“Não se revoltarão enquanto não se tornarem conscientes e não se tornarão conscientes enquanto não se rebelarem.”
George Orwell
Ribamar andava apreensivo, angustiado, perdido. Fumava três carteiras de Calvert ao dia. Por vezes tinha visões de vultos através de sua percepção lateral, não se virava para ver se eram de verdade, tinha medo de que as imagens dissipassem-se ao ar. Ele precisava acreditar que estava mentalmente perturbado, era o único consolo para sua mente. Suava frio, pensava que sua esposa deveria crer que ele estava enlouquecendo. Estava. Lembrou-se das frases do pastor: “O Diabo não quer ver ninguém bem, entrega tua alma ao nosso senhor Jesus Cristo e tudo irá se resolver. Quer seja um problema material, quer seja espiritual. Sangue de Jesus tem poder!” Maldizia as frases em sua mente, pensava que nada tinha mais uma explicação plausível.
Levantou-se da cama procurando minimizar os barulhos, Elizabete fingia não ver que seu esposo levantava. Ribamar fingia não perceber que sua esposa sabia que ele não agia racionalmente. Ribamar foi até o quarto das crianças. Olhou o Juninho, o Alceu, o Pedrinho, a Marinã e a Paloma. Pareciam dormir tranqüilos, imaginava que deveriam dormir angustiados sem saber se amanhã haveria comida antes da escola. Na escola as roupinhas remendadas e puídas, deveria causar-lhes vergonha. Vergonha do próprio pai. Vergonha de seu progenitor, vergonha dos cinqüenta por cento de Ribamar que se incrustavam em seus genes e em suas vidas. Ribamar amou-os e os odiou ao mesmo tempo.
Voltou ao seu quarto, viu quando Elizabete sua esposa, desligou rapidamente a luz do abajur. Olhou para ela, sorriu. Tirou sua roupa e deitou-se ao seu lado. Maquinalmente, como sempre fizera, penetrou-lhe o sexo. Igual a todos, fez um sexo frio, porcamente feito, um sexo medíocre, banal, mecânico. Daqueles que geram filhos que sentem vergonha de seus pais. Acendeu um Calvert e fumou pelado olhando pela janela da sala do barraco as outras casinhas de lona e de madeirite da invasão. Pensou em seu último emprego, foi nas frentes de trabalho, varria pistas movimentadas. Lembrou-se do quão miserável foram aqueles dias. Aquele trabalho acabava com a dignidade de qualquer um e piorava quando os outros respeitáveis cidadãos e cidadãs não lhe outorgavam o devido respeito. Chorou ao lembrar que agora não tinha mais nada, nem ao menos a labuta indigna que exerceu outrora.
Pensou muito nas últimas horas, pensou, pensou e pensou. Não chegou a conclusão alguma. O sol amanhecia bem devagar lá no leste, de onde viera para esta terra maldita, que só lhe proporcionava desgosto. Indignou-se. Abriu a porta e saiu à rua. Estava pelado, nem se deu conta disso. Olhou para si e riu, um riso que veio do fundo de sua alma e que demonstrava que ele não se importava com mais nada. Algumas irmãs da igreja que em outros tempos ele freqüentou, estavam na rua, vinham de uma vigília da corrente de libertação das almas. Viram Ribamar e assustaram-se, correram para dentro da igreja. Ribamar passou pela frente da igreja, parou, olhou-as e riu.
Continuou seu caminho, não sabia para onde. Andou muito tempo pelo cerrado, cruzou a linha do trem e continuou andando. Chegou no Eixo Monumental, entrou naquela avenida larga que mais parecia um aeroporto e continuou andando em meio a alguns carros, que não tinham viajado no feriadão. Todos buzinavam, gritavam, xingavam, riam, tentavam atropelá-lo. E ele imerso num nada gigantesco, simplesmente não lhes dava tino. Andava nirvanicamente, prostrado em nada. Chegava perto de Brasília, seguia firme em sua caminhada. Até o momento nenhum policial tinha vindo tomar satisfação e prender-lhe por atentado ao pudor. Continuava andando.
Nas proximidades da Torre ouviu-se uma sirene, Ribamar nem notou. Prosseguiu seu caminho rumo ao Nada. O camburão parou de frente a Ribamar. Saltaram três PM’s com risos em suas faces e ódios em suas vozes:
– E aí peladão? – indagou um PM que aparentava ser o chefe dos outros, tinha um ar de cafetão e fedia a metros de distância – Fugiu do hospício? Olha malucão, vamo facilitá as coisa que a gente não vai precisá usá a força. Levanta as mão e fica quietinho.
