A coisa não estava nem tensa nem difícil, nem amena nem tranquila, nem
nada nem além, mas ele queria saber algo um tanto sobre o que acontecia em sua vida.
Foi Júlia foi quem avisou, Marcelius é muito bom passa lá que ele fala tudo. Foi.
Chegou lá com a cara blasé de sempre aquele olhar de peixe caído observando a
quantidade infinita de enfeites que adornavam a casa de Marcelius, centrou a mirada
numa carranca enorme posta do lado do batente esquerdo da porta, lado oposto ao
vaso com a espadadesãojorge. Marcelius atravessou uma porta que dava para um
quartinho cheio de velas. Ele teve tempo de ver umas cabeças de bonecos dentro do
quartinho antes que a cortina de miçangas se fechasse num balanço sincopado. As
cabeças pareciam de cera se derretendo. Marcelius sentouse à mesa, era um sujeito
corpulento, com um sem fim de tatuagens minúsculas naquele tom cinza aquoso de
cadeia em cima dos braços, uma camisa de seda vinho aberta até o umbigo, uma
barbicha de bicheiro e um sem número de colares, pulseiras e enéis, todos muito
prateados, muito dourados, muitos. Marcelius esfregou uma colônia de cheiro
extremamente doce nas mãos, na cabeça, no rosto e no peitos e ainda jogou um
punhado para trás. E então meu filho qual é a contenda, perguntou Marcelius, é amor,
trabalho, inimigo, saúde, qualquer coisa a gente trabalha. É tudo disse ele. Quero
saber tudo. Mas tudo é tanto meu rapaz. Sei que é. É que tem essa coisa que rodeia
que eu não sei bem o que é como é e pra onde vai. Menino tu tá mesmo é perdido,
vamos abrir essas cartas, acho que depois uma obrigação pra Omulu pode resolver ou
quem sabe um pedido pra Oxalá abrir os caminhos e te colocar nos eixos.
Em cima de um pano de seda vermelho que tinha um cheiro misturado de
perfumes vários, Marcelius começou a embaralhar as cartas. Quer colocar o nome de
alguém? O meu. Só o seu? Só. Menino egoísta esse, tudo bem, qual o seu nome? Paulo.
Pensa bem no que te aflige e corta o maço em três partes. Qual monte? O esquerdo. A
Casa de Deus, eita. Na sequência veio o Diabo, a Morte e o Louco. No meio Marcelius
colocou a Lua. Num tá muito bom não, viu? O que? Tudo. Sabia! Espera um pouco,
pensa assim: os desígnios de Deus são muito grandes e te colocaram nessa situação
incontrolável, você não é responsável por tudo estar assim, mas o problema foram
essas tentações do mundo mundano, os pecados, as vontades – sexo demais, heim meu
filho? – todas essas coisas que passam, acabam, findam e só dão retorno muito tempo
depois – quando for pra debaixo da terra e virar verme, não é menino? E você sempre
se perde com sexo garoto! Meu pai, como você se perde, menino fuder é bom, mas não é
tudo! Marcelius falava e fumava um Dunhill atrás do outro, ainda molhava o bico de
quando em quando com uma vinho tinto Canção, ria muito de algumas coisas que
pensava internamente e, trejeitoso, deixava as pernas relaxaramse por debaixo da
mesa até, surpresa, tocarem as de Paulo.
Tantos caminhos, né? Tantas coisas, tudo meio aleatório – mas pro projeto do
Maioral tudo tem um encaixe, mesmo parecendo tão louco. E o desfecho, ah o desfecho,
você vai se iludir de novo. Cair nas graças do que parece ser mas não é mais uma vez,
talvez, você sempre vá buscar isso: a insensatez da ilusão. É só isso, então? É meu
garoto, eu se fosse você fazia uma oferenda pra Oxalá, pra ver se ele te guia pra
alguma coisa mais certa, menos tortuosa. E como faço isso? Ah meu filho, anota aí:
canjica branca, mel, rosas brancas e um alguidá número três de louça, me traz napróxima sexta e anota os pedidos que você quer que aconteçam. Ok, quanto devo?
Setenta pelas cartas, a oferenda vai ser mais 200. Tudo isso? Sem sacrifício não se tem
pedido atendido meu garoto.
