“Creio firmemente na fusão desses dois estados aparentemente contraditórios, sonho e realidade, numa espécie de realidade absoluta, numa super-realidade.”
Breton
Ela vivia de rock’n’roll, era movida por rock’n’roll. Sentada em sua cama olhava para a parede coberta de imagens, pôsteres de antigos bastardos (cabeças de motor). Viajava em nuvens púrpuras, pulando de pára-quedas junto a um guitarrista alucinado. Graças a Lucy que, com seus diamantes está no céu, agora também via submarinos amarelos. Encontrava-se à quatro mil trezentos e vinte horas em boas vibrações, mas não adiantava nada, queria morrer. Pensava em várias maneiras de seguir adiante, pensou em vodca com suco de laranja e enroladinhos de presunto. Lembrou-se de Joy, rapidamente colocou The Idiot no toca-discos enquanto assistia uma gravação tosca em VHS de Werner Herzorg. Tremeu, não se pendurou, não achou local para a corda. Nem tinha corda e, ainda mais, para que imitar os outros? Acendeu um incenso. Tentou meditar, tentou se lembrar de palavras que lhe desse conforto. Só pensava numa revista em quadrinhos: Morte – o grande caminho da vida.
Sin City – Acidade dos pecados – sua visão do mundo. Desejou ser como o ‘V’ e mudar a sociedade sozinha. Viver numa anarquia. “O caos precede a anarquia”. Sua mente estava um caos. Caos de informações, de emoções, de angústias… Curtia agora um dirigível de chumbo, não havia Cura nenhuma nesse momento. Pensou em si, no que seria ela. Era boca suja como Johnny Rotten, era mulher como Janis Joplin. Como uma garota de Bauru, achava Cazuza um anjo. Se cansou da auto-análise e leu Castañeda disfarçado de Moebius. Em sua frente a bandeira vermelha de Che balançava. Ideais, lutas, dialética, veias abertas de uma América Latina, a história era um conjunto de transformações da massa, seria ela uma utópica? Não, nunca se deu bem com os ideais burgueses. Pedras rolavam em sua cabeça. Satisfação! Analisou sua descendência negra. Nunca a negou! Pantera negra quis ser um dia, não vivera na época certa, conseguira somente ser uma inimiga pública. Não era uma refugiada mas brincava de jazz ácido. Não era uma máquina de sexo, mas queria paz, união e diversão.
Estudara em uma escola de escândalo, onde às vezes se escondia com ratos em um porão. Em meio a plebe rude revoltada nas ruas, via abortos elétricos pelo chão, afinal vivia numa capital. Capital inicial, início de algo. Nunca soube o quê. Sonha com uma sociedade alternativa, com chicos, marias, gilbertos, gals, caetanos, elises, miltons, zés, joãos, tudo aos Montes. Cantando tropicálias, xotes, bossas, reggaes, tudo… Tudo girava em sua psique. Deus, diabo, sol; diabo, deus, sal. Se sentia uma pagadora de promessas e ao mesmo tempo uma bela da tarde. A fraternidade era vermelha, a igualdade era branca, a liberdade era azul e o amor era rosa, cheio de bolinhas pretas e triângulos alaranjados. Sentia muito Ódio, queria morangos, chocolates e tomates verdes fritos, para comê-los com Felini, às oito e meia, num café Bagdá. Em sua mente passou um tempo de violência e lembrou-se de novo de sua morte tão desejada. Não queria uma morte trágica como a de Bob. Não queria morte com arma como a de Peter. Não queria morte com remédios como a de Marilyn. Sentir mais dor? Sempre vivera numa paranóia constante que não lhe deixara viver, por que mais sofrer? Tudo é dor.
Hemp começava a se espalhar pelo ar. Seus olhos começaram a ficar em brasa, fumaçando fumaça. Gostaria de ser uma Lee, mas no máximo era uma Silva. Lembrou-se da rádio rock’n’roll, donzelas de aço, buracos púrpuras, sapos rosas, panteras, correntes alternadas e continuas, sepulturas, missas negras, caçadores… Pensava muito. Pensou em Cartola: “sorrir, eu pretendo levar a vida/foi chorando que eu vi a mocidade perdida”, por isso não chorou, as rosas não choram. Sincronismo do acaso… por que nem o acaso chegara a ela? Trocou de disco. Colocou John Lee Hocker e começou a pensar de forma blues, melancolicamente, de certa forma, pensou soul a la Aretha.
Mortes, doenças, fome, misérias, guerras, políticos, pobreza, desigualdade, ricos, pessoas bonitas, corrupção, hipocrisia, dinheiro, arrogância, tortura, polícia, bandidos, prostituição, mídia, trabalho escravo, marketing, quebra de países, queda de bolsas, fusões empresariais, capitais especulativos, capitalismo selvagem e selvático, desonestidade, ira, ganância, cobiça, gula, volúpia, não pronunciarás o nome de Deus em vão, não matarás… ela come carne! Não entendia mais nada. GLOBALIZAÇÃO!!! Esta era a palavra da moda. Buda os ilumine. Papai, mamãe, titia, cachorro, gato e galinha. Família, algo sem lógica. Vida, algo sem lógica. Morte futuro de todos. Ela suava frio e quente ao mesmo tempo. Suava morno.
Viu que era uma música ao longe, um capitão da areia. Dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois… quinze! Quinze? Lógico, sentia fome agora. Alma rebelde e profeta. Pensou ser Desdêmona, mas só conseguia ser Messalina. Gostava de ambos os sexos, não fazia distinção, o que lhe atraia não era o físico e sim o tudo. Como seria sua lápide mortuária? “FOI POETIZA – SONHOU – E AMOU A VIDA” como Azevedo. Arte pela arte? Aquilo que pretendia fazer seria sua mais bela obra. Entraria para a história. Não queria se matar, queria morrer. Sentiu que a chamavam. Era Jim. Atravessou as portas da percepção. “This is the end, my only friend, the end”. Deitou-se em sua cama, olhou pela última vez em seu caleidoscópio, bebeu o último gole de vinho, perdoou sua vida Judas, fechou os olhos e simplesmente parou de viver.