Nove e vinte. Já estou ficando atrasada. Com certeza Paulo já me espera há pelo menos uma hora. Logo hoje o carro foi quebrar. Hum, deixa eu pensar, o ônibus que passa ali… merda, vou ter que pegar um ônibus pra rodoviária. Já estou atrasada. Mas com fé eu consigo chegar na hora e aliviar um pouco a angústia de Paulo. Ô sujeito ansioso, quero ver outro igual.
Nossa. Noite fria essa, vou ter que voltar pra pegar um casaco. Eu podia pegar um pra Paulo, ele nunca leva casaco mesmo e depois fica passando frio e dizendo que é psicológico. Claro que o frio dele é psicológico: ele não leva o casaco por teimosia! É claramente um fator psicológico que o demove: teimosia. Ah se minha amiga Gabriela escuta eu falando isso, me dá um tiro: “Você menospreza demais a psicologia, Eliane…”. É, com certeza eu menosprezo, mas também, deveria menosprezar mesmo. Se bem que ela e Paulo quando discutem sobre psicologia é uma coisa bem interessante. Bom, deixa eu correr que lotação pra rodoviária passa toda hora.
Puta que pariu! Esqueci o casaco pro Paulo. Com certeza ele está sem. Ah, fazer o quê? Ele já é bem grandinho pra saber que não se deve andar sem casaco nessa cidade maluca. Não sei porque Paulo aceitou ir comigo hoje pra esse show. Nunca vi alguém tão velho em tão pouco tempo. Parece que no último ano ele envelheceu pelo menos uns quinze anos. E o pior é a amargura dele. Tá ficando áspero demais. Não ácido, pois que ácido é coisa de adolescente, ele já passou disso, ele está é enrugando mesmo, ficando áspero.
De fato, creio que fiz besteira em chamá-lo pra sair hoje. Ainda mais, porque o Marcos vai estar lá e eu queria mesmo conversar com ele também. Mas ah… que se foda. Como eu disse, o Paulo já está bem crescidinho pra entender certas coisas. Será que até hoje ele pensa em mim? Não pode ser. É claro que eu penso nele, mas definitivamente o meu pensar é outro. Tem vezes que me lembro e sinto vontade de ligar pra ele e ficar com ele, mas só naquele momento, rápido e rasteiro. Beijá-lo um pouco… É, mas deve ser difícil pra ele, sinto que ele não entende que a gente nunca tenha feito sexo, não abstrai o porquê. Ainda bem que não sinto dó dele. E logo ele que é uma pessoa tão legal. Podia tanto ser algo sutil, leve, algo só nosso. Segredo guardado a sete chaves. Mas não, ele sempre aparenta querer mais, ele sempre anseia por algo maior, sempre parece que aquela vai ser a derradeira vez, o momento em que eu vou cair definitivamente apaixonada por ele e jurar fidelidade e outras coisas mais.
Hum, penso que estou viajando demais. Sinto que ele já se resolveu. Na realidade, ele tem que ter se resolvido. Já sei! Se ele aparentar que está resolvido, eu até fico com ele. Nossa, mas como ele podia querer só isso, uma noite qualquer, um encontro qualquer, uma noite displicente! Bom, vamos ver o que dá. Eita, já estamos na Rodoviária! Caramba, já são nove e trinta e cinco.
Eu sabia… É só chegar na fila do box do ônibus e nada. Ele nunca está aqui… Nunca. É infalível. Vou ter que fumar um cigarro. Pelo menos, creio que dá tempo, ele só não pode chegar agora, porque pior do que chegar e o ônibus não estar no box é acender um cigarro pra esperar e ele estacionar bem na metad… merda! Não falei… Quando é pra dar errado é pra dar errado. Esse gosto de meio cigarro aceso é um dos piores de todo o mundo. É o aborto de um alívio. Bom, pelo menos vou chegar no horário, o Paulo nunca diz, mas eu sei que ele odeia esperar. Mas eu nunca entendi, se ele odeia esperar, por que ele sai duas horas antes do horário marcado? Vá entender a cabeça desse rapaz…
Ah, agora sim. Ônibus é bem melhor que lotação, nem se compara. A visão, o panorama da janela, é uma sensação bem mais confortável. Mesmo quando o ônibus está cheio. Gosto de andar de ônibus, eu deveria andar mais. Caraca, agora onde é a parada? Odeio ter de ficar assim, na iminência de descer… Hum… Deve ser agora.
Ai ai ai… parada errada. Que merda. Por que eu sempre faço isso? Pelo menos eu desci antes, não depois. A sensação de que ficou pra trás é terrível, de que você tem que voltar, tem que percorrer o que já andou… Bom é andar pra frente, sentido futuro. Esse lugar é de boa, andei bastante por aqui. Lembro que eu e Paulo almoçávamos ali. Era engraçado, era bom. A comida era uma bosta, mas o preço compensava. Ah, era bem ali que a gente ficava depois de almoçar. Hum, sabia… Paulo já está lá. E sem casaco como eu havia previsto.