Ele colocou os setenta num pires que estava em cima da mesa como indicara
Marcelius. Pensou que aquele ato era meio psicanalítico, não pegar no dinheiro e fazer
com que ele pensasse naquilo tudo. Quer mais uma carta de conselho meu filho? Pode
ser. A Roda da Fortuna garoto, só se lembre de uma coisa: nem tudo que reluz é ouro…
Saiu de lá com aquele tanto de coisas na cabeça: a ilusão, os pecados, as
vontades, volições, carne. Na parada de ônibus a moça com o shorts torante fazia ele
pensar mil bocados e imaginar como seria uma punheta vindoura. Tentou guardar
bem a imagem do top e dos shorts, torantes, para se lembrar mais tarde. É melhor que
fique tudo na cabeça, não é mesmo? Pensou de si para si. Depois do gozo, o
arrependimento, mas pelo menos taí, uma imagem na cabeça. Num rompante,
lembrouse de que não tinha esse apelo todo em si ao sexo, mas, como o dito das cartas
não se contradiz, só se incorpora, saiu feito assim mesmo, coisa sexual plena.
Entrou no ônibus e ficou pensando naquilo tudo que vivia, que não era nem
tenso nem difícil, nem ameno nem tranquilo, nem nada nem além. Olhou pro horizonte
e viu aquelas nuvens que pairavam com sinais plenos de que iriam despencar borrando
de cinza a linha do céu. Deus deve estar aí, deleitandose com seu big brother
particular. Será que os satanistas tem razão? Talvez Lúcifer tenha tido mesmo ideias
interessantes acerca da mente perversa de Deus e tenha tido apenas a inclinação de
querer iluminar as pobres criaturas humanas para o horrível teatro que havia sido
milagrosamente criado apenas para a satisfação de um nome: Deus. Se há alguém
demasiadamente humano, esse alguém é Deus, nossa imagem e semelhança. Cessou
os pensamentos um pouco, ficou torcendo para lembrar de tudo isso que pensara e
procurar alguma coisa sobre tudo isso na internet. Fechou os olhos um tanto e fixou o
olhar no horizonte da memória que se abaulava em dois montes, todos torantes.
Logo que chegou em casa Júlia ligou. E aí? E aí moça, de buenas? Tranquila, to
te interrompendo? Não, minha punheta eu bato depois. Ai seu escroto, que merda…
Merda não, o orifício é outro, bem menor, inclusive. Tá bom mestre da escatologia, só
me diz uma coisa, foi lá no Marcelius? Fui. Ah, e aí, me conta… Ah, sei lá, nada de
mais ou de menos, só aquela coisa toda mezzo teoria psicanalítica, mezzo autoajuda a
la Ana Maria Braga, mezzo macumbeiro. Porra, ele não falou nada legal? Porra, se
dizer que minha vida é uma grande ilusão é uma coisa legal, então, Buda já havia me
cantado essa pedra tempos antes. Mas ele só falou isso? Só. Disse que eu gosto muito
de sexo também. Não falei que ele acerta. É, mas a pergunta é, QUEM não gosta de
sexo realmente? Sei, sei… Mas ele não te falou mais nada? Ah, disse que eu tinha que
fazer uma oferenda pra Oxalá. Legal, talvez seja bom mesmo, tu tá muito esquisito. É,
legal só se for pra ele e pra Oxalá, porque eu vou ter que desembolsar 200 mangos com
a brincadeira, sem contar o mel, as flores e coisa e tal. Num é brincadeira cara, num
zoa com os orixás assim… De fato, foi mal, mas, enfim… Não sei se quero fazer isso,
não botei muita fé nesse cara com essa parada de vudus. Orixás! Voduns são outra
coisa…. Tá, tudo bem, enfim, não botei fé e, além do que, tudo o que ele me disse eu já
sabia, não me acrescentou muito. Ai meu, procura então outra pessoa, tem a Bela daborra de café… Ih, essa daí eu já fui algumas vezes, estou até agora esperando a tal da
fortuna que ela viu claramente num pinguinho de borra que ela insistia em chamar de
moeda. É, ela é meio foda mesmo, tem dia que é joia, mas tem dia que não tem clima.
