Itinerário de uma paixão

A moça estava naquele banco de madeira pequeno, ao lado das crianças debruçadas sobre a rede que as pipoqueava para lá e para cá. Ela olhava lentamente meninos e meninas que ainda eram portadores de uma ingenuidade genuína correndo saborosamente pelo pátio do casarão. Fitei-a por longo tempo, enquanto o sol derretia tudo o que conseguisse pousar. Ela fitava tudo sem se deter facilmente, olhava sem olhar, nem se atinava com o meu atinar. Parecia longe, alhures dali, mas ainda assim, completamente imersa ali.

Era uma moça um tanto morena, calmamente morena, de tez lisa e límpida, de pele brilhante entre sombras e sóis, morena clara claramente de endoidecer. Seus cabelos lisos e pós-curtos caíam pelos ombros nus, como se fossem um colar castanho posto em derredor do pescoço.

Estava sentada em um banco de madeira baixinho que fazia curvar suas costas sem se poder precisar se seria apenas devido à ação da gravidade ou se por teimosia do peso da vida a se abater. As pernas cruzadas dentro da saia branca de florzinha indo até os lívidos pés calçados por chinelinhas, mostravam mais do que seria necessário mostrar. Não qualquer vestígio de roupas de baixo. Não. Nenhuma tara era possível àquele momento. O que surgia do entremear das pernas cruzadas eram panturrilhas redondas, lepidamente redondas, sinuosidade que ia desde as panturrilhas até os ombros nus, passando pelas ancas e quadris. Tudo ali nela serpenteava. Escorregavam facilmente os olhos de cima a baixo, sem nenhum obstáculo plausível, a visão nela fluía.

Havia ainda, talvez antes de tudo, um olhar absurdamente dócil, precisamente bonito, infinitamente azul, indefinidamente possível. Mansamente olhando o mundo, tomando posse de tudo o que pudesse se ater ao seu coração por meio do toque da visão. Seus olhos eram aquela coisa nunca antes vista ou imaginada. Quando por segundos tocavam os meus, abatia-se em mim a sensação de não cabimento e eu esvaecia o olhar até prostrar-se ao chão. Me perdia inteiro, como se chão não mais houvesse e só nuvens se fizessem abaixo de meus pés. Definitivos. Aqueles seriam provavelmente os olhos definitivos de minha existência.

Fiquei ali contemplando ela por uma meia hora de infinitude tal, que não poderia existir mensuração de tempo que desse conta de contar aquele caminhar do mundo rumo ao imponderável. Pensei junto aos meus botões se poderia existir essa tal história de amor à primeira vista. Senti que deveria me abrir às possibilidades e deixar o que a vida quisesse me dar adentrar de qualquer modo. Foi nesse momento que um trem azul desgovernado despedaçou meu coração e minha cabeça em um milhão de pedaços, sem ter noção de que em algum dia pudessem voltar a se juntar novamente. Deixei a entrega condoer todos os rincões possíveis do que eu podia chamar de eu.

Ela entrou de uma vez arrebentando portas, janelas, paredes, tudo o que se encontrava pela frente.

Quando saí do meu estado de frêmito passional, já era noite e as costas do dia viam arder um sol pesado a morrer vagarosamente na paisagem sertanicamente chapadina. Corremos vários e variados a tomar uma cerveja gelada procurando apaziguar o sentido do calor que nos derretia ensandecidos, quando de repente meu corpo sentiu: ela estava chegando. Como numa imagem de milagre, mais do que numa miragem, ela surgiu novamente: emanava um olor de flores frescas, possuía um semblante de calma e olhava o mundo com aquele olhar de que tudo poderia desabar, mas ela ainda estaria íntegra.

Não contive o sorriso em minha face e tudo se fez brisa boa em meio àquele calor de 40°. Ela sentou-se à minha frente e me consumiu com o olhar. Foi um olhar de quem deseja. Não que eu antevisse que ela me desejava, era antes um olhar de quem deseja e sabe que deseja. Eu apenas derretia.

