3824.

“Não posso terminar com o Júlio
pra ficar com você, Matheus”
– eu supunha que era assim que se escrevia –
“Eu tô grávida do Júlio…”

Enquanto esperava o temporal se afastar
para o rumo daquela casa que já fora a minha,
sentado à deriva na estação do metrô
rumo a mais um lar temporário,
escutava a moça falando ao celular.

Isso sim era um problema.

Quase toda chuva me deprime
e isso não é de hoje
e quase tudo me toma em lentidão tanta
que a pressa se chama caravela.

Acho que a chuva passou,
ainda escuto os murmúrios abafados
da moça ao lado no celular.

A vida se descortina ampla.

Eu não tenho problemas, eu sou um.

O celular dela vai descarregar,
isso é um problema.

E nós dois choramos.

Houve, não se ouviu

Tenho vontade de falar, mas tudo deveria ter sido dito antes, naquele não momento, naquele lapso que quase existiu. E como o tempo todo foi perdido para que coisas sejam ditas, não falo. Como sempre fiz. Por não falar é que imagino a cena, era como se você estivesse ali, mas não ali, como sempre, talvez dentro da sua cabeça, dentro de si, eu só inexistindo, sem saber onde por as mãos e a aparência de ser. Eu diria algo que não teria volume para mover o ar e voltaria tudo para a minha garganta e viraria nó. Você sairia para lá e eu me moveria como se tivesse matéria, até algum lugar e não teria dito, mais uma vez.

E agora tudo não será mais dito, como não foi.

Pego a memória e falho, o nó é cultivado a tempos, não é de agora, é de antes do não momento provavelmente. Já não choro, assim como não falo. A roupa de escamas e pelos e bestas e cascos e gosmas é o que visto. E urro, grito, berro. Assustador. Essa é a minha inexistência nesse momento, até que não existirei de fato, como senti não existir em mim ou em você. Mas não falei. Meus monstros serão sua memória, até não ter mais memória e só existir não momentos. E a gente não terá sido, assim como eu.

E nada será dito, amanhã.

3823. idiota

os lentos verões as noites de frio
todo o contorno percorrido pelas mãos
as manhãs solitárias
eternas

não as de agora nem as de ontem nem as de antes
as minhas manhãs

o super-mercado a fila o chuchu
minha voz sendo ouvida pelo vento

uma animalidade bestial desejante
o não
e o sono
uma passionalidade amante
o sonho

construí grades de mentiras
frágeis como bolhas de sabão
construí grades de bolhas de sabão

os anos aconteceram juntos ao amor
e minha sinceridade crepuscular
só me permitiu ser amável
mas amor só acontecerá na noite

eterna

minha inteligibilidade beira o caos
mas o caos não ama não deseja

talvez eu seja um monstro

me lembro dos detalhes
eles não sairão da cabeça
só se ofuscarão com o crepúsculo

depois das miragens há de vir uma manhã
eu irei a super-mercados filas chuchu
o amor explodirá e eu virarei objetos
com histórias ouvidas pelo vento

na crepusculante manhã de amanhã
eterna solitária
grades de bolhas de terra
onde não mais acontecerei

não sou um monstro só um idiota

Feliz 2017

Mais um ano posto. Nem sei mais se vale a pena contá-los. A velocidade domina tudo. Se não a velocidade, provavelmente a falta de sentido com o cotidiano é o que impera. A falta de sentido observada com a sucessão de imagens de uma tecitura tão flácida, que parecem esmaecer a qualquer toque de brisa, perdidas num frágil calabouço em que nada precisa estar guardado na memória. Como se nada tivessem sido, como se a existência fosse apenas um aparente modo de prosseguir. Sem sentido algum.

Há um estado de sempre ir, chamado presente, que se perdia entre um horizonte de expectativas e um espaço de experiências. Mas isso era antigamente, agora é só isso: ir. E o mundo ia, mas quando o choque se deu, foi que houve o entendimento de que o mundo foi. E o choque não foi de um meteorito, um tremor, uma explosão, foi um espasmo de letargia antes da morte das funções vitais. Sem expectativas.

Prenúncios, presságios, profecias se fizeram, houve até mesmo quem analisasse cientificamente a que termo vindouro chegaríamos. E eis que, finalmente, chegamos. Talvez nunca nos apercebemos de que esse estado viria assim: vindo. E conosco dentro. Mas cá estamos, diletantemente orgásticos ou arruinadamente angustiadas, indo. Sem direção alguma.

Esses dias li que a esperança é um ato político. Esses dias li tanta coisa e há tanta política. Esses dias, que vão.

3799. Tempo de dor

Desculpa-me, meu pai
mas é muito difícil
entender os seu sinais

meu peito nasceu na
ignorância
e continua a desaprender
e a cada lição
compreende menos

Falo de peito, meu pai,
porque a cabeça
funciona aos solavancos
e só vai, posto que não para

O peito não,
o peito para
e costuma querer parar
todo o resto
a todo instante

apenas por mania
de buscar não existir,
como naquele saudoso
tempo em que não existia,
o tempo de antes de mim

Perdoa-me, meu pai,
sem rancor,
mas o tempo
é de dor

3796. oráculo reciclável

dei pra ler o entulho
a disposição dos restos
o cascalho, a mamona, o monturo
o pneu criatório
o mato esgarçado
o escorpião, o casulo

na conjugação entrelaçada
o que principia, o que é,
o futuro

duas latas emborcadas
ao lado do concreto bruto
falava que nos fechamos
estagnadas para o fim contudo
e que a vida vazia seria
se não se acometesse o absurdo

intercedi e joguei as latas ao léu
uma em cima da lama
outra caiu num resto de muro
separação pouca
nada seria mais duro

mas foi no resto do guarda-chuva
apontado para a panela
que eu pude confirmar
nossa relação, já era
e minha alma ficou quieta
quando viu aquela flor amarela
me dizendo que outra
em sua vida já era certa

peguei o resto de papelão que achei
coloquei no meu carrinho
certa de que aquela noite
eu não voltava pra você

3792. melancolia

o vasto desterro
se anunciava

antes de ter forma
já variava entre
uma rua e um abismo

o vasto desterro
que se anunciava

em surdina constituído
enquanto sussurro
instituído conquanto
o urro não se desse
como enfim se deu

o vasto desterro era
só claridade
negrume sedento
cobrindo tudo
dentro do breu

o vasto desterro
que se deu

o vasto desterro
como conjugação
que não houvesse
entre meu e teu

o vasto desterro nosso
que se assucedeu

3788.

romper o fardo
da liberdade
dada como amor
e aprisionada

não pela culatra
mas tangenciado

 
à francesa colonial

                 nosso fim
                 a fórceps
                 fuga e l’amour

                 aquela propaganda enganosa
                 até que morreu o que tínhamos
                 antes que a nossa morte nos separasse

3782. morte cursiva

já quase não se acha
aquela forma longa
arredondada e curva
cada palavra
uma linha só
               emaranhada

talvez apenas com infantes
a aprender o abecedário
que por força da
tradição delas
curvilíneas
não vislumbram modo vário

cada palavra ainda
é uma longa lenta
união
de letras fazendo sons
em significação

depois caos se acomete
e acontece o que acontece
enquadra-se em quadrados
e se ajusta às novas normas
outras formas

cada letra se desune
e de prever o aglutinado
é que se dá a soma

               o que resta é só
               letra de fôrma