* * * *
Beijei seu rosto e falei pra ele que eu sabia que ele estaria sem casaco. Nem falei que pensei em trazer um, ia parecer forçado. Perguntei como estava e fui andando rumo ao lugar do show. Ele me acompanhou e disse que estava bem e – como eu imaginava – nada de emocionante acontecera com ele esses tempos. Eu pensava que a noite poderia ser bem agradável, só não dizia muita coisa.
Perto da gente, começava a passar alguns carros com sons bem altos. Música boa até, pessoas animadas… Insisti comigo que a noite poderia ser bem boa. Vi que Paulo se incomodava, mas tentei dar uma de “animada indiferente”, não ligar pra suas neuras – e nem dar trela pras minhas. Nessa hora aconteceu uma coisa muito cômica, Paulo leva uma porrada de um malabar de uma garota. Não me contive, tive que rir. A garota era muito esquisita e tinha um aspecto hippie-punk-tecno-clubber. Uma figura bem engraçada. Eu não sabia se eu ria do Paulo ou se ria da garota. Percebi que Paulo ficava sem-graça e resolvi maneirar.
Fomos beber. Paulo pediu vodka e eu comprei uma cerveja. Começamos a conversar e eu falei pra ele que provavelmente o Marcos estaria ali. Falei que estava trabalhando com ele agora, mas vi que Paulo estava meio aéreo, parecia meio incomodado ou até mesmo espantando com alguma coisa. Olhava para os lados, não se concentrava em nenhum assunto, só murmurava coisas concordando comigo. Fiquei meio sem-graça de estar falando sozinha e me calei um pouco. De repente chega um indivíduo falando horrores com a gente. De fato, eu não sabia quem era. Tinha uma vaga impressão de que conhecia a pessoa e vi que ele conhecia a gente também, afinal, ele falava coisas do tipo: “E vocês dois, heim? Vão ficar nesse chove não molha, é?!!!”. Reparei que deveria ser algum conhecido nosso da faculdade. Mas, realmente, não me lembrava quem era.
Paulo de fato é uma pessoa engraçada, ele tinha ficado com um certo receio de encontrar mais algum conhecido e propôs que entrássemos no show. Convenci-o de que valia a pena comprar o ingresso que incluía o cd da banda junto. Ele concordou e entramos.
Eu estava bem tranqüila, entramos e fomos andar pelo lugar, eu queria encontrar algumas amigas que tinham ficado de ir pra lá também. O lugar estava cheio, bastante pessoas. Havia um clima de noite razoável que eu não conseguia conter o meu sorriso. Deveria estar parecendo que tinha colocado um botox na cara. Pensei que não queria encontrar mais o Marcos.
Logo de cara, segundos após este pensamento, a gente encontra Marcos. Eu sabia que ele estaria ali, mas quando o vi, gelou-me a espinha de uma forma tal que eu não sabia bem dizer o porquê. Vi que ele estava muito bem, ele passava a mão nos meus cabelos de um jeito que há tempos eu não sentia. Eu apertava a sua mão e só conseguia dizer que estava bem, afinal, eu estava muito bem mesmo. Foi aí que Paulo apareceu e cumprimentou Marcos. Falou qualquer coisa sobre ver alguém e saiu. Não entendi direito, só vi que ele tinha saído bem rápido. Típico dele. Pareceu que ia embora da festa. Ele sempre escapava dos lugares de forma rápida e sorrateira. Não o vi mais durante o show.
Marcos me perguntava se eu estava com Paulo. Entendi o tom da pergunta e respondi que não. Que tinha marcado de me encontrar com ele simplesmente. Ele riu e disse que ainda se lembrava bem dele, afinal, era por ele que o namoro havia terminado duas vezes. Eu fiquei meio sem-graça. Marcos disse que se eu quisesse procurar Paulo pra ficar com ele, tudo bem, ele já “estava acostumado com isso”.
Fiquei meio irritada com ele. Mas, no entanto, não saí de lá. Fiquei ao seu lado um bom tempo até que ele me disse que sentia minha falta, mas que não queria ficar comigo. Eu retruquei a mesma coisa. Era engraçado aquilo, afinal, eu não tinha a mínima vontade de ficar com ele, mas gostava da companhia dele, gostava de como era ele, gostava até do seu cavanhaque. Ele era uma pessoa bem preciosa mesmo, uma pessoa que me tocava alguma coisa. Começamos a bater um papo sobre a vida, sobre como era engraçado o tomar rumos variados na vida, sobre como, uma hora ou outra tudo se esbarra novamente, afinal, a gente, que pensava nunca mais se ver, estava trabalhando junto agora.
Fomos comprar cerveja. No caminho fui olhando para os lados tentando buscar Paulo, mas não o encontrava de forma alguma. A cerveja estava meio quente, mas ainda assim tomamos. Sempre achei curioso esse lance de como uma cerveja pode ser algo extremamente bom com determinadas pessoas e algo penoso com outras. A cerveja é de certa forma um decantador de conforto.
Marcos falava qualquer coisa sobre como ele estava bem com o novo emprego. Disse-me até que tinha encontrado uma pessoa bem legal que ele estava afim de conhecer melhor. Senti, do fundo de alguma coisa em mim, que aquilo era bom, que era agradável saber que uma pessoa que tinha ficado mal horrores quando terminou comigo, podia se recuperar em paz e ainda gostar de ficar em minha presença. Aquilo era alentador.
