3777. noite de caçada

no fim da tarde ocorre a marcha
a mata zune a luz que finda
no meio o silêncio se farta
o vento pausa enquanto vinha
mortalha negra encobre a escarpa
e do outro lado se faz dia

do breu profundo do nascente
um pio retumba, há companhia
e a vida vem numa crescente
mostrar que a noite desafia
ao voo a presa indiferente
à asa, à garra, morta ia

a cor da noite então destoa
um veio rubro o chão perfila
a flecha tesa ao peito soa
vibrando o ar que enfim movia
e leva a caça na garoa
à mesa parca da família

3774. lá fora

é sempre lá fora

lá fora tudo acontece

o mundo arde
bolas verdes cortam os céus
balas douradas voam em frente a portões
pessoas transam com pedras
bombas expelem ares venenosos
malu vieira termina seu romance
uniformes negros cacetam negros
descobre-se cientificamente porque rimos
mutilam mais um bem-estar em coma
publica-se mais um livro de vampiros

lá fora

 
lá fora

linfoma nos dedos

de tanto escorregá-los
não há mais tato

mas é tudo lá fora

só lá fora

repetia uma geração inteira
                                                sem mãos

pausa: nas terras de meu pai

O porquê da poesia? Nunca saberei. Como ela vai, como ela volta, como ela fica. Quando ela fica. Ela apenas vive, com suas idas e vindas, como eu, como nós. Nunca entenderei o que me levou a ela ou como ela me encontrou. Posso recuperar as sendas da memória e encontrar resquícios de motivos, mas eles já não são a razão. O arrumado ou o emaranhado das palavras além do corriqueiro do dia me ativa, respiro-as e quando elas entram em meus pulmões, parece até que são o próprio dia a dia. Ainda que de quando em vez me falte ar, ocorrem então essas lufadas de palavras, poesias, que me abrem a cabeça e o peito e me ventam tudo por dentro. E eu me vejo ali, sentado na areia branca fina, de frente pro mar, nas terras de meu pai, como ele, senhor da paz, numa

Manhã de Pescaria
(Paulo Cesar Pinheiro)

À luz da aurora o barco zarpa
A praia ainda está vazia
As águas fazem som de harpa
A brisa inventa melodia
E sangra o céu feito uma farpa
De sol na pele azul do dia

O mar se agita de repente
Mas sem nenhuma ventania
O sol ainda não é quente
A onda é quase calmaria
E a gaivota voa rente
Atrás de boa pescaria

E foi manhã de pesca boa
Na areia já tem companhia
O peixe pula na canoa
Fica mais forte a maresia
E o pescador no vão da proa
Entoa um canto de alegria

O mar se agita de repente
Mas sem nenhuma ventania
O sol ainda não é quente
A onda é quase calmaria
E a gaivota voa rente
Atrás de boa pescaria

E foi manhã de pesca boa
Na areia já tem companhia
O peixe pula na canoa
Fica mais forte a maresia
E o pescador no vão da proa
Entoa um canto de alegria

3769.

abaixo do meu crânio mora um pântano
aprisiona-me movediço, de dentro pra fora
rendo-me fácil a ele,
alagadiço, brejeiro, não deixa que eu me veja por dentro.
abaixo do meu crânio mora um pântano que
lameia a cabeça e escorrega pelo tronco, viscoso.
à terra, ao pó, ao solo do meu corpo
junta-se a minha umidade de trovões e raios
e raízes expostas
e tudo vai se afundando internamente
só sobra o lodo
a lama, o pântano
aqui dentro.
abaixo da minha pele mora um pântano
que quer ser minha alma
rendo-me fácil demais a ele,
afundo-me, adentro,
no que me afunda em mim,
ele quer me decompor.
abaixo do meu espírito mora um pântano que
quer afundar
sou frágil, imóvel, deixo que me afogue
todas as noites dos dias e todos os dias
enquanto a vida escorre.
emudeço: só vejo as águas turvas
sem febres, sem faces.
esse pântano me habita, sou seu bioma
há coisas vivas que o atravessam
e esbarram em minha pele, não saem
nem ficam
e vivemos assim
pesados, densos
matéria em suspensão.
e é isso o tanto que se precisa
para um homem ter o aspecto mofado
de quem cultiva
um pântano dentro de si,
e você, o que te habita?

