vociferar
vísceras
dar voz
às feras
vívidas
calar o que
te sucumbe
porta à fora
dar foz
endorreica
até o que
te nasce
submergir
silenciosamente
no grito
3960.
as estruturas não vão ruir
todos cá não veremos o fim
boiaremos infinitamente enquanto espécie
num vão de ir
e rir
sem fim
3959.
entre o capim
navalha e o santo
– limão nunca –
apenas milhares
troncos separados
tantos
que faço chá de faca
e adormeço tonto
do que enfim
acorda em mim
3958.
o jogo de cortázar
é atraente, mas não
precisa ser atrativo
ainda que inerte
menos ativo
menos entumescido
pode ser sem ter sido
só o metrô e o vidro
os vidros vivos armados
em minha face e aqueles
transparentes, refletidos
do mundo cá lá
o contínuo
desde sempre o contrário
paralelo – toda vez que
o olho – eu como –
garoto refletido no piso
do banheiro molhado –
não me arrisco
a vida de cá
é o preciso
3957.
a mentira das nuvens
reside na sua verdade
água dissecada etérea
no emaranhado mutável
do céu é rio –
traveste-se dessas formas
de espuma como
onda banzeiro maré
fios esticados d’água
atando o firmamento
transversal de tempo
transpassa o peito
tão momento como
se diluirá
a construção do amor às farsas
3956. sobre a brutalidade da luz
o que ele aspira
a ser
o pó dela lha
guiando
3955. sobre a delicadeza da escuridão
a juventude é desencantadora
mas o cheiro do tabaco dela é suave
3954. dê pressão
feito a terra em cima da terra
era após era
diamante que dera
3953. borde a linha
com frufru, filó e franjinha
entre o espesso do escuro
e a luz que às vezes brilha
Baseado em fatos
Demorou apenas três dias para que eu cruzasse todas as ruas da cidade e cumprimentasse, com sorriso franco, todas as pessoas que encontrasse. O pasmo e o desconjuro eram sempre os mesmos, apenas as crianças e alguns jovens não fingiam seu espanto e demonstravam, mesmo que de quando em quando, alguma admiração. Talvez fosse pelas minhas tatuagens que cobriam desde a testa até os pés, passando pelo enegrecido à tinta do branco dos meus olhos, mas também devia ser pelos meus alargadores que escancaravam locas nos lóbulos de minhas orelhas, boca, bochechas e nariz. Talvez fosse pela minha farta gordura que despencava banhas por fora das roupas. Talvez fosse porque eu era mulher. Só sei que por onde eu passava gerava uma certa aflição.
Cá estava eu, pronta a assumir o cargo de professora de Educação Infantil do Colégio Estadual Belarmino Malaquias, pacato distrito de Menelau de Dentro, zona rural da comarca de Poricoté do Norte, província de Fronteiras Centrais, região centro-sul do amado país de Mogno, parte central da porção oriente-austral do subcontinente íbero-cabralino.
Poricoté do Norte. Me causava assombro que houvesse uma Poricoté primordial, ou mesmo, apenas, uma Poricoté do Sul. Imagino as tropas percorrendo as gerais desse mato séculos atrás, chegantes e escudeiros percorrendo florestas e brenhas na captura de escravos fugidos ou vermelhos da terra. Um vilarejo ficando por aqui, fruto de uma preguiça rosa-olímpia de botar as outras pessoas para trabalhar à força em seus lugares e do estupro sistemático de nativas. Uns diamantes e um ouro qualquer em algum momento da história, a urbe fincando raízes no meio da selva e eis a nossa atual Poricoté do Norte com toda a sua tradição e herança existindo até agora.
Apresentei-me na escola conforme indicado pelo memorando que impunha em mãos, no dia vinte e três. No início não quiseram me atender. Quando cheguei à escola, uma senhora me atendeu, vi o assombro em sua face. Era como se o diabo estivesse ali em sua frente, e o diabo era eu. Quando passou seu espanto e finalmente ela percebeu que eu era uma pessoa de verdade e que tinha um memorando nas mãos, pegou-o com um certo asco e saiu em disparada porta afora. Não sei quanto tempo passei ali, em pé, à espera de algo. A mulher voltou meio ressabiada, me olhou de cima abaixo e só conseguiu dizer, trêmula: “a diretora não está agora, volte amanhã”.
