eu rés, piro
paro:
eu respiro
eu respiro.
Meu nome é Guilherme, poeta , professor de geografia da Secretaria de Educação-DF e mestre em geografia (UnB). Tive AVC em maio de 2020 (isquêmico) não consigo falar ainda. Tenho apraxia e afasia. Apraxia é um distúrbio neurológico motor da fala, resultante de um deficit na consistência e precisão dos movimentos necessários à fala. Afasia é uma alteração na linguagem causada por lesão neurológica.
eu rés, piro
paro:
eu respiro
eu respiro.
“Não posso terminar com o Júlio
pra ficar com você, Matheus”
– eu supunha que era assim que se escrevia –
“Eu tô grávida do Júlio…”
Enquanto esperava o temporal se afastar
para o rumo daquela casa que já fora a minha,
sentado à deriva na estação do metrô
rumo a mais um lar temporário,
escutava a moça falando ao celular.
Isso sim era um problema.
Quase toda chuva me deprime
e isso não é de hoje
e quase tudo me toma em lentidão tanta
que a pressa se chama caravela.
Acho que a chuva passou,
ainda escuto os murmúrios abafados
da moça ao lado no celular.
A vida se descortina ampla.
Eu não tenho problemas, eu sou um.
O celular dela vai descarregar,
isso é um problema.
E nós dois choramos.
Tenho vontade de falar, mas tudo deveria ter sido dito antes, naquele não momento, naquele lapso que quase existiu. E como o tempo todo foi perdido para que coisas sejam ditas, não falo. Como sempre fiz. Por não falar é que imagino a cena, era como se você estivesse ali, mas não ali, como sempre, talvez dentro da sua cabeça, dentro de si, eu só inexistindo, sem saber onde por as mãos e a aparência de ser. Eu diria algo que não teria volume para mover o ar e voltaria tudo para a minha garganta e viraria nó. Você sairia para lá e eu me moveria como se tivesse matéria, até algum lugar e não teria dito, mais uma vez.
E agora tudo não será mais dito, como não foi.
Pego a memória e falho, o nó é cultivado a tempos, não é de agora, é de antes do não momento provavelmente. Já não choro, assim como não falo. A roupa de escamas e pelos e bestas e cascos e gosmas é o que visto. E urro, grito, berro. Assustador. Essa é a minha inexistência nesse momento, até que não existirei de fato, como senti não existir em mim ou em você. Mas não falei. Meus monstros serão sua memória, até não ter mais memória e só existir não momentos. E a gente não terá sido, assim como eu.
E nada será dito, amanhã.
os lentos verões as noites de frio
todo o contorno percorrido pelas mãos
as manhãs solitárias
eternas
não as de agora nem as de ontem nem as de antes
as minhas manhãs
o super-mercado a fila o chuchu
minha voz sendo ouvida pelo vento
uma animalidade bestial desejante
o não
e o sono
uma passionalidade amante
o sonho
construí grades de mentiras
frágeis como bolhas de sabão
construí grades de bolhas de sabão
os anos aconteceram juntos ao amor
e minha sinceridade crepuscular
só me permitiu ser amável
mas amor só acontecerá na noite
eterna
minha inteligibilidade beira o caos
mas o caos não ama não deseja
talvez eu seja um monstro
me lembro dos detalhes
eles não sairão da cabeça
só se ofuscarão com o crepúsculo
depois das miragens há de vir uma manhã
eu irei a super-mercados filas chuchu
o amor explodirá e eu virarei objetos
com histórias ouvidas pelo vento
na crepusculante manhã de amanhã
eterna solitária
grades de bolhas de terra
onde não mais acontecerei
não sou um monstro só um idiota
quando os pulsos e os olhos são um órgão só
são feitos de correntes marítimas
e letras e lágrimas e abissais
formam cada palavra que escorre
e esse apelo para que tudo se liquefaça
vermelho
perpassa translúcido tudo que quer existir
fora de si
o litoral retumba
o interior silva
o meu limite transtorna
no fim da serpente
prismática estendida
no céu brota o ouro
da cor de luas
quando os dois justos demônios
enfim se chocarem
machados de um gume só
a seiva brotará dos cogumelos
misturando sangue e terra
serão escombros no norte
pobre pânico no sul
e um planeta partido
o que nos une lusitanamente?
