“Não é a loucura que convulsiona o mundo.
É a consciência.”
Malamud
Gabriela olhava um garoto moreno muito lindo que estava sentado sozinho no banco da praça com cinco litros de vinho ao seu lado. O garoto tomava o vinho devagar em goladas muito desesperadas, ele observava as pessoas ao seu redor. Sem pensar, Gabriela seguiu até o garoto.
Gabriel olhava as pessoas ao seu redor até que concentrou sua atenção em uma morena. Ela vinha em sua direção e segurava uma garrafa de vinho de cinco litros. Ela estava muito ébria e cambaleava, mas agia com toda a sensualidade latente a essas morenas que lembram índias. Sentou-se ao seu lado, passado alguns minutos, ele disse:
– Olha aquele tipo ali.
– O que tem ele?
– Nunca parou para observar o comportamento dos outros, como eles são? o que sentem de verdade?
– Às vezes, o que você diz dele?
– Na minha opinião não está se divertindo, só finge. Presta atenção no modo como dança. É só pose, na verdade ele não quer fazer nada disso. Só finge não se controlar quando está embriagado. É daquele tipo: “Vô bebê todas e num tô nem aí”. Amanhã ele vai estar fingindo que sua ressaca é a maior do mundo e que não se lembra de nada. O pior é que toda vez ele faz isso. E todos que estão ao seu redor fingem acreditar e gostar dele.
– Pior que é.
– Arrisca alguém aí. Vai, é divertido.
– Aquela ali, a de vestido hippie.
– Sei, tipo comum aquela, não?
– Com certeza. Na verdade ela é uma patricinha enrustida. Tá aqui no meio dos “doidão” e tira onda de hippie. Divide os lindos, sedosos e tingidos cabelos ao meio, põe um monte de bugiganga no pescoço, uma sandália de tira no pé e fica falando que curte Janis. Mas é só ir numa daquelas boates tecno do Plano e ela vai estar lá com tênis de plástico, saia curtinha, piercing no umbigo e dançando todas as músicas. Só pose.
– Só pose.
– O que você tem a dizer daquela ali?
– A que esta totalmente embriagada?
– É essa mesmo.
– Bem, deve ter tido um namorado mais velho quando ela era apenas uma desbocada garotinha de quatorze anos, mas sem nenhuma experiência. Este namorado, sem dó nem piedade, tirou-lhe o cabaço no terceiro encontro e logo depois a largou na vida. Ela de raiva passou a dar para quem quisesse comer (e vários quiseram), agora ela está ai, a reputação acabada, em vias de virar uma alcoólatra e sem nenhum amor próprio.
– Profundo.
– É, mas e aquele que está olhando ela e rindo com os colegas.
– O bombadinho, de tribal no braço?
– Um deles, o de camiseta azul.
– Ah sim. Tem cara de ter sido um provável responsável por deflorar a outra que você falou. Não deve pensar muito e quando, por milagre, isto ocorre, ele pensa pela ótica do “senso comum alternativo”. Nunca deve ter tomado um porre na vida, mas diz pra todos que é o maior cachaceiro do mundo. Deve comer muitas menininhas. Deve fumar uns baseados quando encontra algum colega “doidão”. Conclusão: um ser desprezível que não merece a existência que lhe foi outorgada.
– Com certeza.
Por instantes os dois se calaram. Olhavam para o céu. A Lua cheia, o céu límpido e estrelado, estrelas cadentes cortavam a abóbada celeste em formas inigualáveis. Os dois não tinham coragem de se olhar, ele disse:
– E a gente?
– O que tem?
– Como somos nós pela ótica dos outros? Você, como você me via quando sentou-se ao meu lado?
– Bem, eu pensei: ‘aquele ali é inofensivo, tem cara de virgem, deve ser um pretenso intelectual que não agüenta mais tanta droga e resolveu dar uma descansada e ficar olhando os outros passarem na expectativa de que alguém pare e converse com ele’. E o que você pensou quando me viu?
– Olhei e divaguei: ‘morena bonita, deve ter levado umas quarenta cantadas absurdas e já não agüenta mais, sabe que é bonita e inteligente e que não merece escutar mais tanta merda, ela vai sentar aqui porque eu não ofereço perigo, se brincar ela é sapatão’.
– É parece que agente não se enganou muito…
– As vezes, as aparências não enganam.
– Você é virgem mesmo?
– Você é sapatão?
– Perguntei primeiro…
– Fisicamente…
– Como assim, fisicamente?
– O ato em si eu nunca fiz, mas a experiência eu já vivi milhares de vezes na minha mente, não falo só de masturbação, mas de saber que aquilo é algo transitório e que não vai me acrescentar muita coisa.
– Como você pode saber se você nunca fez?
– A previsão é fácil, não vejo ninguém que pelo fato de ter transado alguma vez na vida, se mostre mais sábio ou mais despreocupado com relação a esta. O sexo só serve como o primeiro passo para a existência de certas formas de vida. Fora isso é só mais um desejo inútil que te impede de ver o real.
– Bonito, mas falta paixão ao que você diz. Realmente não creio que você acredite em tais afirmações.
– Por que? Você não tem um ideal convicto quanto sua sexualidade?
– Tenho, e penso ainda que nesse aspecto os homens são mesquinhos.
– Mesmo eu que nunca fiz?
– Mesmo você, pois ao invés de super valorizar o sexo como todos os homens, você simplesmente o nega.