Voltei para o hotel em que havia me instalado. Lá o pasmo já havia virado diversão. “E aí, professora, já conheceu sua escola?”. Respondi com um olhar meio tristonho e só entrei para o meu quarto. Pensava em como eu tinha me proposto àquilo. Mas agora era pagar para ver. Veria. Resolvi tomar uma cerveja. Saí do quarto e perguntei pro moço da recepção onde tinha um bar com cerveja gelada. Ele disse que o melhor era o Tonhão, não era longe e lá sempre tinha uma cerveja gelada.
Cheguei no Tonhão seguindo o caminho indicado. Lá, novamente mais uma cena de choque. Tonhão me olhou de cima abaixo e perguntou se eu era hippie. Falei que era uma das novas professoras do colégio provincial. Ele riu e preguntou o que eu queria. Pedi uma Skol, ele veio com uma e um copo, antes pediu pra eu pagar adiantado. Dei uma nota de cinquenta, ele ficou com um ar mais ameno. Foi para dentro do bar e eu fiquei ali no balcão tomando minha cerveja.
Um sujeito corpulento, massudo, gordo forte, entrou no bar e me olhou. Parou num susto. Olhou pra mim e perguntou: “é pegadinha?”. Não respondi nada. Fez um ar de foda-se e gritou pelo Tonhão. Pediu uma quentinha. Tonhão encheu um copo americano com uma pinga de uma garrafa pet de refrigerante. O sujeito tomou tudo de um gole e pediu mais uma. Virei pro Tonhão e pedi uma da mesma. Ele botou e dessa vez não pediu adiantado. Tomei num trago e o sujeito me olhou com cara de assombro. De repente ele virou e me perguntou: “tu é mulher?”. Fiz que sim com a cabeça. Ele não falou mais nada. Ficava só me olhando de cima abaixo sem se fazer de rogado. Não dei a mínima pro sujeito. Peguei minha cerveja e fui pra uma mesa do lado de fora do bar. Tomei três cervejas do lado de fora. Foi aí que olhei para o lado e vi uma massa de gente se aproximando. Fiquei pensando se seria uma procissão. Achei curioso. A turba vinha vindo, mas não havia nenhuma coisa que me remetesse a algo religioso. De repente a massa se aproximou do bar e parou em minha frente. Não tive tempo de pensar em muita coisa, só senti um golpe duro de madeira na minha cabeça, desmaiei imediatamente.
Depois vieram vários outros golpes. De facão, de machado, de pau, de pedra. Dilaceraram minhas partes. Me esquartejaram. Mulheres chutavam a minha cabeça. Homens brincavam com minha buceta, chutando-a de um lado para o outro. Rasgaram-me todas as partes. Fui largada, pedaço por pedaço, ao largo da rua que dava no bar. Alguns ainda tentavam atear fogo em algumas partes minhas.
Nunca entendi porquê. Morri esquartejada em Menelau de Dentro, distrito de Poricoté do Norte, província de Fronteiras Centrais, Mogno. E meu sangue ainda pode se ver em algum cascalho que se junta na beira da rua.
3952.
o longo horizonte que ainda há de vir e a preguiça como navalha.
3951.
o que sempre vai me sobrar serão as flores. olhá-las é como um pacto: vendo minha alma por um rasgo de formas e cores. para que seja possível.
3950.
a morte é uma coisa azul. não que eu tenha morrido esses tempos, mas sei. ela é azul e sem temperatura. não é morna, nem quente, nem fria. é um azul profundo, inteiro. dá pra se ver lá em todo o azul. e não é um azul, são todos. é o pleno azul.
3949.
as células
selas que não calam
prisão corpórea
que te mantém vivo
as células não param
paisagens orgânicas
organelas
microcópicas
coisas que boiam
dentro de ti
um pântano
um mar abissal
tua vida.
3948.
no mundo inteiro as mesmas palavras
na mesma ordem
no mesmo compasso
e quando eu falo sobre seres da lua
já me cospem teoremas e tédios
e minha boca fica perdida
aprisionando alegrias
dado o monotônico do mundo
minhas palavras não
são possíveis nem passadas
nem tem poder
são bardos que se liquefazem
por dentro do sangue
e nenhuma montanha
retornou minha voz
nenhum eco se fez
nem no alto nem na foz
desaguada sem sair
cada palavra lago barragem represa
em mim solavanca
tromba d’água e me afoga
cachoeira negativa
meu dentro
e essas palavras
as mesmas todas
rasgando minha pele
açoitam minha face
e o mundo gosta disso
3947.
eu não silencio as manhãs
eu as calo
cadafalso parece chão
mas é buraco.
eu dia me intrometo
nos seus sonhos
vomito a urgência
de se por de pé
limite para a noite
onde tudo foge ao controle.
eu controlo e invado
de luz todas as retinas.
eu dia quero o fogo
do céu queimando corpos
e dispensando a loucura.