uma alta dose de rancor e racismo
além dessa língua desritmada
sorte temos nós, meridionais,
que pelo menos ganhamos cadência
ainda que em sangue forjada
era como se
nenhum ar se
movimentrasse
enquanto tudo
sufocarfava
e a vida se
vivia de revés
o tamanho do carro
é proporcional
ao tamanho da solidão
veja só o caminhoneiro
na estrada
e seu caminhão
mira o utilitário
do bacana
e a sua ostentação
observa a galera acumulada
solidão por solidão esbarrada
dentro do busão
o pior é que nem surdo eu tenho.
e o pior é que todo o resto, eu tenho.
rabo de arraia
e a cara no chão
mostra o norte
onde a paz perto do centro
é o mote
e a ladainha
quantas feras monstros quimeras
ainda sairão de mim?
flecha nuclear de fogo
nas setas dos meus querubins
contar os azulejos
ao invés de carneiros
uma hora eu deito
e me convenço
de que o sono não veio
há versos que ventam
por cima de devaneios que vazam
vislumbres metálicos
mais leves que discos voadores
e reais tanto enquanto
a mão esquerda mais leve
tem o peso mais denso
decepá-la, questão de tempo
há só uma solução fácil
para o coração volátil:
pará-lo
o silêncio desconhece as formas
inclemente se estende desde as partículas
até o mar de ganimedes
rompe relevos
erode
esculpe
o silêncio é agente
impaciente
tudo não se move
o eixo a órbita
meu pulso conhece a semelhança
e a transgressão dos meus dedos
junto ao zunido da geladeira
na altura que chega a noite
nada atravessa a fenda
só o magenta da manhã
ora direis ouvir folhas
estalidos do crepúsculo de despencar da haste
ao peso delicado do passo leve pela trilha
como se elas nunca tivessem ornado as flores
apenas secas passagens pela terra
denunciando caminhadas
o céu se apresenta
como se ar invadisse
não é horizonte
é céu solto
a terra falha
fina camada no fogo
o céu cinza
adentra
meu peito
morro
dentro endurece o fogo
em cinza
agora há traços
antes eram riscos
tanto que arriscávamos
formas livres no papel sulfite
agora esses traços
ligando pontos disformes
longínquos
a menor distância entre eles
apenas traços
esmaecidos
no branco do papel
deixou um rastro de pó
areia fina tuas marcas
o teu lado na cama espraia
sem mar
diante de toda a vastidão
é só você
e sua voz
inaudível
enquanto há vida
vá
ainda que da cor da voz
eram como são
tempos alquímicos e rudes
magos de sombras
bruxas abrasivas
e uma magia tão racional
que até o caos sangrava
há mistérios que o coração não aponta
como a forma das folhas
que guardam sempre no íntimo a mesma composição
há uma forma emanando a estrutura
como no peito aberto ao mundo
que se quis dizer estômago
e há as pétalas como as esferas planetárias
que fingem beleza
Mais um ano posto. Nem sei mais se vale a pena contá-los. A velocidade domina tudo. Se não a velocidade, provavelmente a falta de sentido com o cotidiano é o que impera. A falta de sentido observada com a sucessão de imagens de uma tecitura tão flácida, que parecem esmaecer a qualquer toque de brisa, perdidas num frágil calabouço em que nada precisa estar guardado na memória. Como se nada tivessem sido, como se a existência fosse apenas um aparente modo de prosseguir. Sem sentido algum.
Há um estado de sempre ir, chamado presente, que se perdia entre um horizonte de expectativas e um espaço de experiências. Mas isso era antigamente, agora é só isso: ir. E o mundo ia, mas quando o choque se deu, foi que houve o entendimento de que o mundo foi. E o choque não foi de um meteorito, um tremor, uma explosão, foi um espasmo de letargia antes da morte das funções vitais. Sem expectativas.
Prenúncios, presságios, profecias se fizeram, houve até mesmo quem analisasse cientificamente a que termo vindouro chegaríamos. E eis que, finalmente, chegamos. Talvez nunca nos apercebemos de que esse estado viria assim: vindo. E conosco dentro. Mas cá estamos, diletantemente orgásticos ou arruinadamente angustiadas, indo. Sem direção alguma.
Esses dias li que a esperança é um ato político. Esses dias li tanta coisa e há tanta política. Esses dias, que vão.
Desculpa-me, meu pai
mas é muito difícil
entender os seu sinais
meu peito nasceu na
ignorância
e continua a desaprender
e a cada lição
compreende menos
Falo de peito, meu pai,
porque a cabeça
funciona aos solavancos
e só vai, posto que não para
O peito não,
o peito para
e costuma querer parar
todo o resto
a todo instante
apenas por mania
de buscar não existir,
como naquele saudoso
tempo em que não existia,
o tempo de antes de mim
Perdoa-me, meu pai,
sem rancor,
mas o tempo
é de dor
Os ângulos da estação
as linhas se cruzando
se continuassem
encontrariam-se no infinito.