3764. Amarelo

Na gênese não se vislumbra início
não se chega a tocar aquela matéria quando se criou
era uma mistura de charme, curiosidade, tristeza
solidão

Volta-se várias vezes atrás
labirintos de tempo e ideias ideais
era um filme?
foi um filme?
quem dirigiu?

O projetor interno não para
rebobina a fita alugada
havia uma fala de uma atriz
vinha de um livro
capa azul dura, folhas finas
quase de seda
falava sobre se deixar
desistir de se achar
entrou dentro
repetiu-se no diálogo da atriz

Existiu atriz?

Volta-se mais uma vez
era a música
a vida do músico
a vida da música
algo não encaixava na vida
a melodia aflitiva
truncava as vias da razão

Parecia até que havia vida
Houve, parece
O presente vem assolando
e se descobre que é só nele que se vive
ainda que exista outro
universo, em paralaxe,
dentro do crânio
alcançando espinha e nervos
A boca dá espasmos involuntários
O olho treme

Está tudo bem
a solidão colide
com a visão dos pássaros atravessando
os vãos dos fios

Tudo só parece
nada se parece com o filme que roda dentro

Abandonos, abandonos
A vida humana é só uma experiência divina sobre a liberdade

Um baque no asfalto
esse projeto falhou

Parece que os créditos sobem
sem som
(ao longe alguém chora)

pausa: setembro

Tudo o que vive, respira. E todo o tudo, pouco tem me inspirado. A bagunça ordenada do mundo não tem ajudado. Continuo estudando os astros, na esperança de compreender o que tem ocorrido em mim e ansiando por respostas para o que vem se passando com o mundo. Dei uma pausa na ciência, que bruta e afobada, pouco me ajudava. A poesia também coloquei de lado, me tem sido superficial, parece que há uma casca grossa colada em minha epiderme que não tem deixado nada penetrar. Pode ser meu momento no mundo ou o próprio mundo, só sei que tenho escrito pouco e tudo que sai parece piegas.

Pode ser por causa de Setembro.

De todo modo,     vou ficar com o samba,     pelo menos,     só,     por enquanto.

3761. Dona Minervina e Seu Major

Era uma blusinha verde de linha
com uma trama cinza bordada
por cima do vestido de riscos verticais
já gasto pelo tempo
que ela sempre usava

Seu cabelo crespo e prateado
bem puxado para trás
dois grampos segurando os
fios revoltos na parte da frente
formavam uma trança única e fina
que agasalhava as costas
arqueadas pela idade

Sua pele negra macia e rugosa
tinha uma elasticidade carinhosa
que me abarcava com ternura
E ela sempre me dava melado de beterraba

Ela tinha olhos de alegria
E eu já sabia desde sempre

E seu Major
nunca antes militar na vida
sentado em sua cadeira vermelha
de fios de plástico
a barriga dura e grande
espocando-lhe as calças
uma barba por fazer
pelos duros e brancos despontando
a pele manchada ríspida e vermelha
com seus olhos tímidos por detrás
das grossas lentes dos óculos marrons,
via o tempo acontecer em sua frente
como vendo o Araguaia se espraiar
de novo em sua frente
e a mata densa e as castanheiras

Ele tinha olhos de mata e rio
E só hoje eu sei

Eu ficava ali
entre ela e ele
acontecendo no tempo
nas manhãs de sábado
na manha
mexendo na caixa de ferramentas dele
mexendo nas plantas dela
e esperando minha mãe me buscar

E tenho olhos de saudade

Eu já sabia
E hoje eu sei

3759. Do solo

Era o vasto
a imensidão

Um demônio separava porções
um espírito guardava limites
um tabu dava o contorno

Até o rio da água vermelha,
o conhecido

Além da pedra do irmão perdido,
o temor

Depois da curva do horizonte em mar,
a queda

Os passos apinhados da experiência
como a ancestralidade de saber a terra
conhecendo o que se compartilhava pelos pés

Ouvia-se com atenção as palavras
das superfícies
que contavam caminhos, sendas, passagens
e das cabeças, as cabaças da memória,
que falavam dos voos
dos barcos
das entranhas calcárias

E havia um respeito pactuado
donde a guerra só aflorava
dado o alinhamento dos planetas

Em alguma beira da história
isso tudo se perdeu ou foi engolido

E do medo, o poder sem limites
brotou como muralhas, limitando

E de pedras sobrepondo pedras
pátrias nasceram
acima do sangue que corria

pelo vasto
pela imensidão

3749.

