CONFISSÕES À SURDINA

Era uma noite medíocre aquela. Noite dessas que não possuem cara de noite, como se fosse meio-dia de um feriado caído numa segunda-feira, mas em pleno constatar das oito horas da noite. O telefone havia tocado, era para mim:

– OK, mas eu não posso ir, também é aniversário de minha irmã hoje, tenho que abraçar a bichinha, ela ta precisando…

Ao outro lado da linha a pessoa parecia meio forçada a me convidar para aquela festinha, era uma amiga de minha ex-namorada que me perguntava se eu não queria ir à festinha que estava acontecendo lá na casa dela. Despistei, joguei essa conversa da minha irmã e disse que depois ligava para ela desejando-lhe feliz aniversário. Depois liguei:

– Parabéns mulher! Tudo de bom nessa vida pra você, muita luz… Eu vou indo e você? Que bom… pois é… sério? Nossa, que bom… ainda bem né? Pois é moça, to morrendo de sono, depois a gente se fala mais, to precisando dormir… você sabe né, a vida é dura… amanhã a lida continua. Então um beijo. Tchau.

Missão cumprida. Não que aquilo fosse uma árdua tarefa ou então desprovida de prazer. Gosto dela, gosto muito, aliás. Não um amor de amante, mas um amor suave no fundo do coração, desses saudosismos que queremos que fiquem lá no passado mesmo, onde foram perfeitos e onde existem realmente, para pensarmos que a vida deve ser ainda boa. Um séqüito esperançante.

Peguei novamente o telefone, aproveitei e liguei o som. Uma Fátima Guedes só pra relaxar. Liguei para minha atual namorada:

– Ela saiu? Ah… ta bom. Não, não… É… Pois então obrigado. Boa noite pra você também. Tchau.

Por que será que as namoradas sempre estão na casa de uma “amiga” quando mais precisamos delas? Uma noite pouca como aquela e eu só. Reparem bem que as aspas no ‘amiga’ não se referem a nenhuma cornitude plena e já conhecida, mas sim a um ímpeto machadiano de querer sempre ser Dom Casmurro – mas afinal, Capitu pulou ou não pulou o muro? –, digo isso por que sempre há essa dúvida errante que nos envolve aos lençóis e às cobertas, nessas noites poucas e claras.

Passei o olho no meu caderno de anotações, pensei: “acho que um anti-marxismo não pega bem agora, deixa os academismos para mais tarde”. Cantarolei um pedaço da música: “mais dóceis e livres como eu…”. Senti essa tal de liberdade querendo ser sentida, levantei-me da cadeira e decidi, se Manoel Bandeira deixar, eu saio de casa agora:

“Amor?… – chama, e, depois, fumaça:

O fumo vem, a chama passa…”.

Tomei banho, me troquei e saí, Chico no som do carro e nenhum rumo a se seguir. Parei no DI. O DI era uma praça, que em outras épocas havia sido um grande point da boêmia pós-moderna das satélites de Brasília, hoje era um local decadente pela presença desenfreada desses neo-metal skatistas – um mix de movimento hip-hop de playboy, homossexualismo desabrochando, resquícios de postura punk, maconheirismo puro e simples e outras tantas referências, como manda o figurino de um movimento pós-moderno –, o quadro de degredo da praça se completava com a presença massiva de maloqueiros-passadores-aviões a trabalhar e de playboys taguatinguenses freqüentadores dos bares que se instalaram na região.

Saí do carro e sentei num bar que, segundo minha memória, havia sido um local de cachaçadas memoráveis e de poesia flutuante no ar, além de rolar uma boa música – boa no repertório, uma vez que o cantor era uma desgraça, se não falha minha memória. Sentei e pedi uma vodka com duas pedras de gelo e duas fatias de limão, comecei a degustá-la e a observar o ambiente. Como um bom geógrafo olhei primeiro o lugar: vi que o espaço havia se alterado bastante desde a última vez , as cores, as luzes, o banheiro… era definitivamente outro lugar, já não era mais o mesmo. Observei o cartaz de uma festa rave que ia ocorrer logo, abaixo, um folder da inauguração de um lound, pensei: “é… este lugar não é o mesmo”.

Como um antropólogo-filósofo esmiucei as essências humanas ali contidas: muitas figurinhas carimbadas no meio alternativo mais hard, alguns homos à procura de um flerte, algumas ex-skatistas recordando suas proezas passadas, também à procura de um flerte, uns metaleiros errepegistas à procura de flerte, dois casais saudosistas em crise – deveriam querer estar em estado de flerte – e eu.

Como um ecólogo iniciei um longo trabalho de averiguar as relações que ali se estabeleciam: um olha uma, uma olha o ar, outra olha um e um a olhar um outro: verdadeiro balaio de gato pós-moderno. Um levanta e vai ao bar reclamar, um volta e olha uma ao passar. Uma levanta e vai ao toalete se arrumar, uma vai também para fofocar. Um se julga super-homem (quase nietzschiano) em voz alta para se sobrepor ao som e fazer com que um outro se ligasse. Um outro me olha e eu desvio o olhar para minha vodka – não queria escutar aluguel de ninguém àquela noite.

As horas voam e as vodkas vêm – ou vêem, dependendo do ponto de vista –, as pessoas iam se acabando, esvaindo-se sem eu constatar: o bar já ia fechar. Olhei ao lado havia uma moça quase caindo da cadeira e a dona do bar cutucando-a com a conta. Chamei a dona:

– Isso cobre a minha conta e a dela?

– Cobre sim senhor.

– Então acerta tudo…

Levantei fui até a moça e a cutuquei, em resposta ela grunhiu um pouco. Cutuquei mais. Ela nem se mexeu. A dona do bar chega então com o troco e me pede para ajudar a retirar minha “amiga”, pois precisava fechar o bar. Abracei a moça e a levei para um banco da praça. Vi que a única coisa a se fazer era enfiar o dedo em sua goela e fazê-la vomitar, foi o que fiz. Nunca havia visto tanto vômito em minha vida, parecia uma cachoeira, a coitadinha a cada golfada ficava mais amarela e logo vi que não era só cachaça o que ela havia consumido (ali devia ter uns dois caldos de mocotó e mais um de feijão pelo menos).

Esperei um pouco, sentei ao seu lado e a fiquei observando. Ela era até bonita. De repente ela caiu no meu ombro e continuou dormindo. Comecei a ficar com sono, até que pesquei um pouco.

Acordei com ela em meu colo. Ela não era muito bonita. Era muito branca, a melhor coisa que possuía eram suas formas meio arredondadas. Os cabelos eram muito bonitos, negros, bem escorridos e muito grandes. Ela se vestia toda de negro e tinha uma maquiagem borrada – também negra – nos olhos, além de resquícios de um batom – também negro – em seus lábios. Era um contraste muito grande a alvura de sua pele e o negrume de suas indumentárias.

Passei os dedos em seus cabelos e comecei a afaga-los. Ela se mexia um pouco. O dia estava amanhecendo e o movimento da praça já havia se findado. Pombos começavam a fartar-se das sobras dos pães de cachorro-quente dispostos no chão. Olhei a garota mais um pouco, comecei a acha-la bonita.

Ela começou a se mexer muito, parecia que sonhava com algo muito agitado, de repente ela caiu no chão. Assustei-me e vi que ela havia acordado, vi que estava completamente zonza. Olhou pra mim e disse:

– Puta que pariu! Que dor de cabeça do caralho!

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