– Mas não sou dependente desta felicidade ilusória…
– Acho que pelo menos você devia experimentar para tecer afirmações sobre…
– Tentar eu já tentei, mas para se fazer a coisa é necessário dois.
– Ora, o que é isso? Você é um rapaz bonito, inteligente. Vai dizer que nenhuma garota quis ir até o fim com você?
– Exatamente.
– Não creio.
– Nem eu.
– Ah, então agora eu entendo, esse discurso todo é somente raiva. Nunca conseguiu ninguém e por isso fica dizendo que não vai e nem quer fazer.
– Pode ser. Mas e você, quando você virou lésbica? Foi depois que um cara tentou comer o seu cu sem manteiga ou quando um namorado seu, só de raiva, saiu dizendo que você usava calcinha de bichinho depois que terminou contigo?
– Nenhuma das duas!
– Desculpe.
– Bem eu nem sei direito, mas os homens começaram a parecer para mim um bando de trogloditas que só pensam em sexo. Olha, quando eu tinha quinze anos, eu tive um namorado…
– Não falei! Sabia que tinha um cara. É só orgulho ferido. Na minha opinião todo homossexual é antes de tudo um egocêntrico, que se acha tão dono de si que decide ir contra o senso comum só para se afirmar algo próprio.
– Assim como você, orgulhoso e egocêntrico.
– É, tem razão.
O dia amanhecia e os dois estavam calados. Gabriela aparentava um ar de quem pensa em demasia, Gabriel por sua vez, parecia não pensar em nada. Os dois vinhos tinham acabado. Gabriela falou:
– Vamos comprar mais umas biritas.
– Boto fé.
Os dois compraram uma garrafa de vodca e uns salgadinhos. Gabriel e Gabriela foram ao banheiro e os dois deram uma bela cagada cada qual. Optaram por subir um morro e tomar aquelas bebidas. Gabriel tinha um haxixe e Gabriela disse que tinha uma surpresa. Os dois subiram um morro que dava uma vista muito clara de um vale. O sol já se mostrava forte e os dois se encaravam, enquanto douravam mais suas peles, amorenando ainda mais aqueles dois seres. Então Gabriela disse:
– Há tempos que eu não me lembro o que é um homem.
– Dê-se por satisfeita. Desde que eu nasci que eu não sei o que é uma mulher.
– Eu vou te falar uma coisa, eu tenho uma companheira, o nome dela é Sandra. Mas eu acho que eu perdi o tesão por mulher.
– E por homem?
– Também.
Os dois se calaram. Começaram a intercalar o olhar entre o outro e a paisagem. O vento ia diferente. Fumaram o haxixe. Depois de algum tempo a garrafa de vodca estava pela metade, fumaram outro baseado. Gabriel:
– Agora que eu fui perceber, eu não sei o seu nome.
– Gabriela.
– Nossa, o meu é Gabriel.
– Destino…
– Será? Isso existe?
Gabriela mexeu em sua bolsa, tirou algo dentro dela. Gabriel observava:
– O que é isso?
– Cogumelo defumado.
– E eu não vou passar muito mal não?
– Não, é só não pensar muita coisa ruim.
Havia dois cogumelos e cada um comeu um inteiro. Fumaram outro baseado. Meia hora depois se via o efeito:
– Às vezes eu penso cinza.
– Eu… eu sempre pensei cinza.
– Mas as vezes eu penso lilás.
– Eu sempre pensei cinza.
– Por que será que o amor é azul?
– Sempre pensei cinza.
– “Azul da cor do mar!!!!!!!!!!” O céu é azul ou cinza? Mas e o cinza é cinza ou é branco mais preto? “Ter um sonho todo azul!!!!!” Será que isso tudo é um sonho?
– Eu sempre sonhei em preto e branco.
– O sonho é a continuação da realidade. Olha as lombras como passam, elas dão voltas, caem e gritam. UAUUUUUUUUUUU!!!!!!!!!!!!!!!!!
– Você é você e eu sou eu? Por que eu sempre sonhei em preto e branco?
– Vai querer?
Aí ele disse:
– Por amor ou por besteira?
E os dois fizeram sexo, como os tântricos da antigüidade da Índia. Como no Cântico dos Cânticos. Era um amor violento e suave. Aparentavam figuras do Kama Sutra. Fizeram uma, duas, cinco vezes e não se cansavam. E por fim, quando já era noite os dois dormiram abraçados respirando o suor do corpo outro e só agora eles tinham a noção: eram um só e o sexo estava ali, os permeando, a única tarefa imputada foi ao sincronismo do acaso em achá-lo.
* * * *
Foi neste quadro que Gabriel acordou, caíra da cama. De súbito colocou as mão na genitália, havia melado a cueca. “Foi apenas mais um sonho”, pensou Gabriel acostumado com tal situação. Levantou-se e foi lavar a si e a sua cueca, aproveitando para tocar uma bronha no banheiro e lembrar daquele pitelzinho de morena do sonho. “Será que ela existe?”, pensava ele enquanto o suor lhe descia a face.
* * * *
A vinte graus de latitude sul, Gabriela acordava assustada com seu sonho. Não estava acostumada a ter sonhos eróticos, quanto mais com drogas. Ah, se seus pais soubessem. Arrumou a cama envergonhadamente e foi tomar banho. Logo em seguida foi se confessar. Lembrou-se de que não se confessava há meses. “Acho que ando vendo muita TV”, pensou consigo um tanto quanto arrependida.