3946.
houve o mar
houve a cachoeira
houve o rio e as estrelas
houve a árvore os caminhos a areia
houve a voz lendo o livro o ônibus e a baleia
houve isso que há sendo dito e ouvido
eu você e uma vida inteira
3945.
o peito pensa
é uma massa densa
que se consolida ao redor
vai da garganta
ao umbigo,
podia não se ater,
antever o início do
momento mágico
em que a massa
viraria leveza
nunca travestida de
outro ser
(o que sai de mim
é de mim, vê-se
com outros átomos)
se eu dissesse meias
verdades, falasse
com as pontas dos pés
o que diriam as células
e os cigarros?
o que diriam as mãos?
como o rio que me
atravessa peitos e
plumas meus
ouriçado entre os
entes
e como espasmos
encontro outros alicerces.
meu problema é
diagnosticar angústias
como se fossem solavancos
amaldiçoados dentro de mim.
meu Exu capta dores
e farsas e desavisado
riso franco, maligno
não me avisa:
todo o visto vem de mim,
não dali ou daí.
3944.
prisão
é quando as
partes mais
biônicas do
teu corpo
são teus
polegares ou
indicadores
frenéticos
e um horizonte
no chão.
3943.
trágico, trágico, trágico
mundo
mágico, mágico, mágico
insumo
teu plugue conectado
despluga o horizonte
nada irrompe,
tudo de novo
é velho nesse front
pausa: aleatário da nova morada #1
Cá estou eu, dez de janeiro de 2018. Um corte no polegar esquerdo feito por uma faca de serra quando tentava cortar o fio que amarrava o maço de manjericão que eu amassei junto a alecrim e hortelã na tentativa que meu Pai Oxalá me ajude nessa função de ficar bem. Tomei dois Ansiodoron – maracujá, aveia e valeriana, na medida exata pra tentar controlar a sua ansiedade, só que não. Dormi um sono vespertino abafado e confuso, misto da playlist que a Alessandra Leão fez no Spotfy e que escuto ainda agora, e uma profusão de sentidos se comunicando – sentimentos, pensamentos, sensações. Sentia meu corpo formigando incessantemente, intensamente, como se todas as minhas células estivessem mais ativas do que o normal. Tirei o Whatsapp do modo de não exibir notificações, para ver se eu parava de querer olhá-lo de cinco em cinco minutos na esperança de que houvesse algum retorno. Não houve. Não há.
Cá estou eu, dez de janeiro de 2018. Trinta e cinco anos passados desde que vim ao mundo e ainda ajo como se fosse um adolescente de quinze, na frenética e ansiosa espera de que a realidade corresponda aos meus anseios. Mas ela não corresponde, nunca. Aluguei um apartamento de um quarto em Taguatinga Norte. Nono andar, prédio velho, cheio de velhos que moram aqui. Arrumei tudo com muito apreço e esmero, como sempre me dedico a essas questões de lar e cá estou eu. Eu e um vazio. O apartamento já está devidamente mobiliado, ainda faltam alguns elementos que desejo, como uma máquina de lavar e uma televisão, mas, meu Pai, como tudo anda caro nesses dias.
Cá estou eu, dez de janeiro de 2018. Não sei muito bem o que pensar. Agora há pouco fui à casa da minha mãe, deitei-me no sofá dela e assisti um pouco de televisão, brinquei com o gato Trovão e cochilei alguns minutos enquanto lutava para parar de pegar o celular e olhar o Whatsapp, a vida de um ansioso é uma coisa perturbadoramente aflitiva. Dá um negócio abaixo do peito e acima do estômago, dá um negócio no meio da gente, no centro e irradia para todas as extremidades, o esôfago é quem sofre mais nesse vórtex ao contrário. Almocei por lá e na volta comprei uma cortina que faltava para o apartamento. No caminho me vinham versos, coisas, imagens, tudo meio agressivamente solar e desesperançoso. Ficar triste no meio do sol é algo desolador, desesperador. Ter vontade de chorar junto aos transeuntes todos tão tranquilamente correndo em prol de suas vidas, no meio da avenida Comercial Norte, no meio do sol, dá vontade de chorar. Mas não chorei, só alimentei esse nó no meio.