Os ângulos da estação
o sol despontado detrás da chuva
se continuasse
o dia dissolveria a água do céu.
Tudo é uma questão de manter:
a mente quieta e a espinha ereta e o coração.
Tranquilo.
dei pra ler o entulho
a disposição dos restos
o cascalho, a mamona, o monturo
o pneu criatório
o mato esgarçado
o escorpião, o casulo
na conjugação entrelaçada
o que principia, o que é,
o futuro
duas latas emborcadas
ao lado do concreto bruto
falava que nos fechamos
estagnadas para o fim contudo
e que a vida vazia seria
se não se acometesse o absurdo
intercedi e joguei as latas ao léu
uma em cima da lama
outra caiu num resto de muro
separação pouca
nada seria mais duro
mas foi no resto do guarda-chuva
apontado para a panela
que eu pude confirmar
nossa relação, já era
e minha alma ficou quieta
quando viu aquela flor amarela
me dizendo que outra
em sua vida já era certa
peguei o resto de papelão que achei
coloquei no meu carrinho
certa de que aquela noite
eu não voltava pra você
nem todo o sutil
premeditado do teu cinismo
há de decompor a doçura
das palavras
tampouco a eloquência racional
a falta de sangue
possuirá nossa língua
ao torto impronunciável
das mesóclises
me trago em pessoa
amada
todo dia
mas ninguém liga
tudo exaspera
nada espera
nesse dia de hoje
feito de um amanhã
que nunca explode
o vasto desterro
se anunciava
antes de ter forma
já variava entre
uma rua e um abismo
o vasto desterro
que se anunciava
em surdina constituído
enquanto sussurro
instituído conquanto
o urro não se desse
como enfim se deu
o vasto desterro era
só claridade
negrume sedento
cobrindo tudo
dentro do breu
o vasto desterro
que se deu
o vasto desterro
como conjugação
que não houvesse
entre meu e teu
o vasto desterro nosso
que se assucedeu
o segredo de toda
a beleza é fácil
é só não vê-la
sexta-feira é branca
não por oposição à negra
mas pela própria
substância negra
que a tudo compõe
a escala das minha palavras
afirma os meus estados
ou são miudezas
inversamente proporcionais?
quantas vezes reduzi
o que sinto no espaço real
do meu peito
àquelas quatro letras
juntadas num papel
como amor
romper o fardo
da liberdade
dada como amor
e aprisionada
não pela culatra
mas tangenciado
à francesa colonial
nosso fim
a fórceps
fuga e l’amour
aquela propaganda enganosa
até que morreu o que tínhamos
antes que a nossa morte nos separasse
se olhasse no fundo
de seus próprios olhos
veria
não são olhos de criança
são retos e ardilosos
são olhos que tocam
e invadem
não são olhos de conquistas
mas de ficções ordinárias
e raivosas
são olhos de corte
olhos como mãos
que arrancam e espremem
desacultura
antes que ser macho ao todo
te invada
e invada
atrás de onde a gente mora
cinza turvo ou sol
sempre
se arrasta a amplidão

estrago a pessoa
e desalmada
em três poesias
há um chamado do lado de lá
que diz
mar mar mar
há um ser errado no lado de cá
que encerrado no cerrado diz
mar mar mar
só não sei quem
ecoa quem
se fosse pra
escolher
uma nação
só se fosse
pelo som
o solo
o céu
a saudade
tudo isso
se é namorável
logo trocável
é o som o que
me fica e finca
cá nesses limites
e como todo som
hoje navega
meu ufanismo
é do mar
já quase não se acha
aquela forma longa
arredondada e curva
cada palavra
uma linha só
emaranhada
talvez apenas com infantes
a aprender o abecedário
que por força da
tradição delas
curvilíneas
não vislumbram modo vário
cada palavra ainda
é uma longa lenta
união
de letras fazendo sons
em significação
depois caos se acomete
e acontece o que acontece
enquadra-se em quadrados
e se ajusta às novas normas
outras formas
cada letra se desune
e de prever o aglutinado
é que se dá a soma
o que resta é só
letra de fôrma
foi quando passamos
a não dividir o sabonete
em menos de um ano
não dividíamos mais os segredos
tampouco os sonhos
era tudo por demais contaminável
a vida é só
um singelo desejo
de que no profundo
do que possa
baste sê-lo

amor por aqui?
só na parede ou na paçoca
o resto é lorota