Era hora da estrela encarnada,
mulungus ficam calmantes
a cristalina flor dessa luzerna.

Meu nome é Guilherme, poeta , professor de geografia da Secretaria de Educação-DF e mestre em geografia (UnB). Tive AVC em maio de 2020 (isquêmico) não consigo falar ainda. Tenho apraxia e afasia. Apraxia é um distúrbio neurológico motor da fala, resultante de um deficit na consistência e precisão dos movimentos necessários à fala. Afasia é uma alteração na linguagem causada por lesão neurológica.
Era hora da estrela encarnada,
mulungus ficam calmantes
a cristalina flor dessa luzerna.



Limiar
Uma geografia de dúvidas
Ihe percorria todo o firmamento:
serão serafins? será música
isso que martela incessantemente
e não consegue arrebentar?
As perguntas se dissipam no ar.
E um cardume de corolários
atravessava-lhe o desfiladeiro:
então isto é aquilo, e o contrário
só é verdade do princípio ao meio
etc. Isso proporcionava-lhe
prazer não pouco, e uma penca de álibis.
Definitivamente, sou,
ele pensou, com a magnificência
de um pterossauro em pleno voo.
O saber é sua própria recompensa,
como a virtude, concluiu.
E viu que isso era bom. Depois dormiu.

Como uma falta da linguagem técnica, vou tentar escrever algo sobre minha crítica: o capitalismo estaria prestes a morrer, o que você acha? Penso que é uma etapa da história do capitalismo, a comparação entre cada feudo que as bigtechs (Apple, Meta, Microsoft, Alphabet, etc.) seriam um atributo análogo de produtores de rotinas (de controle, consumo e conteúdo), exercem um poder semelhante com o seriam senhores feudais. Acho que algo muito mais importante, pois tenho certeza de que vai ser um comunismo de quebrada e ecologicamente torta.

“A Julio Floro
Está livre teu peito do amor à glória vã? Estará também da ira e do medo da morte? Os sonhos, os terrores mágicos, as feiticeiras, os duendes noturnos, os sortilégios de Tessália: eles te fazem rir?
Horácio, Epístolas, Il, 2″


Cada vez melhor desistir disso tudo.
Ira.
Quando chegar no mar, me avisa.
Despedaço.
Favor enviar as pontas dos dentes superiores ao meu coração.
Rasgo.
O ganho é um rio muito pequeno mesmo.
Cruel.



Indústria do entretenimento
O terror de ver um filme
O tempo todo
Tenho que gritar a cada cena
Desviar e ficar abaixado
Blues do atentado a tiros
Quando me vir vindo
Se me vir correndo
Quando me vir correr
Corra também
Não tenho filhos
Porque teria que mandá-los para a
escola
O que não é seguro
qualquer
Plano de ter filhos
Blues do atentado a tiros
Quando me vir vindo
Se me vir correndo
Se for mais veloz que uma bala
Você também deve correr
Jericho Brown



Do aclamado autor de O andar do bêbado e Subliminar, uma jornada pela nova ciência das emoções
Durante muito tempo acreditamos que o pensamento racional era a influência dominante em nossos comportamentos. As emoções, por sua vez, seriam prejudiciais nas tomadas de decisão. Agora, graças ao enorme progresso das pesquisas em neurociência e psicologia, sabemos que a emoção é tão importante quanto a razão para orientar nossas escolhas e atitudes.
Mas o que é a emoção? Como nossas ideias sobre os sentimentos evoluíram? Como regular as emoções para utilizá-las a nosso favor? Estas são as grandes questões abordadas em Emocional, do brilhante físico Leonard Mlodinow, que nos orienta aqui por uma novíssima área de pesquisa: a neurociência afetiva.
De laboratórios de cientistas pioneiros a cenários do mundo real em que o domínio sobre as emoções foi decisivo para evitar uma tragédia, Mlodinow mostra o quanto essa revolução científica tem implicações significativas também na vida cotidiana, no tratamento de doenças, na compreensão das relações pessoais e em nossa percepção a respeito de nós mesmos.
LEONARD MLODINOW é doutor em física pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Foi professor no Caltech, O Instituto de Tecnologia da Califórnia, e pesquisador no Instituto Max Planck, em Munique. Entre seus livros, traduzidos em mais de trinta países, estão os best-sellers O andar do bêbado, Subliminar e Elástico, lançados pela Zahar.

