3913. boiadeiro

ainda me lembro das manhãs molhadas
prontas ao resfolego do sol em manto orvalhado
se dar ao carpir ao cergir ao bater ao cavar

o barulho do sol na pele morena vermelha índia da terra
com seus regos verdes de sangue d’água
e seus pelos verdes de copas e pastos
tudo refugo da chuva brava que se abria dentro da noite lenta

e um frio invernal brumoso de tanta umidade
lesma caracol visgo de espuma
de bicho no toco do pau queimado
agora que nem fogo pegava

ainda me lembro que era depois da seca
a manhã de café feito para martelar os pregos
da vida nos mourões das cercas a serem enfincados

gosto de nuvem cinza planando baixando por cima
do chapadão com a quentura da infusão negra
a percolar gargantas como a água a entranhar
terras e ventres e vãos e peitos
vazios de angústias e cheios do próprio conteúdo da vida

ainda me lembro desses dias que se iniciavam assim
feito espera e esperança no batidão do sol subindo
e da água espatifando que nem ela própria só consegue

o buraco no chão se enchia d’água
um boi pastava ao lado
e eu bolava um porronco numa folha de embrulho
amolava os dentes no papel queimado
para sorrir melhor ao que viria

naquele dia que ainda lembro

3910.

não se assusta
o próximo passo é a novela
não se assusta
o próximo passo é a conduta
a sua
vai sem medo
só medo
gosta desgosta
sem desgosto
há um lindo esgoto
por onde nossos barcos hão de navegar

não se assusta
nada te remove
do lamaçal
você anda
não se assusta
não repudia faz uma nota um artigo
textão alguns caracteres
um dístico meme
reclama da intolerância
declama um poema                   esse
tolera
um tolete na sua goela

não se assusta
é a democracia
que demoniza
não se assusta
amanhã seu pescoço na forca
a forma emoldurada
cem mil poemas métricos
esperançosas três linhas
sobre ela na sua garganta

não se assusta
é só um sussurro
nada grita berra
não se assusta
não se assusta
isso é um eco
fantasia póstuma
textão
amanhã assassinaram sua liberdade
hoje
tudo enclausurado

3909. eixo mono-mental

mexerica na redinha
jeep renegade
saco preto dez real
hyundai ix36 (?)
jk em seu mausoléu
num giro sinfônico
de metas e metas

maluco explodindo
os cofre pega nada
o cano na boca
renegado
o cano do escape
renegade
catalizadores de consciência ambiental
quatro por quatro
três ponto oito
quarenta e quatro
coronha na cabeça
milicos descamuflados
bunda exposta na janela
e uma preguiça intertropical

o sol esquenta a mente
em labaredas de sinais

                   infernais

3908.

há uma lição
ainda a ser compreendida
nas imagens borradas
instaladas atrás das transversais

três gerações atrás
pra mais
no lusco-fusco das
memórias não apreendidas
                   tá no corpo
                   honra & desonra
                   catarse de movimento
                   incompreensivelmente
                   voluntários à vontade
                   dos músculos dos ossos
                   dos nervos

há essa lição que são várias
despercebidas porque
desensinadas
                   ninguém aprendeu
                   não houve silêncio
                   dentro do fogo
                   dentro da’scuridão
                   vozes ritmadamente
                   guiando os movimentos
                   dos corpos a compreenderem
                   os enredos dos seus
                   motivos de fluírem
                   dentro do espaço
                   tal e qual são

essa lição é dessa terra
subsolo e sub-versa
reverso da voz temerária
atemporal da pátria
                   é teu corpo quem fala
                   células de tatarás

a desobediência se viu
desde as auroras transatlânticas
até os ocasos pacíficos
                   corporificada
a cordialidade foi forjada
obediência servil
letra por letra nas páginas
oficiais
                   enfiada

3906. folha da física

folha da física
esculpe teu percurso entre
o galho e o chão
imagens absurdas
escondidas no fim do céu
no começo das abóbodas
               o fractal               os raios que te alimentam
esculpe os contornos do vento
               no espaço               grave de ondas
esculpe o pó que desgoverna
               o arfar seco
entre as ranhuras dos
                              lábios sangrentos
nos lábios sangrentos                o teor
                                             quase a tocar
a futura folha da
física

3905.

nos enredos redes ramos ramas rumos
d’água d’ar d’areia d’alma
dançamos enredadas
enlaçados
espalhadas por entre
               ao nos entrarmos

baby
sem rédeas arreios esporas
e na rede nos raiamos
barcos beira rio
nossos remos               respiração

3904. frankenstein astral

como recompor as partes
até se ajustarem?