Ela falou amenidades sobre a vida, sobre o mundo e eu não consegui produzir muitos sons que não fossem apenas o murmurar apaixonado e concordante com qualquer proposição. A mesa foi diminuindo, ficando pequena para tanta presença que quando eu me atinei só estávamos nós dois. A conta havia passado dos cem reais, não havia metade do dinheiro na mesa e eu realmente não ligava para aquilo. Só conseguia continuar a concordar e me apaixonar. Era fácil, era doce, essa tanta coisa que o amor faz.

Como o bar havia fechado, propus que passeássemos um tanto pela Lua, até o sono vir calmamente se depositar sobre nossas pálpebras. A Lua estava lenta e pouco movimentada, apenas mais uns dois casais no auge da paixão troteavam enamorados pelos vales e canais.

Lá em cima pousei tímido minha mão sobre a dela e ela aquiesceu com outro toque. Falei pra ela que existia a noite, o breu e mesmo o velado coração de Deus, fazendo minhas as palavras de Hilst, mas insisti que o desejo seria apenas uma asa, sem outro par que fosse necessário para poder voar. Ela passou os dedos em meus cabelos e disse que preferia pensar que a asa só era boa, que assim ela podia se aninhar. Eu sorri longamente para ela e ela, como num espelho, sorriu no mesmo compasso.

Falei pra ela da saudade, como se ficar na Lua eternamente fosse possível para nós dois e burlar a saudade fosse fácil esquecendo-se da distância. Ela me calou apontando a Terra e dizendo: “deixa a saudade e a distância pra quando elas existirem, sente só o vôo”.

Confidenciei que um trem azul havia me arrebentado em cacos pouco tempo atrás e ela me confidenciou que juntou um monte deles e que estavam em seu bolso. Tirou alguns pedaços e me mostrou, vi neles o que era preciso para se re-erguer e a abracei. Ela abriu minha mão e foi colocando caco por caco me mostrando: “olha, toma aqui um punhado de vida, de palavras, de encantamento, de calma, de afeto, de desejo… junta tudo e cola com vontade, eu estou aqui pra te ajudar”. Deitei em seu colo como um pássaro afastado do ninho e deixei uma lágrima de esperança molhar sua perna, tentei falar de algum dia e ela me calou novamente mostrando uma estrela cadente em sua mão. Peguei a estrela e a abracei forte, tentando transpô-la para o dentro do meu peito, quando ela adentrou inteira escutei o barulho da locomotiva acionando e um trem azul vindo cadenciado no rumo da estrela.

A estrela fez-se sol e entrou no trem azul que me veio até a cabeça e ela lá, já no todo da minha cabeça.

Falei-lhe que rasgaria qualquer rodovia para vê-la novamente, disse que ela transpassava qualquer noção de beleza, disse que faria até o que não fiz para que nosso mundo cálido se fizesse. Ela me contou que se emocionava com o meu olhar e eu que era ela quem emocionava todo olhar. Amei-a, pois, com um toque de vistas primeiras e a amei ainda ao lha saber. Dormimos abraçados ali mesmo na Lua, com sorrisos francos e corações já abertos ao fim. Sabedores da distância e pertencentes da saudade, mas não precisávamos falar sobre qualquer coisa, bastava apenas sentirmo-nos presentes um para o outro.

Despencamos da Lua ainda de manhã cedo, caí no meu quadrado de sempre e escutei quando ela pousou em seus morros. Gritei do alto do planalto o mais forte que pude gritar, soluçando a falta por todo o peito e de longe, lá das gerais, ouvi um eco lentamente aproximando-se com um beijo carinhoso no rosto.

Hoje vivemos dessa comunicação primitiva e mágica: eu lanço ventos de acalento e benfazejo daqui e ela me manda faíscas de presença urgente de lá. Encontramo-nos sempre no impossível dos sonhos e nos tocamos ao pousar as vistas nos pores-do-sol.

Espero, sem esperança alguma, o dia que me terá compaixão e me fará revê-la.

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