Bebendo um vinho
Olhou, me deu mais beleza
e eu a tomei como minha.
Feliz, ingeri uma estrela.
Permiti que me inventasse
à semelhança do reflexo
nos seus olhos. Danço, danço
em montes de asas súbitas.
A mesa é mesa, o vinho é vinho,
numa taça que é taça,
e cinzas são cinzas no cinzeiro cinza.
Já eu sou imaginária,
incrivelmente imaginária,
imaginária até a medula.
Falo do que ele quer: das formigas
que morrem de amor sob uma
constelação de dentes-de-leão.
Juro que uma rosa branca,
regada com vinho, canta.
Rio, inclino a cabeça
com cuidado como a conferir
uma invenção. Danço, danço
na minha pele espantada,
no abraço que me concebe.
Wislawa Szymborka

A abelha
permanece indecisa
entre milhares de flores de cereja.
Abbas Kiarotami

“Você quase não me toca, ela diz, mas é claro que eu te toco, e automaticamente coloco minha mão sobre seu rosto, deslizo a ponta dos dedos na pele fina do rosto, o alto da testa, a têmpora, a lateral que termina no queixo, boca. Ela se afasta. Eu quase não a toco, o corpo de Nina. O constante envelhecer do corpo de Nina. Como um espelho. Eu que fujo dos espelhos todos os dias, apenas para fazer a barba, passar os dedos entre os cabelos, escovar os dentes, eu quase não me olho, mas vejo o corpo de Nina, eu olho e vejo o corpo e o tempo no corpo de Nina. Os seios, as coxas, as costas, e até mesmo a curva da cintura, até mesmo ali o tempo que passa escancarado, ela diz, você quase não me toca, e eu quero dizer, Nina, eu não posso tocar o tempo que passa assim tão escancarado no teu corpo, você entende?, eu quero dizer, eu não posso tocar esse tempo em teu corpo no meu, você entende?, Nina tem vontade de gritar e ir embora e nunca mais me ver, nunca mais voltar, nunca mais dormir ao meu lado, eu muito longe no outro extremo da cama, jamais um carinho, uma braço, nem mesmo a mão que se estende em busca do outro, da presença do outro. Nina tem vontade de me dizer coisas horríveis, vontade de me bater, de me afastar, mas Nina não diz nada, eu adormeço.”
Texto que me toca como um soco… O inventário das coisas ausentes, ótimo livro!


“Tais considerações nos levam a outra parte importantedo surgimento em ordem tão estranha da mente,sentimentos e consciência, uma parte que é sutil e fácilde passar despercebida. Ela se relaciona à noção de quenem partes dos sistemas nervosos nem cérebros inteirossão os únicos fabricantes e provedores de fenômenosmentais. É improvável que fenômenos neurais pudessem, sozinhos, produzir os alicerces funcionaisnecessários a tantos aspectos da mente, e certamente éverdade que eles não poderiam ter esse papel quandofalamos em sentimentos. É preciso que haja umainteração muito próxima entre os sistemas nervosos e asestruturas não nervosas dos organismos. As estruturasneurais e não neurais não são apenas contíguas, masparceiras contínuas, interativas. Não são entidadesdistantes que sinalizam umas para as outras como chipsem um telefone celular. Em palavras simples: corpos ecérebros estão na mesma sopa capacitadora.
Inúmeros problemas da filosofia e da psicologia podemcomeçar a ser investigados produtivamente assim que asrelações entre “corpo e cérebro”passarem a ser vistas sob essa nova ótica. O entranhadodualismo que começou em Atenas, teve Descartes comoavô, resistiu às investidas de Espinosa e foi avidamenteexplorado pelas ciências da computação é uma posiçãocujo tempo já passou. Precisamos agora de uma novaposição que seja biologicamente integrada.”


Incrível!!

