar para a moça o que ela lia. O nome do livro, quem escreveu… Sei lá, qualquer dica para que o fantasma de uma memória deixasse de ser fantasma e ganhasse os contornos de uma idéia certa. De algo que não está disperso em seu ser.

Desisti rapidamente da idéia. Não quis atrapalhá-la em sua atividade. Afinal, ler é uma atividade como outra qualquer e deve ser respeitada.

Li mais alguns parágrafos tentando descobrir o que era. Afinal, um diálogo entre Hemingway e Goethe é algo que não está em qualquer livro, mas em algum muito específico e do qual, infelizmente, eu não conseguia recordar. Talvez pudesse ser Sartre. Hum, não. Sartre não teria tido uma idéia dessas, creio que ele não comungaria assim com um encontro entre o romantismo e a aspereza. Talvez alguém aqui do Brasil? Não, isso não tem cara de literatura tropical. Quem sabe o velho safado? Não. Bukowski não teria saco para falar sobre a imortalidade e se houvesse menção à Hemingway deveria ser para meter o malho.

Nossa. Agora sim, me atinei. Imortalidade. é “A imortalidade”. Milan Kundera. Boa leitura, heim moça? Difícil isso, ver alguém ler um romance desse tipo num ônibus. Eu sei que eu leio e conheço pelos menos umas seis pessoas que fazem o mesmo, mas eu nunca as vi fazer, só sei que elas fazem por me dizerem que fazem e saber que elas realmente leram muitos livros. Muito interessante isso, uma moça lendo Milan Kundera num coletivo lotado. Será que ela faz Letras? Não sei porque, mas sempre que alguém fala de Kundera, penso que essa pessoa faz, fez ou quis fazer Letras.

Não, acho que não. É melhor retirar os amálgamas dos estereótipos possíveis e só acompanhar a leitura com a moça. Será que ela percebe que eu leio o livro junto com ela? Não, acho que não. Normalmente as pessoas se incomodam com o ato de alguém ler algo que elas estão lendo ao mesmo tempo e meio que às escondidas. Parece que o ato de ler é algo sagrado e sacramentado pelos auspícios da solidão. Talvez solidão não, mas sim individualidade. Algo para si. Guardado a si e incorporado a si. O desconforto quando pegamos alguém lendo o que estamos lendo deve se dar no momento em que pensamos que outra pessoa pode estar discordando de você naquele seu momento tão único. Afinal, alguém falar outra posição que a sua sobre um livro no momento após a leitura ou mesmo anterior a esta, é tranqüilo, difícil é pensar que no mesmo lapso de segundo que você lê algo, alguém também o lê e pode estar em completo desalinho com o seu pensamento. De fato, isto pode incomodar, tira um pouco a magia do ato de leitura. Fora o fato da intimidação que ocorre quando você quer mudar a página e não sabe se a pessoa já terminou ou não. E como o ato de leitura da outra pessoa é clandestino, ela também não tem coragem de falar “espera um pouco, só falta esse último parágrafo”.

Sei que pode ser desconfortável ter alguém lendo o que você está lendo ao mesmo tempo e de canto de olho. Mas admito, eu o faço (em verdade, é quase um vício).

E lá estava a moça lendo seu Kundera e eu tentando acompanhá-la. Árdua tarefa posto que o ônibus já começa a andar numa velocidade média de dois postes por trinta segundos. O ônibus esvaziava conforme aumentava a velocidade do mesmo e bancos começavam a ser desocupados. Eu ficava tenso novamente por saber que em algum momento um banco próximo a mim ficaria livre – afinal, em meio a uma batalha territorial móvel, haver um lugar para se sentar e não se sentar é um desrespeito às regras clássicas da guerra – ou que a moça fosse descer na próxima parada.

Tempo, tudo é uma questão de tempo. Se eu pudesse ter tido mais tempo para ler teria lido mais, talvez, por isso, eu fique mendigando letras em bancos de ônibus.

A minha viagem vai terminar, na próxima parada eu desço. Puxei a cordinha. Voltei a ler novamente o máximo que eu pude, queria terminar pelo menos aquele pequeno capítulo. Se eu não estivesse atrasado desceria uma parada depois da minha. Terminei, consegui ler até o fim do capítulo. Pelo menos uma vitória nessa manhã torpe. Dei de costas para a moça, parei em frente a porta do ônibus e momentos antes de a porta se abrir atinei-me de olhar o rosto da moça que lia Kundera. Virei o rosto e olhei a moça, ela levantou os olhos e me disse: “Bom livro esse, não?”.

Meio em estado de choque eu desci do ônibus e não consegui falar nada à moça. No máximo eu arregalei um pouco os olhos e dei um meio sorriso de canto de boca, nem amarelo ao menos. Foi tão estranho o comentário da moça para a minha cabeça mareada pela batalha do ônibus, pelos vacilos da memória, que eu não me atinei muito no que eu estava fazendo e sentei na parada de ônibus. Fiquei um tempo pensando e cheguei a uma conclusão banal, mas que me tocou por pelo menos dois segundos antes de me levantar e correr para não me atrasar ainda mais para o trabalho: meu espanto se deu não pelo fato de que não se lê nesse nosso mundo de hoje, mas sim, pelo fato de que a moça, mesmo não me conhecendo quis compartilhar comigo um momento único incrustado em sua leitura: “Bom livro esse, não?”.

Talvez, se a gente lesse mais, esse mero comentário não me fosse tão estranho, pois seria como um “bom dia”. Talvez, se lêssemos nos ônibus, nas paradas de ônibus, nas filas de banco e supermercados, nos banheiros, antes de dormir ou mesmo nos intervalos comerciais da TV, seria tão normal o comentário que até veríamos crianças e adolescentes lendo nas escolas e comentando suas experiências uns com os outros como se fala do corpo da colega de classe.

Talvez houvesse até mesmo um ar mais bonito uma manhã difícil.

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