fast bem estar colaborativo
start up down
aberto o capital
rumo ao dharma

a receita é fácil
água morna com limão
e linhaça
três vezes por dia
uma fatia de mamão
para meditar antes do sono

desapega do dinheiro
passa no crédito
debita a transcendência

ioga aos sábados
maconha de boa qualidade
aos domingos nos parques

é só desoprimir os músculos
terapia transpersonal
personal líder coach
e massagem plúmica

argila salgada vietnamita

doe desdoa

diz doo ainda que dor

dietas macro-solares

geofagia

relacionamentos orgânicos
com múltiplas afeições
instantâneas

monogamia iridescente

uma vida sem riscos

arriscar e viajar pelo mundo
jogar tudo fora
ao som do new age

capitaliza o momento
terreiro high tech
jezuis loiro saradão vegano

um teco de pó de palma
pirlimpimpim

tudo colado
super bonder espiritual

                     frankastral

3901. nu

ainda que a nudez ataque tua face
se desnuda
tira as vestes do medo do fluxo
entra no turbilhão

se tem base, teus pés tem chão
se acredita, não importam os rios, os riscos, os rasgos
tampouco a lama, o movediço

o medo pertence a quem não conhece sua própria nudez
e só se sabe em sua mudez
agressiva por detrás das luzes azuis

se perde as raízes por qualquer nudez
é porque já se apartou da seiva
do solo

eu me desgarrei
meus rizomas se entranham na esfera
sorvo o grosso de todas as terras

                        nu

3900.

a manha é de fuder
toda a indexação de conteúdo
a manha é de fuder
toda a indexação de conteúdo
a manha é de fuder
toda a indexação de conteúdo

amanhã há de fuder
todo o algorítimo do mundo

toda a moral binária sectária
será revertida em bits ao acaso
tudo será revertido em bits ao acaso

todas as correlações serão recorrelacionadas
todas as correlações serão recorrelacionadas
todas as relações serão recorrelacinadas
todas as correções serão erradas

todas as imagens de jesus serão redirecionadas
para marcus de feliz se ânus
todas as imagens de jesus serão redirecionadas
para marcus de feliz se ânus

todo plúmbico será nuvênico
tudo plúmbico será nuvênico
tudo nuvênico desabará

todo o armazenamento será descarregado
estratos de estratos de estratos
carregados de partículas destratadas
descarreadas                   diz farsadas

3898. Demonstração da coisa viva

O que nela mora
só nela mora
ela
a coisa viva?

Por que só nela se assenta
nela
só nela
ela
a coisa viva?

Por que não nas pedras?

Por que só nela
ela
mora nela
a coisa viva?

O que é a coisa viva?

Que reside nela
só nela
ela
a coisa viva?

O que é a coisa viva?

O que é a coisa viva que insiste?

O que é o alinhamento egoico
entre eu e a coisa
que nela
só nela
ela
a coisa viva reside?

O que é o alinhamento especista
que me divide
que nos divide
entre a coisa viva
a coisa que nela
mora ela
a coisa viva
e as que nela
não nelas
não reside ela
a coisa viva?

A coisa viva mora no sol
ainda que vida lá
nela
não resida

A coisa viva mora na terra
vive na terra
entranha a terra
dentro da terra
é ela a própria terra
que nela reside ela
e mora nela
ela
a coisa viva

A coisa viva vive

A coisa viva inclassifica

A coisa viva pulsa vai conecta
o que
tudo o que nela abarca
e tudo o que nela abarca
é vida

é vivo

E porque ainda insistimos
nessa espasmódica
modalidade de pensar
de pensar um mundo uno
com apenas partes que vivem

se em toda parte mora ela
nela
mora ela
ela
a coisa viva

3895. costura sutura

delinear o carinho
dentro da escuridão
desenhar o lábio linho
tato boca língua mão

tecido tez
mil fios que atam
essas partes que fogem

disparada disparate
manto de insensatez
desgoverno       as linhas

                   emaranham

                   os pontos      unem

3894.

paleta de tons eólicos
redemoinhos sacis terras pós
cores de vento impermanentes

pintar é um ato romântico
fuligem no peito câncer fumo
catalisadores que disfarçam a inspiração

pintar gera um estado de tuberculose
no plexo solar
pintar desgasta a superfície
erosão sedimento tons vermelhos
e um sol abrasador

sinusite tuberculosa
sensitividade da pintura mediúnica

pintar é um ato intransigente
impulso do pincel paleta tons de sangue
 

                   cada imagem
                           rodopia ao vento
                   cada textura