“… nunca ficou tão claro que o outro é parte fundamental do Eu, vivendo esse Eu sozinho ou com alguém. Parece complicado mas não é: não escapamos do outro de jeito nenhum. Ele pode ser real ou imaginário, uma pessoa ou um ideal. Normalmente é tudo isso misturado. Como diria Lacan, nó borromeano, que entrelaça o real, o simbólico e o imaginário. De qualquer forma, que façamos os nós que possamos sustentar e desamarrar.”
Maria Homem

“Se os outros me respeitam, então obviamente deve haver “em mim” — ou não deve? — algo que só eu lhes posso oferecer. E obviamente existem esses outros — não existem? — que ficariam satisfeitos e gratos por isso lhes ser oferecido. Eu sou importante e o que penso e digo também é. Não sou uma cifra, facilmente substituída e descartada. Eu “faço diferença” para outros além de mim. O que digo e sou e faço tem importância — e isso não é apenas um vôo da minha fantasia. O mundo à minha volta seria mais pobre, menos interessante e promissor se eu subitamente deixasse de existir ou fosse para outro lugar.
Se é isso que nos torna objetos legítimos e adequados do amor-próprio, então a exortação a “amar o próximo como a si mesmo” (ou seja, ter a expectativa de que o próximo desejará ser amado pelas mesmas razões que estimulam nosso amor-próprio) evoca o desejo do próximo de ter reconhecida, admitida e confirmada a sua dignidade de portar um valor singular, insubstituível e não-descartável. A exortação nos leva a pressupor que o próximo de fato representa esses valores — ao menos até prova em contrário. Amar o próximo como amamos a nós mesmos significaria então respeitar a singularidade de cada um — o valor de nossas diferenças, que enriquecem o mundo que habitamos em conjunto e assim o tornam um lugar mais fascinante e agradável, aumentando a cornucópia de suas promessas.”
Zygmunt Bauman


Presciência
Se eu soubesse que o coração
quebra lentamente, se desmantela
em pedaços irreconhecíveis de
miséria,
Se eu soubesse que o coração vazaria,
babando sua seiva, com uma visibilidade
vulgar, sobre as salas de jantar enfeitadas de estranhos,
Se eu soubesse que a solidão poderia
sufocar a respiração, afrouxando
e forçando a língua contra o
o céu da boca,
Se eu soubesse que a solidão formaria
queloides, enrolando-se pelo
corpo como uma cicatriz sinistra
e bela,
Se eu soubesse, ainda teria amado
você, sua beleza impetuosa e insolente,
seu rosto exageradamente cômico
e o seu conhecimento de doces
prazeres,
Mas a distância.
Teria deixado você inteiro e completo
para o divertimento daquelas que
desejassem mais e se importassem menos.
Maya Angelou