E cá estou eu, dez de janeiro de 2018. Em 3018 será que ainda estarei assim? A recorrência me leva a crer em um não aprendizado contínuo, vida após vida, moto-perpétuo cârmico de não entendimento. Mas qual será a lição? O que esses átomos que se aglutinam em mim me dizem e que eu não consigo fazer diferente? Mesmo com o Whatsapp no modo de exibição de notificações ainda olho furtivamente o celular, na esperança de que algo houvesse falhado e que sim, houvesse comunicação. O diabo é pensar na culpa, acreditar em uma culpa que agora não tendo forma, corpo e situação, se instaura no amargo das palavras ditas. Não dizer será a resposta? O aprendizado? Talvez o desneurotizar. Mas como se aprende a não ser neurótico?
Cá estou eu, dez de janeiro de 2018. Clamando aos Orixás que me deem o alento mor tão desejado de se sentir em paz, mas esse estado me é fugidio por demais. Escorrega sempre pelas minhas mãos, ou, como no caso, pela minha língua. Esse nó é escroto e demasiado, mas não consigo sair dele, ou ele não consegue sair de mim. Versos agressivos me vazam e eu não tenho coragem sequer de os transpor agora. Dá medo lidar com o medo. Ele berra por demais de quando em vez, agride, soca e faz cócegas com o corpo amarrado. É risonho esse meu estado, risível, risossonho, mas é o meu estado e sair dele é um trabalho dos diabos. Eu podia fazer mil coisas, mas o apelo por fazer nada é maior, talvez seja isso que o meu corpo esteja me falando: faz nada, por favor. Minhas costas doem. Desde o meio de 2016 venho num estado maluco de fazer, de correr, de executar. Primeiro foi o emprego, depois o fim do casamento, depois a ânsia por mudar de casa, sempre fazendo. Houve só um momento em que não fiz, em que fiquei com ela simplesmente não fazendo e acho que isso que foi bom e que me atraiu tanto. Mas daí vida vem, resoluções tem que ser tomadas, se descobrir, se encontrar, fazer terapia, desbravar matas selvagens e no fim esbarrei com um lugar louco e encoberto, não sabia sequer como agir com as palavras, tanto é que pouco escrevi esse ano. Aprisionado num rolê de se sacar. E o pior é que talvez não tenha sacado porra nenhuma, afinal, cá estou, dez de janeiro de 2018, com uma coisa densa no meio, como nos idos de 1998. Igual que nem.
3942. acalma coração
nada mais há de se esperar a não ser o ar
o céu firme como azul
nas têmporas temperam os olhos
nuvens espraiadas
a cuca infusa n’água aerada
nada mais há que se esperar
como os elefantes negros enluados
as sombras mortas viventes
das pegadas dos elefantes
aquele uivo na esquina dos anos
se for embora sem esperar
nada mais há que se esperar a não ser o ar de se espraiar
até tocar os uivos e os elefantes
que se espraiam dentro
da lua que se espraia dentro de si
diluído como o azul
morada de lobos e sombras
essa espera que no tengo mas
3941.
todo dia eu te deixo ir
e nesse eu te sinto mais ao meu lado
todo dia se deixa partir
e sempre nesse é o agora
onde pulsa o amor
3940. dispraxipata
ajudo você a perder a coordenação
o prumo e a orientação
derrubar tudo
com a língua
3939.
ele escovava os dentes
com cerveja num mês
de maio qualquer
esfolava os pés nas
britas silenciava a
visão suicidado pois não
3938. despertar d’alma
só quem sabe onde dormem
os carrinhos de supermercado
customizados para balas
e águas e doces e salgados
e cervas e refris
há de saber para onde
ir quando acabar a luz
e o sol manter tudo acordado
3937.
guardei teu nome para
depois de amanhã
quem sabe um dia
seus passos se silenciem
pelo corredor e eu
possa dormir mais
que três horas numa
noite e seu pulso
não se sinta nem
aqui nem no quarto sem
nenhuma decoração
ou decore um mural
com frases para se
decorar no topo dos
sentidos: “a lua sussurra
o eco do silêncio”
“qual o barulho da terra
girando?” “de que lado
de dentro vive o sol?”
