Just another day

Aquele dia tudo estava a dar errado. O ônibus meticulosamente adiantado, a chuva no meio do caminho, o outro ônibus quebrado ao longo do percurso, a chuva durante a espera do outro ônibus, o outro ônibus mais que lotado, os dentes sem escovar devido ao atraso, o bêbado a cair no meu ombro, um crente pregando desesperadamente. Enfim, um dia que parecia se perder nele mesmo.

No trabalho um caos normal, o mesmo filho da puta a me maldizer no telefone, o café já findo, a ressaca latejando e o computador – outro filho da puta – me sacaneando. Um dia comum essa parte.

Meio-dia. Correria. Almoço na universidade: fila imensa e desmedida. Dia atípico. Almoço sozinho. Nenhum companheiro saudoso a me amainar os ânimos. Só as mesmas figuras carimbadas de uma intelectualidade acadêmica medíocre.

Peguei minha pasta de soja, que as pessoas insistem em dizer que se chama torta, meu arroz integral e as duas rodelas de tomate e fui comer. Como sempre, nada de farinha ou pimenta. Só aquele suco estranho, pretensamente de goiaba, a amaciar a árdua descida da pasta de soja.

Nada muito diferente até então. Um dia de tudo dar errado, normal. Constatava esse fato quando me deparo com uma figura despretensiosa em minha frente. Cabelos grandes e encaracolados, um tanto molhados, um tanto desgrenhados. Comia devagar e aparentemente num estado catatônico. Cada garfada parecia um divagar sobre o nada. Os óculos grossos e arranhados não deixavam ver ao certo onde estava seu olhar, se a contemplar alguém ou se a se reter no vão dos segundos.

Levantei-me objetivando pegar mais suco e notei sua caneca vazia. Ofereci-me para pegar mais suco. Aceitou. Ao voltar notei sua face quase chorosa. Perguntei se estava bem. Falou que sim. Era uma figura bastante bonita com certeza e sua melancolia trazia algo ainda mais sutil a sua beleza.

Perguntou-me qual meu curso. “Geografia”, falei. Disse-me que era interessante e se iniciou um papo a toa sobre Milton Santos. “Grande figura”, conclusão final. O almoço também se findava.

Lembrei que não havia perguntado seu curso. “Pedagogia”, falou. Sorri no canto da boca. Pensei se teria novamente relações pedagógicas com alguém. Tremi na base. Maria não me era algo bom hoje. Até repensei sua beleza.

Saímos do restaurante e perguntei se fumava. Respondeu-me que tinha cigarro. Tomamos café e fumamos. Notei que sua boca era bem bonita. O cigarro dava ainda outra tez sensual àquela cena. Pouco falamos, olhávamos a chuva.

Perguntei seu nome. “Otávio”, respondeu. Achei que combinava. Foi nessa hora que me recordei que eu era heterossexual. Até então não me havia percebido que flertava com um homem. Estranhei-me. Notei sua barba e seu piercing e me ative: realmente ele era bonito.

Não sabia se estava mesmo interessado nele. Afinal, até onde eu sabia, era heterossexual. Ele começou a me falar que a chuva estava bonita. E na realidade, a chuva estava bem bonita. Recordei-me de uns versos de Drummond: “Maria chuvidia”. Sem sentido algum, recitei-os baixinho, quase para mim. Otávio completou: “E agora Juca? A chuva acabou…” e me fitou nos olhos.

Deu-me um beijo leve na boca e disse: “tenho de ir, a hora é pouca”. Consenti àquele beijo. Enquanto ele se ia, lembrei-me de perguntar: “porque você está triste hoje?”. Voltou devagar, pôs a mão no meu ombro e falou: “terminei com minha namorada ontem e hoje parecia que tudo ia dar errado…”. Sorri e murmurei: “entendo, entendo…”.

Trocamos os telefones, beijei seu rosto e falei: “se preocupa não, o mundo é assim mesmo: humano, demasiado humano” e fui embora.

Quando o dia acabou, deitado em minha cama, constatei: “e o dia nem foi bom”…

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