AZEITE DE DENDÊ NO CARNAVAL
Luiz Antônio Simas
“Exu que tem duas cabeças, ele faz sua gira
com fé
Exu que tem duas cabeças, ele faz sua gira
com fé
Uma é Satanás do inferno outra é de Jesus Nazaré
Uma é Satanás do inferno a outra é de Jesus
Nazaré.”
– Ponto de Exu
AS RUAS no carnaval são exemplarmente exusíacas. Exu é aquele que vive no riscado, na brecha, na casca da lima, malandreando no sincopado, desconversando, quebrando o padrão, subvertendo no arrepiado do tempo, gingando capoeiras no fio da navalha. Exu é o menino que colheu o mel dos gafanhotos, mamou o leite das donzelas e acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje; é o subversivo que, quando está sentado, bate com a cabeça no teto e em pé não atinge sequer a altura do fogareiro. Ele é chegado aos fuzuês da rua. Adora azeite de dendê. Mas não é só isso e pode ser o oposto a isso.
Um longo poema da criação diz que, certa feita, Exu foi desafiado a escolher, entre duas cabaças, qual delas levaria em uma viagem ao mercado. Uma continha of bem, a outra continha o mal. Uma era remédio, a outra era veneno. Uma era corpo, a outra era espírito. Uma era o que se vê, a outra era o que não se enxerga. Uma era palavra, a outra era o que nunca será dito.
Exu pediu uma terceira cabaça. Abriu as três e misturou o pó das duas primeiras na terceira. Balançou bem. Desde este dia, remédio pode ser veneno e veneno pode curar, o bem pode ser o mal, a alma pode ser o corpo, o visível pode ser o invisível e o que não se vê pode ser presença. O dito pode não dizer e o silêncio pode fazer discursos vigorosos. A terceira cabaça é a do inesperado: nela mora a cultura.
Gosto do carnaval de rua e das libações comandadas por Exu. Sou adepto da subversão pela festa. Carnaval de rua é possibilidade: pode ser festa de inversão, confronto, lembrança e esquecimento. É período de diluição da identidade civil, remanso da pequena morte, reino da máscara, fuzuê do velamento necessário. Eventualmente, sai porrada.
O carnaval exusíaco é o do não
endereço, do rumo perdido, da rua esquecida, da esquina incerta. Em tempos de escancaramento das redes sociais, tem gente que quer ser encontrada no carnaval. É um tal de dizer “onde estou”, “qual é a minha fantasia”, “olhem como estou me divertindo”, “que foto bacana”. Brincar é o de menos; fundamental é que as pessoas saibam, em tempo real, que o folião está brincando. Na rua, espaço de subversão do cotidiano, a folia deveria ser o mar aberto do ébrio pirata de nau sem rumo. O carnaval, festa do “me esqueçam”, vira a festa do “me encontrem, me vejam, me curtam”. Para alguns, é a festa do “me patrocinem”. Sinal dos tempos e despotência da força exusíaca do babado. Sem dendê, a rua morre. Olho vivo, rapaziada.
Desfile de escola de samba, cada vez é mais cheio de regras, é carnaval oxalufânico. Oxalufã é o orixá que tem como positividade a paciência, o método, a ordem, a retidão e o cumprimento dos afazeres predeterminados. Tudo que contrário a isso representa a negatividade que pode prejudicar seus filhos. Diz um mito de Ifá que, quando se desviou da missão a ser executada e tomou um porre de vinho de palma, Oxalufã quase comprometeu a própria tarefa da criação do mundo. Em outra ocasião, quando também tentou agir por instinto teimosia, deixando de seguir a recomendação do oráculo e de dar oferendas para Exu, Oxalufã foi preso durante uma viagem, acusado injustamente pelo furto de um cavalo. Curtiu uma cana de sete anos. Deve evitar o azeite de dendê, que o tira do prumo.
O problema é que esse perfil oxalufânico anda excessivo entre as escolas de samba. A disciplina, a regra, O engessamento dos desfiles, o controle rígido das performances podem representar a perda da capacidade de renovação e o descolamento entre as agremiações e a cidade. Oxalufã precisou de Exu para cumprir a sua missão na criação do mundo.
Alguma dose de oxalufânico pode fazer bem ao que é exusíaco; contanto que não o domine e impeça seu movimento. Alguma dose de exusíaco pode fazer um bem enorme ao que é predominantemente oxalufânico, para que ele se movimente. Quando um princípio, todavia, prevalece no terreno do outro e desequilibra a vitalidade de determinada potência, a chance de a vaca ir para o brejo é grande. Saber a medida certa do dendê é o nosso desafio na receita momesca. Carnaval, como diria o Zé Pereira, é vida na rua.


Tempo… calma… 🧠👅🗣


REDEMOINHO
Por um momento
monumento
de pó e vento.
Cessado
o movimento,
vértice
tragado
pelo vórtice,
um lamento
no plano horizontal.
Edna Rezende

Num único ponto
O peso do verão
esmaga nessa encosta
as oliveiras.
Não há sombra
nas sombras
luz mais densa somente
e o fervilhar de insetos.
Na erva alta
uma laranja dorme já à deriva
abandonando ao chão
sumos azedos.
O jardim se submete
à mão do sol.
Só o lagarto
entrefechados olhos
se expõe à luz como se expõe a pedra
escuro e impenetrável.
Num único ponto avista-se vida
entre peito e garganta
onde sangue palpita.
Marina Colasanti