perdidos entre a areia branca
e o céu atordoado
de linhas auroreais
pequenos sulcos de luz
advertiam às nuvens
que a tempestade não viria
sem luta

perdido entre a areia branca
num longe de qualquer fim
um olhar estendido mar
tinha por olhos o oceano

perdida na areia branca
o mar a engolia
em ondas de branca espuma
a luz

perdida dentro da areia branca
ela via tudo acinzentar
enquanto a noite caía por tudo
e aprisionava entre os grãos de areia
a luz

3748. produtora de mundos

i

não aquieta
mesmo quieta
fluxo infindo
que afoga e carrega
                 fragmentos
                 inteirezas

                 inunda

vai corroendo pedras
esculpindo formas

 
ainda que se desvele
– das formas
uma verdade elétrica
vinda além do céu

 
 
ii

enquanto a revelação não vem
ela revolta
molda terrenos
de dentro pra fora

 
 
iii

a liberdade é um relevo
                 acidentado
                 dentro de sua paisagem

 

3747.

um mundo feito de migrações
êxodosdiásporas
antes de toda a manifestação
das fronteiras
apenas algumas muralhas
e os caminhos como limites

 
                  na próxima bifurcação
                  é melhor cada ir para um lado

 
                  em solidão remota
                  sem controle

                  sem juízo, tudo acabado
                  de início

3738. Torrent-e

Para conhecer os nós
eu teria de ser o ar que os envolve –
amarras sequenciais, fluidas
atam e desatam, viram teias.

A natureza dos nós
é dada por dedos precisos
que escolhem as qualidades: cegos ou frouxos.

Atam memórias, anseios, horizontes
agrupando cordas que enforcam e subjugam.

Os nós tecem as redes que abrigam cardumes –
habitat temporário de quem será devorado.

A vida tem sido feita de nós
que conectam arremedos passados,
meio presentes, parcialmente futuros.

Diante dos nós
os laços são clones
sem estudos dos impactos,
os nós – tatuagens híbridas, intervenções.

Massas amarradas, como gado pro abate,
atando mais nós, armadilhas,
os nós nos ligando
ponto a ponto
emaranhando.

Eu e você já nos aprisionamos
entre todos os tipos possíveis,
deles, os nós, que somos nós apenas se tivermos nós.

Já possuem vida própria.
Tantos e tamanhos, da textura de tecidos
que vibram como se ondas d’água fossem.

3736. Périplo

“Nas minhas andança dentro do cerrado
Já vi coisa do invisivi e do malassombrado”
Elomar

 
Andarilho de chinelos gastos arrastando
passos pelos quatro ângulos do quadrado
tendo o ocaso a anunciar os findos dias.

Dos pés que chicoteiam o chão e da pele
vermelha de barro ruidoso, o sangue em
pó, nuvem rasteira, se afasta de mim, lá pra trás

poeira minha, de terra minha, erguida
do cansaço longo dos meus próprios pés
vão virando redemoinhos de criança

– num tempo em que começou a dor de andar
viração de viver sem ter escolha, fumaça de saci
só cerrado e sertão se descampando.

Cada grão elevado, levado para onde pisei
distando os passos desde onde já estive
pousa num canto obtuso entre capim e raiz.

Como sei que caminhei, caminho
sempre atrasado no horizonte, no sentido
de onde o sol diuturnamente se esvai

vermelho como o chão que arrasto
nas tardes dos dias que inefavelmente existem
onde ando, antevendo o abismo da noite.

O sentido do poente, onde atrás tudo já
se apaga, cobrindo meus rastros com
o manto de chumbo de acolher estrelas

é o sentido do percurso, até que num cardinal
encruzilhado, o fio da comunicação
há de mostrar-se esfera e admoestar passos

“segue outro rumo, vira os pés austral”
Já alfabetizados nessa língua dos ventos
meus pés então se permitem não procurar o sol

e como foram as horas que andei
quando de lá de cima muito além não se vê
caminhei apenas pelo tempo, feito de barro vermelho

pós me arrodeando, paus secos meus irmãos
passos lentos, passamentos, buracos na mente
pensamentos, como se se fosse possível sê-los.

Andante, prossigo, caminhando até sobre as águas
dentro delas o sangue em pó vira lama
costela e marcha, incessante e adiante.