3888. Aldebarã

do nascente e do céu
donde sou vou e irei

quem segue
aquele que segue
o olho do touro
o aleph a própria volta

segue as plêiades
as primeiras do horizonte

o perseguidor
o mago
o brilho laranja resquício do sol na noite escura

do nascente e do céu
donde sou vou e irei

                  papa igbo que veio do oriente
                  acende a candeia no céu
                  donde sou vou e irei

S’ ‘eus

É como se eu tivesse essas contas a resolver e seria necessário apagar, zerar, saldar, todas as contas do passado. Não por ti, para ti, mas por mim, para que pudesse ser por ti, para ti. Se fosse em outro tempo… diriam, se tivéssemos nos encontrado lá atrás… dirias, e se for de outra vida? dizíamos. O certo é que fora nessa, não noutra. A via una desse momento presente, meu agora seu – ora direis: nosso, ouvir plurais, certo tens todo o senso e razão e sensibilidade –, sim, como todo eu se forma noutro – seu – s’ mais eu, designa o plural prévio preposto, distintivo da real posse – doutra – do si que se faz noutro – noutra – – – e como me faço agora assim: transcorrimento do passado até o agora em que me encontro junto a ti e penso em zerar o passado – me zerar? – para que me espraie e com teu espelho, refaça, reágua, ressaca até vazar. Mas a coisa se constrói na ida, na via, una, essa, nossa, o resto é medo, como o passado – medo. Cada bifurcação nos conduz à nossa via, a vida. Cada encruzilhada, uma esfera, retorna a si e nos fazemos, a ti, a mim, nós. Cada encruzilhada um nó nos caminhos – e quem não irá dizer que teus raios se fizeram foi no meu céu, ou que meu branco foi só pra ornar tua luz brilhante e que o firmamento se uniu ao vento para ser, não parecer? quem? pois que andei pelos caminhos abertos para ti e abri os braços para ti e até os próprios caminhos – eu digo, eu posso – eu que já sou um eu seu, que sou – s’ mais ou, designa a alteridade incontida a se expressar na dúvida, plural, prévia, preposta – – – – para ti que me faz, como nos fazemos. E a coisa se constrói no caminhar, e como caminhamos! As pistas de antes e as léguas desde o encontro. Por isso nos fazemos e nos compomos, eula que tume. Não, não são muletas, apoios, escoras, afinal, dialogamos já deitadas, horizonte de igualdade nos termos da voz, nos apelos dos olhos, na vibração da carne, uma hora por cima, outra hora por baixo, ou de lado, ou de quatro, ou de beira, ou de mãos. E toda hora de afagos, carícias, primícias, delícias e dengos e toda sorte de cafuné, da cabeça aos pentelhos vão fazendo e compondo. E certo que devem dizer: afoito, a foz é definida: fim. E’u só diria: fodam-se! Dos meus figos, filos, filhos, foices, flores, falo ‘, eu. Mas eu sou eu e sou outros e essa porra de tantos intermédios. Mas o caso é que agora eu sou esse que daí também sai – s’ mais ai, designa a dor locacional desentranhada e transposta em gozo, disruptivo de onde para o longe daqui distintivamente plural, previamente preposto – e que por aqui também fica no sem foco do diluído da fumaça do teu fumo se embrenhando nas beiras da luz da manhã ou no amontoado da repetição da luz – da rosa – no avolumado das cortinas que desenham o dia na noite profunda. Esse eu que é passado e que olha atrás e treme e anseia zerar é o eu moral que se escanteia pelas beiras, se esquarteja em corte nobres e carne de segunda, fora o osso, o sebo e a banha – e o sangue e os miúdos para o alimento dos caminhos – e se esvai até esse eu agora, forjado nesses ‘s todos e em ti, nesse agora que me esparrama e espelha e espalha e me avessa, das sombras à luz, sentidos sonantes para ser-se em si e poder ser por mim e, também, por ti, para ti, pronto, a cada passo, carregado de passado, para sê-lo e selar-se definitivamente em construção, caminhada, sem culpas, nem constas, nem contas, nem pagas, nem nada.