“ATÉ AGORA EU os conduzi por uma viagem evolucionária que culminou na emergência de duas habilidades humanas: linguagem e abstração. Mas outro traço da singularidade humana intrigou os filósofos durante séculos – a saber, a ligação entre a linguagem e o pensamento sequencial, ou raciocínio em passos lógicos. Podemos pensar sem verbabilização interna silenciosa? Já discutimos a linguagem, mas precisamos ser claros em relação ao que entendemos por pensar antes de tentar nos atracar com esta questão. Pensar envolve, entre outras coisas, a capacidade de se engajar com manipulação irrestrita de símbolos em nosso cérebro seguindo certas regras. Em que grau essas regras estão relacionadas às da sintaxe? O termo-chave aqui é “irrestrito”.
Para compreender isso, pense numa aranha tecendo uma teia e pergunte a si mesmo: terá a aranha conhecimento da lei de Hooke relativa à tensão de fios esticados? A aranha deve“saber” disso em certo sentido, de outro modo a teia se desintegraria. Seria mais preciso dizer que o cérebro da aranha tem um conhecimento tácito, em vez de explícito, da lei de Hooke? Embora a aranha se comporte como se conhecesse essa lei – a própria existência da teia atesta isso –, seu cérebro (sim, a aranha tem um) não tem nenhuma representação explícita dela. Ela não pode usar a lei para nenhum outro propósito a não ser tecer teias e, de fato, ela só pode tecer teias segundo uma sequência motora fixa. Isso não é verdade acerca de um engenheiro humano que utiliza conscientemente a lei de Hooke, que aprendeu e compreendeu a partir de livros de física. A utilização humana da lei é irrestrita e flexível, disponível para um número infinito de aplicações. Ao contrário da aranha, ele tem uma representação explícita de seu funcionamento em sua mente – o que chamamos de compreensão. A maior parte do conhecimento do mundo que possuímos recai entre esses dois extremos: o conhecimento irracional de uma aranha e o conhecimento abstrato do físico.
O que entendemos por “conhecimento” ou “compreensão”? E como bilhões de neurônios os alcançam? Essas coisas são completos mistérios. Reconhecidamente, os neurocientistas cognitivos ainda são muito vagos no tocante ao significado exato de palavras como“compreender”, “pensar” e, de fato, da própria palavra “significado”. Mas o trabalho da ciência é encontrar respostas passo a passo por meio de especulação e experimento. Podemos abordar alguns desses mistérios de modo experimental? Por exemplo, o que dizer sobre a relação entre linguagem e pensamento? Como poderíamos explorar experimentalmente a elusiva interface entre esses dois elementos?” (p. 153-154)






“Não consigo fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é a gratidão. Amei e fui amado, recebi muito e dei algo em troca, li, viajei, pensei, escrevi.”
Oliver Sacks


