Paulo andava querendo falar com Eliane há algum tempo. Queria falar sobre o CD novo que havia comprado. Assim que o comprou, quis que ela conhecesse seu conteúdo, foi algo instantâneo: música boa: Eliane. Neste CD, havia uma música em especial que trazia Eliane até Paulo de uma forma sutil e leve, a letra falava acerca de um sentimento fácil, de uma vontade de tocar o coração bem simples. Talvez, por isso, Paulo receasse aprochegar-se de Eliane e só falar: “olha que CD maravilhoso, escutei e me lembrei de você”. Não que fosse o fim do mundo – pois ele não era uma pessoa tão tímida –, mas sim, porque após a lembrança tida, veio-lhe a mente uma dúvida brutal: por que diabos boa música trazia-lhe Eliane?
Uma investigação minuciosa foi iniciada em sua mente. Repassava todos os rincões possíveis de sua cabeça para saber o que demovia sua memória a pensar em Eliane quando escutava boa música. A primeira constatação foi a de que música era algo extremamente caro a sua pessoa. Lembrou-se de certa vez em que falara que era preferível perder qualquer sentido a perder a audição, não conseguiria viver sem música. Rememorou sua infância em que nada lhe dava prazer tão particular quanto pegar um vinil qualquer de sua mãe ou de seu pai e descobrir que som sairia dele, aventurar-se em conhecer sonoridades possíveis, extasiar-se com o áudio chiado que saía da vitrola. Realmente, escutar música era um de seus grandes quadros do porquê de viver.
Lembrou-se de mais coisas. De como cada momento de sua vida era acompanhado de uma música. Uma eterna trilha sonora compondo-se em torno de seu caminhar. Cantarolar sempre foi para ele mais do que preencher os momentos vazios com uma atividade qualquer. Cantarolar era para ele por pra fora um sentimento tido, uma emoção contida, um pensamento formado. Cantarolar era dizer para si mesmo sua condição momentânea.
Sua vida se fazia assim mesmo: musical. Um dia feliz conseguido: um samba de João Nogueira, uma apreensão incontrolável: um Chico comedido, uma paixão irrefreável: um blues enternecido, um sentido de tristeza: um bolero antigo. Música por música ele passava seu dia, uma após outra, uma levando a outra. Música era seu amor maior, seu grande amor nunca abandonado, nunca desmerecido.
Sempre teve uma mania um tanto diferente. Gostava realmente de escutar música e acreditava que em nada havia de menor no ato de ficar a ouvir um disco. Recusava-se a ver na música um simples elemento coadjuvante de outras atividades, uma simples trilha sonora de uma cervejada – embora, música de qualquer jeito, até mesmo como mera trilha, lhe fosse agradável. Lembrou-se de uma vez em que estava sentado num sábado à noite em sua casa escutando Vicente Celestino e sua mãe irrompera de repente no quarto. Ela o olhou com ar preocupada e perguntou: “você está bem, meu filho?”. Paulo tranqüilamente respondera: “tudo bem mãe, só estou realmente ouvindo a música…”. É certo que desse dia em diante sua mãe o respeitou mais, seria talvez a constatação de autenticidade em sua criação. Ver que seu fruto era uma persona particular.
Paulo recordava-se também de seu ímpeto de ser músico. Sempre tentara lutar contra seus dons e produzir algo que fosso harmônico, melódico, sonoro e aprazível aos ouvidos, mas tudo em vão. Não saía uma nota bem posta, um compasso afirmado, um ritmo cadenciado, nada. Tentou violão, baixo, gaita, até cantar se aventurara, mas qual o quê? Nada. Tentou tanto até que desistiu, não podia ir contra as tendências de seu ser e forçar-se a produzir algum som que possuísse algo de belo.
Contentou-se assim em escutar música e, talvez, sua desistência tenha dado-lhe o impulso de escutar mais e mais, de se apegar ainda mais a esse ar em movimento. Música tornava-se para ele uma das únicas formas de se sentir bem, de se sentir íntegro. Quase um sentido de suicídio. Escutar música seria a possibilidade de continuar sendo um ser unívoco, de ser completo.
Nesse contexto tido da memória até o próprio alicerçar de seu ser, foi que Eliane retornou a sua cabeça. Música boa: Eliane. Era fato que Eliane possuía um excelente gosto musical segundo as pretensiosas definições de Paulo, mas a relação “música boa-Eliane” não se baseava apenas nisso, pois que apreciadores e apreciadoras de boa música haviam aos montes espalhados pela face da Terra. Havia algo além.
Paulo não se recordava de ter ouvido Eliane falar que sua relação com a música era a mesma dele. Eliane gostava de música e pronto. Nada de definições transcendentes da condição humana por meio de um artefato sonoro. Nada de especulações surreais acerca da musicalidade inerente à humanidade. Nada de mais. Apenas uma ouvinte. Paulo tentava lembrar-se então das músicas que mais lhe remetiam a Eliane, mas era tarefa árdua, pois que quase tudo a trazia para ele. Todas as melhores músicas descortinavam-se em Eliane.
Ficou um bom tempo extasiado com a constatação. Recordou-se do CD que queria mostrar para ela, lembrou da letra tão bonita, acenou com a melodia e cantarolou um pouco. Algo diferente percorria sua cabeça naquele momento. Pegou um disco outro – creio que de Maria Creuza –, pôs na vitrola e ficou a contemplar o som durante muito tempo. Absorto. Novamente, Eliane voltava até ele.
Foi estranho conceber o que se passou nele àquele então. Mas, por fim, descobriu o que sempre a trazia junto à música: Eliane era música. Foi assim que Paulo descobriu seu segundo amor. Na mesma hora pegou o CD e foi mostrá-lo para Eliane. O que aconteceria de então em diante, preferia especular por meio de uma música qualquer – sempre surgiria uma em sua cabeça mesmo.