Ribamar não parecia escutar nada, estava prostrado de frente aos PM’s com uma enorme cara de nada. Alguns turistas da Torre desceram para ver o que acontecia. Rodearam a cena. Ribamar fitou-os calmamente. Outro PM interveio:
– Vamo mantê distância, porque o peladão é perigoso. Deu uma risadinha, todos ao redor também riram. Ribamar avançou um passo. Os PM’s assustaram-se e engatilharam as armas. Ribamar deu mais um passo. O PM que estava de frente a Ribamar estava nervoso, mirou na cabeça de Ribamar e bradou:
– Fica quietinho seu doido varrido, se não eu vô ter que usar de força bruta.
O PM suava, a situação ficava tensa. Ribamar deu mais um passo, virou-se para um turista, pegou seu pinto e balançou. Os PM’s irritaram-se e avançaram sobre Ribamar, este esquivou-se com uma agilidade que nunca tivera e parou ao lado de uma turista. Segurou-a pelo braço. Um PM falou:
– Olha aqui peladão, a situação tava fácil, mais agora tu complicô. Solta a moça!
Ribamar riu bem alto, um riso que veio de suas entranhas. Um riso com cara de molecagem. Ele soltou o braço da moça. Num estalo, recobrou a consciência. Come se fosse Adão ao comer a maçã oferecida por Eva, viu-se nu e envergonhou-se. Finalmente escutou os PM’s:
– Mãos pra trás e fica quietinho que num vai te acontecê nada!
Ribamar não se lembrava como tinha chegado ali, estava confuso tentando coordenar suas idéias, colocou as mãos para trás. Alguns turistas tiravam fotos. O flesh de uma máquina o cegou momentaneamente, ele ficou meio zonzo, tirou suas mãos das costas e neste fatídico momento, Ribamar solta um peido estrondoso, daqueles que seu pai solta depois de uma bela feijoada. Nesse instante um dos PM’s, num movimento de impulso dispara a arma e a bala acerta em cheio o meio da testa da turista que Ribamar havia segurado o braço. A turista cai sem dar um grito sequer, o sangue escorre pelo asfalto, o cheiro de pólvora espalha pelo ar, o clima de dúvida contagia a todos, Ribamar cai de quatro no chão, o PM que atirou grita aos quatro ventos:
– FILHO DA PUTA! E cai ao chão chorando.
Ribamar ainda não compreendia nada. De quatro e nu no chão, uma multidão ao seu redor, um cadáver atrás, um PM chorando em sua frente e uma dor fina em seu intestino. O silêncio toma conta da cena. Todos olham atônitos para Ribamar. Um silêncio mortuário que se ouvia a quilômetros. Ribamar via o ódio nos olhos de todos. O silêncio penetra Ribamar e de repente como se fosse um lapso no espaço e no tempo, Ribamar solta outro peido estrondoso e aflito, um peido saído do fundo de sua alma, um peido que era a resposta de sua alma ao que ela achava do mundo, um peido barulhento e fétido, que se fez ouvir a quilômetros de distância.
Ao escutar tal estrondosa flatulência de Ribamar, o PM que atirara enfurece-se como nunca havia se enfurecido na vida. Num impulso maior do que tudo ele levanta e descarrega o resto das balas sobre o corpo esquálido e nu de Ribamar. O PM vai até o corpo ensangüentado e nu e começa a lhe chutar todas as partes. Ninguém faz nada. Ninguém compreende nada.
E assim acaba esta história. No final das contas, não serve para nada e não demonstra a profundidade do ser. Termina assim, Ribamar nu, morto com sete balas em seu corpo, o sangue escorrendo pelo asfalto. Uma moça a poucos metros de distância, também morta, com uma bala em sua testa, o sangue escorrendo pelo asfalto. Enfim, vidas que eu criei e tirei de repente. Ribamar deixa sua família ao Deus dará, sem nenhuma fonte de renda e a turista, deixa seu curso de medicina em São Paulo sem conclusão, um namorado e uma família a chorar sua perda, que na verdade será apenas algum gasto a menos.
Quanto ao PM, ele vive sua vida com outros tantos que prendeu. Hoje fica nu e de quatro todos os dias em uma sela ínfima com mais trinta e cinco detentos. Peida muito. Os outros turistas e PM’s e aqueles que assistiram as reconstituições pela TV, vivem suas vidas medíocres e de quando em vez relembram o assunto que espirou o prazo de interesse em cinco dias. Peidam muito. Vivem suas vidas medíocres à espera de suas mortes, que fatalmente virão. E, por fim, todos irão encontrar Ribamar e a turista, mais cedo ou mais tarde. Pois a profundidade do ser acaba (ou inicia?) quando o poço da vida chega ao seu fundo e este fundo pode ser o limiar de uma morte estúpida.