RETORNOS
Voltou. Não disse nada.
Mas estava claro que teve algum desgosto.
Deitou-se vestido.
Cobriu a cabeça com o cobertor.
Encolheu as pernas.
Tem uns quarenta anos, mas não agora.
Existe — mas só como na barriga da mãe
na escuridão protetora, debaixo de sete peles.
Amanhã fará uma palestra sobre a homeostase
na cosmonáutica metagaláctica.
Por ora dorme, todo enroscado.
Wislawa Szymborska
<!– /wp:paragraph
SAÚDE MENTAL
Segundo psicanalista Christian Dunker, discursos neoliberais de meritocracia — em que sucesso e fracasso tendem a ser individualizados — e crise dos últimos anos em que os horizontes prometidos deixaram de ser cumpridos ajudam a agravar o quadro geral do transtorno no Brasil
Por Redação RBA
Publicado 21/03/2021 – 10h34
São Paulo – A depressão é um problema sério no Brasil. De acordo com dados da OMS, a Organização Mundial da Saúde, a doença afeta 5,8% da população, um índice maior do que a média mundial de 4,4% e a maior da América Latina. Para falar sobre esse tema, o programa O Planeta Azul conversou com o psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP Christian Dunker, que acabou de lançar o livro Uma Biografia da Depressão, pela Editora Planeta.
No livro, Dunker narra como a depressão, que por muitas décadas ocupou uma posição menor entre os transtornos mentais, se tornou, a partir dos anos 1970, a grande protagonista dos discursos sobre o sofrimento psíquico.
De olho nesse fenômeno, o professor da USP resolveu esmiuçar as origens, a história e o contexto atual da depressão. Ele encontrou diversas explicações contemporâneas para o agravamento do transtorno: dos discursos neoliberais de meritocracia — em que sucesso e fracasso tendem a ser individualizados — à crise dos últimos anos em que os horizontes prometidos deixaram de ser cumpridos. Deparou-se também com questões como a ascensão do neopentecostalismo, com igrejas vendendo a ideia de prosperidade.
Ao longo do livro, Christian Dunker refaz os passos genealógicos do transtorno a partir dos conceitos da tristeza e da melancolia para mostrar que a depressão é “um nome demasiado pequeno para tantas formas, que reúne coisas que não andam juntas”. O autor faz uma viagem no tempo para mostrar que o surgimento da depressão é contemporâneo ao romantismo nas artes e que sua estabilização como quadro clínico acompanha o modernismo nas artes visuais.
Dunker concorda que as redes sociais contribuem para, ao expor imagens e histórias perfeitas, agravar a depressão. Mas reconhece também o seu papel positivo. “Não devemos demonizar as redes sociais. Porque elas estão fornecendo práticas de reconexão de contato e de narrativização de sofrimento, isso tudo está disponível”, diz ele.

https://play.google.com/store/books/details?id=8VzwDwAAQBAJ
Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico
Acervo Online | Mundo
por Rodrigo Santaella Gonçalves
17 de março de 2022
Confira resenha do livro de Edemilson Paraná, Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico (Autonomia Literária, 2020)
O livro busca captar, a partir de uma análise acurada sobre o bitcoin, aspectos fundamentais da dinâmica do capitalismo em sua forma neoliberal, no contexto de sua crise contemporânea. Se em Finança Digitalizada (2016) Edemilson Paraná analisou a relação entre o desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação e a reconfiguração do capitalismo contemporâneo, sobretudo no aspecto referente à intensificação do processo de financeirização da economia mundial, em Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico, a criptomoeda aparece como um sintoma dessa dinâmica, como um produto de sua instabilidade estrutural. Concebida com uma radicalidade utópica das ideias que fundamentam o neoliberalismo, a criptomoeda entra em choque com o neoliberalismo do establishment, aquele “realmente existente”, e, nesse cenário, traz luz às contradições estruturais dessa forma de funcionamento do capitalismo.
Com uma análise marxista do bitcoin, o autor oferece uma definição precisa da criptomoeda, que contém em si a explicação para muitos de seus limites: o bitcoin não representa a superação da política no que diz respeito à administração monetária porque, justamente pelas características que são aventadas como propulsoras dessa superação, ele não cumpre as tarefas às quais se propõe. Em vez de substituir o dinheiro mundial, tem baixo volume e alcance de circulação; em vez de produzir estabilidade monetária, é altamente instável por causa do seu papel como ativo especulativo; e, por fim, em vez de garantir uma tutela descentralizada, a concentração de poder relativa entre seus usuários só cresce.
A crítica aos limites da criptomoeda e à crença em soluções puramente técnico-científicas para os problemas do capitalismo não significa uma perspectiva tecnofóbica ou conservadora. O livro discute e deixa em aberto a possibilidade do uso de algumas das tecnologias presentes no bitcoin – especialmente o blockchain – a serviços de interesses populares e até de perspectivas revolucionárias. Se isso será possível, não sabemos: a única certeza, reforçada pelo livro, é a de que qualquer transformação social relevante passa por novos valores, novos mecanismos de decisão democrática, por outra forma de organização socioeconômica e por outra relação do Estado com a sociedade. Fora dessas perspectivas, qualquer bravata que defenda a ideia de que é possível atingir mudanças relevantes a partir de soluções “apolíticas” ou puramente tecnológicas, como o bitcoin, fracassará.
A leitura de Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico é imprescindível não só para aqueles que querem entender o funcionamento e as perspectivas relacionadas à criptomoeda, mas sobretudo para todo o público que busca compreender melhor – a partir de elementos concretos – a dinâmica do capitalismo contemporâneo.
Rodrigo Santaella Gonçalves é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: rodrigo.santaella@ifce.edu.br.