3883.

o problema são as cracias
as arquias
tudo crarquicias
as propostas crarquicias
as eleições crarquicias
as promessas duplamente crarquicias
os templos igrejas legiões avidamente crarquicias
o amor da internet vídeo-cassete os carro loko crackcrarquicia
o paraíso perdido crarquicia
o éden os restos da arca e a aliança e o cálice cricrarquicia
cracias arquias esses são os problemas

posto que há um problema
sim lho há

não sinto os ismos como o defeito mor
o problema
eles são humanos apenas o tanto
mesmo os que se-lhe vão ao infinito do fim
são humanos
deuses deusas o além
humanos humanas homo
são desejos e o desejo de ser não desejo
perfeição
pode se dar no fáscio do turvo medo
no nazi do temor de temer
na igualdade da desigualdade de quem se acha livre da história
ou na igualdade de quem se meteu na história e a tem por fim
mas são baba humana e gozo e sêmen e sangue
anseio alcance

não são como as cracias as arquias
as arquiteturas neutras que manifestam o poder
como se não fossem ideias desejos mas fatos
razoáveis
as mona as demo as anar as pluto as buro todas
fingindo um ar de natureza
de razão
proporção áurea
ventre-livre
proteção acolhida LEI
e quem as protege como se escondem
capas e mais capas e ideogramas labirínticos labarínticos
pórticos e portais e vestais vendadas
ascensão das castas intocáveis como se naturais
cartas marcadas tarot nefelibata do momento das nuvens de veneno
LEI da natureza intocável

as cracias
as arquias
as crarquicias
travestidas de verdade
monolíticas sobre a imensidão da vida bípede
o fim da festa mais demorado
louros glórias pódios champanha
tudo cracias tudo arquias
tua mente e teu fim
teu medo e teu coma
cracia
arquia
crarquicia

em toda estrutura dada mora o culto a um ego
atemporal diacrônico e sem cronos
despersonificado no horizonte da história
para quem a vê e crê que ela exista
muito além de cinco mil anos atrás
muito além de cem mil anos atrás

mas houve sim um momento sem cracias arquias crarquicias
houve um além antes da natureza dada
definitiva

houve o que hemos de entender

 
                                                             ainda

3882.

sublimação do éden
meu desejo se compondo
nos seus dedos

um quadro matizes de rosa
sobre um fundo azul de verde de mar
seus dedos à mostra

descomprimimos os poros
fendas de areia e sal
o sol dos seus dedos

eu revia a cor textura corpo
nunca vista       dourava
os seus dedos sabiam o ouro

meu corpo hirto amolecia
cem mil léguas submarinas de ar
conduzido por seus dedos

supunha a raiz do sol casa das cores
quentura das formas
ainda que o frio tremesse seus dedos

senti certo a terna tenra capacidade
acolhida e lançamento       solar
do paraíso dos seus dedos

                   meu corpo em coro
                   me dizia

                   na língua dos seus dedos

3881.

a poesia como ato de guerra
como arrebatamento de vontades
como a luta contra o apostilamento dos desejos
como a consubstanciação da brutalidade onírica

a firmeza da modularidade das palavras
balas
a inteireza da desestruturação racional
mísseis
a força dos encantamentos ébrios
minas

bombas granadas morteiros
a poesia da guerra das palavras
lançadas como num front
trincheiras escudos barreiras
romper os peitos os crânios

matar

a poesia que fere
a crescente do poema atômico
os atos impensados os códigos
a blindagem
senhas sanhas insanas

a poesia como ato de guerra
lâminas machados espadas estopins
estilhaçando o enquadramento do mundo
que só pulsa
pulsa pulsa pulsa mais
a covardia da guerra plena
contra quem sem armas

                 a não ser suas mãos
                 e cabeças
                 e couraças

                 coração cutelo
                 pouco ar

                 poesia

3880. sinastria

saca a saga selvática
solidão só solidão
sorumbática
sapos saltando sobre
o sifão semiaberto
sussurrante
sótão aos solavancos
segundos simplórios serenados
solidão silenciada
seguindo sorrateira
soerguendo secas
sempre sempre significadas
susto seita sectária
solitárias suavizadas
separações sistemáticas
só a senda sinistra
ser sendo são
soluços silvos saques
sinistros

saí saindo
saí saindo

sal sobre a suave superfície
sintética
sins si sínteses
s.o.s.
só segui seus sons
singularidades simpáticas
séculos sabendo-te
sem se saber o sabor

segui seguindo
segui seguindo

segui as sincronias
sorri seu sorriso
saudei seu sol
senti seu ser soterrando
solidões
saga sedentarizada
sede saciada

                  sorvi sua sinestesia
                  servi-te seiva

3873.

toda tecnologia é mágica
assim como toda técnica é magia
e havia a planta toda dentro da flor
memória da forma
momento do conteúdo
repetição e única possibilidade
do mesmo jeito que
o aroma da beladona
na noite inebriava
a luz do poste que
ninguém ali
na praça
sabia como acontecia
nem o cheiro nem a luz
aqueles elétrons todos
sendo evocados desde
a cachoeira barrada
e ela tentou capturar o
momento que o aroma
da beladona se misturava
com a luz do poste
e o preto do céu
e ela invocaria sua ancestralidade
com aquela imagem
cinquenta caracteres sagrados
e três ícones profanos
magia concebida na
espontaneidade do instante
dentro de uma rede
jogada ao mar
vela acesa na praia

                  a memória do poste
                  no centro da praça

3872.