Fora os cinquenta mangos que se gasta… É, ah, olha só cara, tem o Pai Niquinho de
Xangô, o sujeito é fera, já fui lá algumas vezes e foi muito bom. Hum, sei… Lembra
daquela vez que eu estava bem mal por causa do Marcos? Qual vez? A milésima
segunda ou a milhonésima quarta? Ai meu, para! Aquela vez que eu tentei fazer
aquela coisa…. Sim, aquela que você bebeu QBoa? Porra, essa mesma… Lembro,
lembro bem… Pois é, quem me tirou da parada braba foi ele. Bom, talvez eu possa até
ir mesmo, ele joga o que? Búzios. Hum, talvez seja a hora de me encontrar com as
minhas origens africanas. Isso, vai que você até tem que raspar a cabeça! Júlia… O
que? Eu já tenho a cabeça raspada. Não é isso, pô, tu me entendeu… Anota o telefone
aí.
Dois dias depois lá estava ele pegando o segundo ônibus para chegar ao
terreiro de Pai Niquinho. Pelo menos a coisa é no mato, não é esse cabaré pósmoderno
religioso da urbália enfurecida, pensou ele. Acho que estou começando a me sentir
tonto, será que eu vou receber algum espírito? Será que espíritos baixam em terreiros?
Será que orixás são espíritos? Porra, porque que eu não fiz aquelas aulas de história
afrobrasileira na graduação, agora não seria esse ser tão sem sapiência sobre esse
afrouniverso. Mas se bem que, universidade não é o lugar de se aprender essas coisas,
a tradição deve morar na tradição, ou seja, lá no terreiro. Mas e se a tradição, uma vez
que inventada, for reinventada dentro da universidade? E lá se configurarem os novos
terreiros do século XXI, afinal, temos até igreja drivetru, por que não um terreiro
acadêmico? Logo no meio desse devaneio ele reparou que havia passado da parada em
que deveria descer. Apressouse, deu o sinal e desceu. Retornou o caminho calmamente
fumando um cigarro e pensando nas merdas que havia conjecturado.
Quando chegou de frente a um muro baixo e longo todo pintado de vermelho
com um portão verde pensou que havia acertado o endereço conforme a explicação
dada pelo próprio Pai Niquinho ao telefone. O portão não estava fechado com corrente,
só passado o ferrolho. Bateu palma e ouviu uns passos se aproximando. Uma senhora
veio ver quem era. Olá. Olá meu filho, o que deseja? Vim falar com Pai Niquinho.
Hum, tá certo, ele não chegou ainda mas venha entrando, venha.
Assim que entrou no terreiro teve de súbito uma tontura, a senhora reparou.
Tudo bem? Só uma tontura, tive ainda agora no ônibus também. Ah sim, é esse tempo,
tá muito quente, quer um copo d’água? Sim, eu aceito. Então venha, venha. Tenho de
terminar de varrer essa casa. A água gostosa como poucas águas conseguem, tinha
aquela temperatura exata de uma água na sombra desde de manhã cedinho e aquele
gosto bom de barro de moringa. Senta aí meu filho, logo Pai Niquinho chega.
Não tardou muito, Pai Niquinho chegou. Era um sujeito branco de tez serena,
vestiase com uma bata bonita de pano da costa de tons verdes bem fortes, dois colares
de contas, um branco e vermelho e outro amarelo, calças brancas e uma precatas de
couro bem adornadas. Olá. Olá. É você que veio ver os búzios? Sim. Seu nome é…
Paulo. Paulo, isso mesmo. Foi Julinha quem te passou o telefone, não? Foi sim. E como
ela está, tudo bem? Creio que sim, ela é meio daquele jeito. Sim, é mesmo, falta firmara cabeça um pouco, tá meio perdida, mas é um amor de pessoa, pense numa Oxum
doce. De fato é doce mesmo. Mas bem, espere um pouco que eu vou arrumar as coisas,
fique à vontade. E saiu para outro cômodo da casa. Enquanto isso ele resolveu dar uma
olhada no ambiente de fora, o terreno era grande com muitas plantas ao redor:
goiabeira, mangueira, jaqueira, coqueiro, um sem fim que ele não sabia o que era,
além de umas tantas plantinhas enfiadas umas ao lado das outras. Depois de uns
quinze minutos contemplando o lugar, Pai Niquinho voltou, chamouo pra dentro e
começou os trabalhos.
Perguntou coisas aleatórias, nome completo, data de nascimento, se já tinha
jogado alguma vez, se estava nervoso, se estava com as pernas cruzadas, se tinha
alguma coisa específica que queria saber. Tudo. Mas como assim, tudo, meu filho?