A Inconstância da Alma Selvagem / Eduardo Viveiros de Castro

A experiência de quase-morte e os desdobramentos de uma vida enclausurada no próprio corpo são os panos de fundo da história real de uma jovem de 30 anos que sobreviveu a dois acidentes vasculares cerebrais, condenando-a ao prognóstico da tetraplegia e da síndrome do encarceramento. A jovem, aparentemente saudável, fora dos possíveis fatores de risco para a ocorrência de um AVC e vivendo o auge do seu trintênio, morreu para renascer e ser jogada à prisão sem grades de si mesma. Incapaz de falar e movimentar qualquer membro do corpo, mas plenamente consciente, recolheu os cacos que sobraram da sua vida e, com a ajuda fundamental da família e dos amigos, se libertou do cárcere, rasgando o roteiro do papel dramático e inservível que os médicos lhe entregaram para construir o próprio roteiro de superação da sua tragédia particular. A vida pulsando dentro de si foi o primeiro degrau da escada mental que ela utilizou para sair do buraco de incertezas em que se viu após o coma. Você descobrirá de que forma os demais degraus foram construídos, a partir de um verdadeiro tour pelas situações mais agonizantes que uma pessoa totalmente incapaz experimentou. Esta história é dela, mas é também de todos que, de alguma forma, sobreviveram e aprenderam o que é a vida após uma tragédia particular, seja você vítima, parente, amigo, profissional da área da saúde ou apenas um curioso por histórias de sobrevivência e recomeços. Você vai explorar o desconhecido e imprevisível mundo da reabilitação física e emocional, pelo relato pessoal de quem sobreviveu e recomeçou uma nova vida. Esta é uma história que fala de fé, mas também de desânimo; que fala dos anjos e demônios que surgiram durante a sua trajetória, mas também do que eles lhe ensinaram; que fala dos dias sem cor e sem gosto, mas dos dias mais coloridos e saborosos que é possível vivenciar; que fala sobre quem acreditou ter perdido tudo, mas na verdade só encontrou o que realmente precisava para recomeçar. Ela recomeçou e você também descobrirá que pode recomeçar, seja lá o que tenha lhe feito paralisar. Está pronto?