A cerveja descia bem, a conversa fluía de forma inimaginável. Naquele momento o show era somente eu e Marcos. Não por um ímpeto de apaixonite que pudera ter se abatido, ou por um querer sexo fácil àquela noite. Era antes de tudo, um gostar que se assentava de modo tão leve que, às vezes, eu me perguntava por que eu estava daquele jeito, tão boba.
Foi naquele momento que eu quis beijar Marcos. Beijá-lo só por beijar, sentir aquela sensação de forma mais junta, mais abrasiva. Ele me olhava de um jeito singular, não era a mesma pessoa que eu tinha namorado. Definitivamente era outro. O show da banda começava, mas a gente nem se atinha. Ficamos imóveis olhando um pra cara do outro durante muito tempo. Até que ele deu um sorriso. Aquele sorriso não estava programado, foi um sorriso completamente desarmador, repleto de um querer não falado, de um querer velado.
Sorri também e me aproximei dele até que o beijei. Ele correspondeu. Não foi afoito, não foi frio, não foi distante. Era um beijo ali, encaixado, medido, esperado. Eu não pude fazer outra coisa. Tive de sorrir. Ficamos encabulados. Olhei para o show e comecei a fingir que estava gostando do mesmo, mas na verdade o que me acometia era uma imensa vontade de discutir sobre aquele beijo, de divagar mesmo se aquilo podia ter sido real, se aquilo de fato havia acontecido. Contive-me e o chamei pra comprar mais cerveja.
Quando voltamos vi que ele estava bem tranqüilo e que não esboçava nenhum sentimento mais vultoso. Fiquei meio decepcionada. Um beijo daqueles tinha que ter algum sentido. Tinha que ser alguma coisa. Tinha que ser mais do que um mero estalar de beijos. Vi que ele pensava em nada. Resolvi arriscar e perguntei o que ele tinha achado do beijo. Ele disse “Bom”. Bom, eu pensava… Bom? Só isso? Apenas isso? Bom? Fiquei meio frustrada. Mas comecei a raciocinar friamente: é, de fato, o beijo foi bom, logo, bom é uma boa resposta, na verdade… bom é uma excelente resposta. Olhei-o e o beijei de novo. Foi bom de novo. Vi que realmente eu não podia ficar falando mais que as coisas eram boas da boca pra fora, porque bom, era uma coisa muito boa.
O show continuava e eu resolvi me enquadrar melhor, comecei a me soltar, bebi mais cerveja, entrei na onda de fato. Eu e Marcos pulávamos, dançávamos, bebíamos e nos beijávamos (e era bom). Nada mais de conversa, nada mais de teorias, só um prazer (bom – se é que existe prazer que seja mau) sendo sentido. Conforme o show ia se findando mais eu pensava em conferir como seria o sexo com ele. Se o beijo já denotava toda essa sensação desenfreada de “bom”, eu queria ver como seria o sexo. Novamente eu não me contive e perguntei se ele queria fazer sexo àquela noite. Ele nem pensou, nem titubeou, nem demonstrou dúvida, respondeu na lata: “quero”.
Saímos um pouco depois que a banda havia acabado seu show. Já havia várias pessoas pelo chão, os cachorros-quentes lotados, o chão imundo, a noite se esvaindo, o sol querendo raiar. Marcos estava de carro e parecia estar com algum sono. A gente tinha bebido muitas cervejas, mas eu ainda estava inteirinha. Quando chegamos na casa dele ele pediu pra eu falar baixo que a mãe dele estava por lá e não queria acordá-la. Entramos no quarto dele e já começamos a tirar a roupa.
Fiquei pensando que não tinha a mínima lógica ficar num lenga-lenga de beijinhos e amassos quando o objetivo era único e explícito: trepar. No começo estava bom, não no sentido do beijo, até me contenho pra dizer se algo está bom ou não agora, é melhor dizer que estava razoável, bem razoável. Mas foi aí que descobri que ele não estava muito acordado por assim dizer. Eu pulava em cima dele, rebolava, remexia, apertava os seus peitos, quando percebi que o rapaz não se mexia muito. Fiquei meio perplexa. Parei e vi que ele não se movimentou um milímetro. De fato, ele dormia.
Sai de cima dele, olhei seu rosto dormindo e fiquei com o mesmo gosto de cigarro pela metade na boca. Pensei comigo mesma e acendi um cigarro. Pelo menos aquele não seria abortado. Fui até a janela do quarto dele e fiquei fumando. O dia amanhecia, o sol já esquentava a rua. Lembrei-me de Paulo. Realmente ele deveria estar um bom tanto desolado. Mas a noite tinha sido tão boa. Uma pena ele não entender essas coisas. Talvez, se ele tivesse ficado perto, ao invés de arranjar uma desculpa qualquer… Mas ah… um dia ele entende.
Bom, pelo menos foi uma noite agradável. Acho que pelo beijo valeu a pena o resto todo. Foi realmente um beijo bom.