Tudo é tanta coisa…. É, sei disso, mas é sobre isso que eu queria saber, tudo. Hum,
então tá, dentro de tudo o que me aparecer aqui nos búzios, eu abro TUDO o que
estiver. E começou a juntar e espalhar búzios variados em cima do que parecia uma
peneirinha toda coberta de pano. Fazia umas caras estranhas, tirava concha, botava
concha, tirava tudo, jogava de novo, sem dizer palavra alguma. No décimo minuto
mudo, Pai Niquinho, suando um pouco, olhou nos olhos de Paulo e perguntou: você
está vivo? Num susto Paulo falou sim, até onde eu saiba, estou bem vivo. Estranho,
muito estranho, tem algo muito errado aqui, ou certo, vai saber. Como o que? Bem, não
tem nada aqui. Nada? Nada. Não tem nem quem é meu orixá e essas coisas? Ninguém
é dono da sua cabeça, ninguém quer a sua cabeça. Como assim? Olha meu filho, nunca
tinha visto isso na vida, mas é isso. E isso é grave? Não sei, nunca tinha visto isso. E o
que eu devo fazer agora? Vejo só meu bem, isso pode ser uma coisa muito, mas muito
ruim, você pode ser alguém que nenhum orixá quer ou você pode ser alguém a quem os
orixás concederam a liberdade plena, compreende? Hum… Eu te diria uma coisa meu
filho, viva sua vida em paz, vá em outra casa, procure com outro zelador pra ver se não
é algo que aconteceu comigo hoje, de não ver NADA aqui. É, e olha que eu vim aqui pra
saber TUDO. Pois é meu filho, estranho isso, preciso, inclusive pesquisar mais sobre
isso. E quanto custa a consulta? Faz assim meu filho, precisa pagar não, viu? Vai em
paz. E ele foi.
Saiu de lá com uma coisa estranha no peito, era uma coisa que não estava nem
tensa nem difícil, nem amena nem tranquila, nem nada nem além, era uma coisa. Era
ele. Saiu meditando sobre aquilo tudo, primeiro seria a ilusão infinita segundo as
cartas de Marcelius, agora o vazio pleno, ninguém quer minha cabeça? Qual o
problema dela? Sempre achei que tinha uma cabeça muito feia mesmo. Mas, e se
alguém a quisesse, o que isso significaria? Provavelmente nada, e também, tudo.
Ele caminhou um tanto, parecia desgovernado, mas sabia que chegaria à
parada de ônibus. Quando lá chegou, resolveu caminhar mais um pouco até a outra
parada, caminhou na verdade umas cinco paradas, na última começou a chover e, ao
invés de se proteger da chuva, resolveu continuar caminhando. O caminhar me é,
pensava ele, pé ante pé, o caminhar me é, o caminhar me é. A chuva desabava forte,
torrencial, Oyá lançava raios fervorosos em meio ao gelado da chuva que compensava
todo o calor já tido, Tupã estrondava o mundo. Tudo cinza, nebuloso, cabuloso. Mas ele
caminhava tranquilo, em paz, só. Olhou para cima, olhou o descampado de ao redor da
pista, olhou pro acostamento enlameado abaixo de seus pés, respirou fundo e tremeu.Sentiu todo o peso da solidão, permear seus poros, se encrustar em suas células, se
assentar entre seus átomos. Eles em si já são menos cheios que vazios. Qual átomo, eu.
E ninguém na minha cabeça.
A chuva foi passando, ele todo enlameado, todo encharcado, só, caminhando.
Sabia que iria voltar a pé para casa, sabia que eram mais de quarenta quilômetros de
distância, mas a certeza da solidão e o sem limite da liberdade, lhe davam a sensação
de que ele devia ir. Só. Para algum lugar, qualquer. Provável que sua casa, certo que
por lá. Mas o que importava não era o final, onde chegar. O que importava era o
trajeto, o processo. Pé ante pé, o caminhar me é. O horizonte se mostrava tímido, por
baixo das nuvens que se dissipavam. A liberdade se introjetava plena. Ele não sabia
tudo, tampouco nada. Ele ia. Afinal, a coisa não estava nem tensa nem difícil, nem
amena nem tranquila, nem nada nem além. A coisa estava. Só.