18 de junho de 2021
O ‘Nexo’ publica trecho de livro em que o autor – com base na ciência e em experiências pessoais – argumenta a favor dos benefícios do uso recreativo de entorpecentes e explora os efeitos da criminalização desta prática
Em 10 de dezembro de 1986, James Baldwin foi o orador principal no almoço do National Press Club. Apenas 44 dias antes, entrara em vigor a Lei Antidrogas. Baldwin aproveitou a oportunidade para criticar a nova legislação, referindo-se a ela como “uma lei ruim”. Ele previu que ela exacerbaria a discriminação racial e “só seria usada contra os pobres”. Além disso, instou especificamente os políticos negros a pressionarem pela legalização das drogas em nome de seus eleitores. Dezesseis dos vinte membros do Black Caucus do Congresso votaram a favor da nova lei.
Naquela época, eu servia na Força Aérea dos Estados Unidos e estava estacionado na Royal Air Force Fairford, em Gloucestershire, Inglaterra. Fazia parte da unidade policial responsável pela segurança da base. Eu nem sempre havia sido policial, nem queria ser. Mas, em 14 de abril de 1986, nosso país bombardeou a Líbia, em retaliação a atos de terrorismo patrocinados pelos líbios contra soldados e cidadãos americanos. Os aviões KC-135 que forneciam reabastecimento aéreo para os bombardeiros saíam da nossa base, então estávamos em alerta máximo para contra-ataques.
Como parte das medidas aprimoradas de segurança básica, fui selecionado, para meu desgosto, para reforçar a polícia de segurança. Na minha nova função, patrulhava a base com um rifle M16, às vezes por dezesseis horas seguidas. Eu odiava esse trabalho. Mas fazia o que me mandavam porque havia jurado obedecer aos meus superiores, bem como apoiar e defender a Constituição contra todos os inimigos dos Estados Unidos, externos e internos. Eu não me considerava particularmente patriota. Estava apenas fazendo o que era certo, do mesmo jeito que era certo não matar outro ser humano, não mentir e não usar drogas. Era certo e simples.
As observações de Baldwin, na minha opinião, estavam erradas. Fiquei num silêncio descrente, ouvindo com atenção enquanto ele apresentava seus argumentos. Sua sugestão de que a polícia aproveitaria a oportunidade — proporcionada pelo novo estatuto — de prender seletivamente os negros era difícil de aceitar. “Se as pessoas não usarem ou venderem drogas”, pensei comigo mesmo, “elas não serão presas.” Naquela altura da minha vida, embora tivesse sido parado pela polícia mais de uma vez por nenhuma outra razão além da cor da minha pele, eu ainda era ingênuo demais para entender plenamente que certas comunidades eram superpoliciadas e submetidas a um tratamento injusto pela polícia.
Os comentários ponderados e não condenatórios de Baldwin sobre drogas e legalização eram diferentes da narrativa pública dominante. O fato de ele não condenar as drogas parecia estranho. Suas opiniões eram desconcertantes. Elas certamente não eram formadas pelos incontáveis anúncios de utilidade pública que traziam poderosas advertências antidrogas feitas por celebridades. “Fumar crack é como colocar uma arma na boca e apertar o gatilho”, dizia um desses anúncios, cuja mensagem assustadora deixou uma impressão indelével em mim. Eu temia que as recomendações de Baldwin levassem a mais drogas e caos em bairros com poucos recursos, como aquele de onde eu vinha.
As opiniões de Baldwin sobre as drogas pareciam irresponsáveis. Fiquei perplexo e decepcionado. Ele era um dos poucos pensadores que eu realmente venerava. Seus escritos tinham me ajudado a ver que os americanos brancos, enquanto grupo, não eram meus inimigos, ainda que, de vez em quando, alguns me frustrassem pra caralho. As palavras de Baldwin expressavam essa relação com nossos irmãos e irmãs brancos de forma eloquente: “Nunca consegui odiar os brancos, embora Deus saiba que muitas vezes desejei matar mais de um ou dois”.
Sei agora que Baldwin estava certo sobre as drogas, assim como estava certo sobre tantas outras questões importantes. A aplicação da Lei do Crack levou, de fato, a uma discriminação racial desenfreada em prisões, acusações e condenações. Os efeitos dessa prática repugnante continuam a reverberar até hoje. Eu levaria mais de uma década para tomar consciência dessa injustiça, apesar de vários de meus próprios amigos e parentes terem sido presos e cumprido pena por violar essas leis.
Essa percepção me fez repensar meus pontos de vista sobre as drogas e sua regulamentação. Tenho vergonha de admitir isso agora, mas houve um tempo em que acreditei sinceramente que as drogas destruíam certas comunidades negras. Isso apesar de, no mesmo período, ter comparecido a um sem-número de eventos sociais organizados por colegas brancos, geralmente em comunidades brancas, nos quais quase sempre eram servidas substâncias psicoativas — tanto legais quanto ilegais — como lubrificantes sociais. A disponibilidade de drogas era abundante. No entanto, elas não destruíram essas pessoas brancas ou suas comunidades. As pessoas a quem me refiro são algumas das mais responsáveis e respeitáveis que conheço. São cientistas, políticos, educadores, ativistas, empresários, artistas, personalidades da mídia e muito mais. Elas são seus filhos, seus irmãos, seus pais, seus avós. São você… e eu. E são usuários de drogas, embora na maior parte usuários enrustidos.
Carl Hart é professor nos departamentos de psicologia e psiquiatria na Universidade Columbia e pesquisador do Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York. Seu livro anterior “Um preço muito alto”, publicado no Brasil pela Zahar, recebeu o PEN/E.O. Wilson Literary Science Writing Award.