“quantos vazios se
orientam pelo
coração do universo?”
“a morte existe no
azimute de marte”
“vênus desfibrilou a
garganta de júpiter”
“viveremos lençóis”
“violentar o nada é
auto-expiação”
guardei teu medo
para depois de amanhã
e o vivi hoje
aroma de dama da
noite na segunda
aurora
não esperei,
3936.
cármica rodoviária
fluidez asfáltica
parasitária
carne exposta vísceras
e veias abertas
fratura óssea
a rodoviária
num dia morto
a vida urra
na rodoviária
uma dor a cada tapa
semântica do medo
dois dedos de jurubeba
perdida
alguém está perdido
pedidos
faca amolada
o ônibus vaza
a fila some
a lokura aflige
e não tomba
tromba os parceria
os loki
3935.
as filas se formam
não sei onde olho
onde moro
moro nas filas
que se formam
nas faces que formam
as filas
que me formam
moro
onde olho
não sei
onde moro
nas filas que folham
nas folhas que
não sei onde
moro
nas formas que
não sei
moro
as firmas que
não foram
as folhas que
não olho
molho
onde moro
não sei
3934.
os percursos esquálidos
das morais binárias
inflados
inflamados
como doença, que doença é, sentença em demasia
3933.
não foi ato falho
foi premeditado
e ainda que não
houvesse crime
houve culpa
sabotagem interna
3932.
o egoísmo dela
o que eu queria ser
sua indiferença
minha flecha
tudo o que lhe depositei
da paixão que havia em mim:
espelho estilhaçado
só vi o fino pó
voltando a ser areia
fragmento carreado
em meio a água e sal
amei-a
meia
a projeção dos meus medos
3931.
você vinha
eu ia
frente a frente
você virou pra esquerda
eu virei pra esquerda
ninguém se encontrou
foi lindo
3930.
supunha que seria comovente
mas como todo ser semovente
pouco contemplável muito complacente
viveu até o fim aprisionando as lágrimas
por dentro era barragem não rio corrente
por debaixo um tanto pântano
por de fora passando rente
brejo de lama perene
talvez fosse a nascente
3929. admirador de fissuras
essa é a história do admirador de fissuras. buracos. rasgos. vãos. daqueles seres que futucam ferida. arrancam casquinhas. passam a unha. até fissura abrir. um sujeito desses nasceu em qualquer dia e viveu qualquer vida. mas o que lhe conferiu a diferença é apenas e tão somente o ato mágico de observar as fissuras. admirá-las. as frestas também lhe encantam. qualquer veio por onde se aviste uma parte. um pedaço. um enlace. não o todo. a forma. silhueta. quando imerso na totalidade de dentro da fissura tudo o incomoda. causa pasmo. aflição. o quase é mais poético. mais humano. mais saboroso. mas o admirador de fissuras morreu um dia. apenas e tão somente. nada mais. até o fim. observando fissuras.
3928.
esse há de ser um poema bonito
uma implosão concreto esfacelado
poeira fumaça blocos
estado de alerta
estado de alerta
isolamento da área
perigo de alta combustão
chamas labaredas e a vontade
soterrada
porque tudo é triste no meio do eito dos dias de chuva
tudo é belo
a calma é só um ponto médio
entre o tudo desabar e o desabado
lindo
3927. masô
a ilusão saboreia o sucesso
o juiz brinda o avanço
todos parecem comemorar
a destruição a dilaceração
amanhã há de chicotear-se
a dor da pele transfigurando-se vida
essa que a parte de dentro lhe surrupiou
e tudo é dentro
vida
quista
3926.
ela olhava com atenção sua angústia
uma angústia lapuda
uma lapa de angústia
uma lapada
gostaria de lhe aplicar eletrochoques
até a agulha do discernimento
se enfiar na medula óssea do não querer
um budismo carnívoro assomava o corpo dele
ela olhava
alicates nas unhas pensava nas bolas
adestrar e admoestar-lhe as estruturas
nirvana em fúria
sua mente babava
3925. a cultura me fodeu
escolho a falta. o mundo transita em ser mais um merda. é o trânsito do fim de novembro. a lua entrando lá. transa. imaginária transa. afogar-se num mar de bucetas. num mar de cus. num mar de paus. a falta. eterna falta. escolhe-se o medo. afogar-se apenas. talvez sejam os traslados. trans. atravessar a fronteira do avesso para chegar de novo a si. a culpa já se instala. quantos sonhos? a custa de que? o amor quando chega desalinha o karma. os chakras. os xakras. sem chá. rodopio de estações. ela já faz falta. poucas horas. a pira há de ser longa. postais sem selo. cartas anônimas para mim mesmo. mais um merda no mundo transitando. é o inferno astral avesso. o paraíso terrenal instalado. um mar de gozos ilusórios. um olho que não para. o choque do futuro visto nas imagens da segunda infância. a cultura me fodeu.