É que no meio da noite, quando se anda
é preciso fechar os olhos e com as palmas dos pés
ler o braile dos relevos, as formas nas pernas

há o estalido dos gravetos e o mato amassando
e o assombro das corujas pelo assomo
de minha presença, fortuita e humana

dentro do breu, um mundo de betume
e esses silêncios assustados, luzindo vagos
e lumes ao longe, zumbindo coisas em línguas mortas.

É que eu ando como a força da Terra
oscilando de cá pra lá sem saber ao certo
qual é o centro ou se o centro é em todo onde

sendo assim, indecidido como a Terra
volvem-se meus pés rumo ao nascente,
à espera talvez de que o sol se apresse em me beijar

e ainda assim, há que se passar pelas trevas
já que a hora dada é a de que durmam
seres rastejantes só que não, espreitando meus pés

mas eu sigo a vazante das estrelas rumo ao beiral
do dia, um porto de claridade atracados barcos
de vida, prontos a acordar e zarpar, meus pés insones

há morros no percurso, bem dentro do escuro
contornando córregos que tagarelam águas
em manadas, cardumes palavreiam dentro da noite

falam motes: “lava os pés, limpa a sola, lambo
rio de descansar tua caminhada”, eis que paro
ainda que o orvalho já floresça em meus pelos.

Diante do sentido tido, ido, o sol há de me encarar
borrando cárstico a anunciação das horas
o sol nunca dorme, como os meus pés

que se principiam ao sol alcance, seu
de todo modo ele há de vir, e afugentar os espíritos
que me rondam, voando baixo sobre a poeira

instalada atrás dos meus passos, anunciadoras
do que já andei, vestígios de que fui
a esperança de que desvanecer é apenas ir.

Sei que o que alcanço é a própria caminhada
moto-perpétuo de se projetar alhures
– o rumo de nunca ter pra onde nem porque.

Mas há espíritos que me contam segredos
durante a caminhada, falam palavras de cansaço
e querem me prender no molhado do chão matutino

de manhã cedinho e de tardinha,
todos os espíritos saem de suas tocas
e querem me tocar, almas, plumas de painas

penadas, até que pássaros emplumados
saem de dentro da manhã nascente e me dizem:
“lá vem o sol, siga boreal, queime a destra”

meu pés refazem o percurso e angulam-se
em noventa os graus, fechando a senda
geométrica que governa os meus caminhos.

Com o sol despontando candeeiro disposto
a roubar qualquer outra luz, aquietei-me
dentro do azul, passante quase em repouso

passaredo em solitário, coletivado na estrada
voo baixo de se ter em terra, barro e pó
irmanado ao desassossego de se ter prostrado

num mesmo sítio, minha morada é por onde
ando, meu arranjo nômade feito me desterrar
o peito diante do assombro, de ir.

Meu corpo é feito de pés e passos
arrastados dentro do cerrado e vagueiam
deixando atrás de si, um rastro de poeira.

Lá na frente foi a partida, desde quando não sei
ainda agora lá morarei pelo raso das horas
me acertando novo prumo poente, outra vez.

pausa serena

Existe uma aflição no peito que se dá de quando em quando e que ainda não sei como ela se forma, de onde vem e porque vem. Tampouco sei o que fazer com ela. É um exaspero, uma vontade de, um sopro que faz tornado e furacão por dentro. Ela veio vindo ainda agora. Tomei um chá de camomila com capim santo, inspirei e expirei, várias vezes, pausadamente. Não passou. O computador agressivo. A internet matadora. Um sol estranho lá fora. Um ambiente opressor cá dentro. Quando essa aflição já trazia angústia, ansiedade e um medo insone de continuar trotando nesse mundo cabuloso, a serenidade me chegou assim, de repente, em Ascensão:

https://www.youtube.com/watch?v=b_-HPVYSk9U&feature=youtu.be

Salve sexta-feira.

3735.

quando não se deseja,
dois afagos lhe são dados
vivenciados sem expectativa
e de plena a carícia

um deles é o chão
superfícies irregulares
rasgadas de tons múltiplos
terra, pó, cimento, ardósia
mesmo o lixo entre as pedras
instiga de se ver

o outro é o céu
superfícies mutantes ao
longo do dia
morada do invisível
e de tudo o que desmancha
onde a gente vive sem ver

 
quando não se deseja,
se olha pouco para os rostos
que transitam seu caminho

olha-se o chão ou o céu

o problema são os tropeços
dada a desatenção
que ocorre quando não se deseja

 
e meu problema é o enleio
de quando não desejo
que mesmo nada vendo
se acomete em mim pelos cheiros