descargas elétricas de felicidade, como se eletrodos de endorfina se aglutinassem na espinha e se contornassem nas reentrâncias do pescoço e dos antebraços, friso despudorado dos apelos das línguas ou linguagens etéreas das mãos a quase tocar quase e toca e dispara as descargas carreadas de chapações elétricas que afetam o corpo

                  e o prazer gerando o suor eletricamente bem no meio da seca

3870.

já houve quem quisesse
preservar os sons dessa cidade
como se patrimônio os
caminhões rompendo o asfalto estatelado
ou se o papo preconcebido global
tias tios nas calçadas
fosse memória
a não ser implodida pelo tempo

tudo é memória a ser implodida pelo tempo
tudo é passável e permeável
tudo é som sucumbindo ao ar
tudo é possível e passível
tudo é passado a todo segundo
tudo é posse do fim
tudo é rompimento do futuro
tudo é presentemente preconcepção
tudo é calçamento asfáltico no globo
tudo é memória
tudo é implosição-momento

                 desde antes de tudo que não era som nem silêncio e era já

                 grande-explosição

Genes is

Nasci numa manhã cinza de julho, com o frio balançando os meus longos cabelos lisos da cor de mel puro de flor da mata virgem. Nasci frio e rosa, com tranças que mediam seis metros cada uma das cinco e da cor de mel puro. Nasci com a cabeça em fogo brando numa manhã pouco rosa e cinza com o frio a balançar minhas cinco tranças de seis metros cada. Minha cabeça reduzia a três.

Nasci expelido do umbigo do meu pai. Minha mãe que me pusera lá. Capivara-cavala-marinha-do-rio. Pai-potro-das-praias. Nasci com dois metros a mais que minhas tranças e com espadas. Meu corpo se reduzia ao infinito em pé.

Meu pai perguntou-me enquanto eu dormia se queria mamar. Sonhei um vasto mar de leite de coco e um homem baixinho e carrancudo de terno, camisa e gravata pretos me pedia dinheiro para mamar nas pedras que saíam da areia e jorravam leite de coco. Cortei a cabeça dele com uma espada que tinha no bolso e o joguei no mar de leite de coco e o leite de coco ficou verde-brejo-vereda e eu vi sua cabeça falar dinheiro, dinheiro.

Acordei com fome dentro de outro sonho e minha mãe costurava minhas tranças que eram cinco e mediam seis metros cada com uma linha grossa e branca. E meu cabelo da cor de mel puro ficou branco. E minha pele que cobria o infinito em pé do meu corpo ficou branca e tudo ficou branco. E minha mãe que costurava os fios brancos no meu branco todo era azul-vidro-leitoso e transparente, espelhada. Minha mãe-peixa-gente.

Quando acordei nesse sonho já não era mais sonho, era só continuação dos dois no céu azul bem limpo que já não era mais de julho, mas de um tempo que viria ainda, como num sonho. Minha cabeça pesava quatrocentos e setenta e um milhos brancos. Minha cabeça reduzia a três. Era uma cabeça com três tranças brancas e meu corpo era branco e minhas costas cortavam pontos vermelhos como fogo em brasa de fogueiras de junho e o tempo que viria era esse, o próximo junho antes do frio que viria.

Minha mãe era minha avó e eram uma peixa-voadora que dava melado de beterraba com mel e eu comia bem devagar para não sujar meu corpo branco e no topo da minha moleira branca, círculos brancos de giz branco foram pintados por meu pai-potro-alado-do-firmamento que morava dentro de um caracol. E minha cabeça-moleira já não tinha mais tranças, era lisa e branca e circular como a lua cheia no meio da noite de junho que viria quando o sol se bastasse mais uma vez no mesmo ponto à mesma altura a iluminar minha cabeça e a lua no que viria a ser. Aquele momento em que estava.

E eu nasci de novo ali. Debaixo de um pé de boldo, os pés limpos de azul-verde do rio que cai no mar cheio de peixas e peixes que viram gente quando pulam pra fora dele pra ver o que tem no além do líquido do mundo, as costas em brasa com pingos cinco em cinco de um vermelho bem ajustados no meio da massa branca de tabatinga que meu corpo moldava.

Nasci de novo numa tarde cinza de julho com o vento frio balançando minha careca e a linha do céu pegando fogo enquanto a noite, lençol negro, cobria a terra com um alento gelado e calmo. Em paz.