3924.
nada se ouve
a pia a escova a moto
nada se houve
minha respiração a pira a escora o morto
nada se ouve
o mar a milhas ainda agora seu sorriso
nada se houve
como esse fato de agora não se estar bem
nada se ouve
se eu choro é o paralelo dos mundos
nada se houve
você agora aqui onde há
3923.
de manhã olhava o dia
como se fosse possível ostentar
a vida a ser erguida junto ao coração
envolto em sangue mas com o aroma vivo da exasperação
de noite olhava o umbigo
como se a esofagite fosse sair pelo buraco da barriga
e desaguar caudalosamente ventre afora
desmerecendo o odor de morte que apodrecia as entranhas em consternação
3922.
sombras
a mente escura
cem mil decibéis de negrume
sobras
a alma negra
mil graus centígrados de trevas
cercas
o espírito claro
o gosto da luz pelas papilas
arame farpado
ferro grilhões
farpas na língua e nos tímpanos e nos poros
arde ensurdece sangra
toda luz gera trevas
e se movem dentro delas
olhos em tato pelos vãos da claridade
o segredo da sua seiva e saliva
o que você não supôs e suprimiu
sombras
sobras
teu rastro mais secreto
3921.
quando o fio do carregador merecia ser atentamente observado. e um interesse desavisado pousava sobre os seres que sangram. do alto. décimo andar. a queda é alta. enrola-se em fios até a descida. nuvens baixas carregadas. dentro do peito. chovia fino. dentro do peito. as alterações emocionais carregadas pelos fios. elementais de água que sangram. um salto alto. baque seco na cama. imprevisões. o peito é formado por imprevisões. parco interesse. desinteresse. fios de carregadores. décimo andar em taguatinga. nada além de ceilândia e samambaia. fios e mais fios distribuindo a diluição. chove torrentes dentro dos fios. dentro do peito. décimo andar. a loucura caminha par e passo. avançado.
3920.
quando a boca da mão
perde o prumo
e até o sonho se cala
é tempo de se consternar
com a merda
e de dar vazão ao pulso
3919.
as horas seriam dadas ao calor
como se desencostar de tudo
fosse mais que necessidade
fosse apelo para denudar-se
mas contrariando as expectativas
havia uma harpa e um xilofone
sem frio ou formas mas volume tangente
o verde começava diáfano
eu queria olhar mas o calor desprendia
descolei na pressão leve
quente subi
a comoção de qualquer frio
me levaria inevitavelmente
a derreter
mas o som que vibravava
solidificava tudo
feito estátua feito fonte
mármore bem polido
pelado
3918.
você me abre para mim
e mesmo dentro eu te vejo
prisma tu minha luz
se abre em frêmito
refletimos
nos vemos
3917.
tua pele pluma
meus pelos
e planarmos
para além
apelos
3916. área de proteção
o mote é o mato
o mínimo espaço
guardado da glosa sã
3915.
era uma dor que começava na junção
do indicador com a mão
acho que isso se chama articulação,
a parte, não a dor
ou talvez a dor também fosse
articulada
ali começava e se irradiava
de dentro da parte esquerda
da senda canhota
quando a dor pulsava era melodia
intento e instinto
de vazar ferrugem
dor de deus
antes de decepar,
o dedo, não a dor,
acariciei-a por alguns segundos
e ela passou
férrea
cortei dedo fora
o sangue ferruginoso escorreu
a dor era agora etérea e no todo
e do dedo nasceu mais um deus
3914.
foi lá na lombrada
dos malucos
das doidas
já que não era quebrada
ao passo que tudo derretia
da sorte que dali
salvador não se via
caia caos kaya
cascalha de amaciar dureza
bem lá onde perdi um dedo
e encontrei uma mão
tudo saudoso como se não houvesse hoje
só há