não é um esporte
não é um treino
não é uma competição
é uma marca
registrada
propriedade intelectual de corpos
e como toda religião
um estilo de vida
uma distinção
a sua salvação
Meu nome é Guilherme, poeta , professor de geografia da Secretaria de Educação-DF e mestre em geografia (UnB). Tive AVC em maio de 2020 (isquêmico) não consigo falar ainda. Tenho apraxia e afasia. Apraxia é um distúrbio neurológico motor da fala, resultante de um deficit na consistência e precisão dos movimentos necessários à fala. Afasia é uma alteração na linguagem causada por lesão neurológica.
não é um esporte
não é um treino
não é uma competição
é uma marca
registrada
propriedade intelectual de corpos
e como toda religião
um estilo de vida
uma distinção
a sua salvação
Quem sabe, sabe. Bacaba é com farinha de puba.
no fim da tarde ocorre a marcha
a mata zune a luz que finda
no meio o silêncio se farta
o vento pausa enquanto vinha
mortalha negra encobre a escarpa
e do outro lado se faz dia
do breu profundo do nascente
um pio retumba, há companhia
e a vida vem numa crescente
mostrar que a noite desafia
ao voo a presa indiferente
à asa, à garra, morta ia
a cor da noite então destoa
um veio rubro o chão perfila
a flecha tesa ao peito soa
vibrando o ar que enfim movia
e leva a caça na garoa
à mesa parca da família
o que foi imposto
não por quem deposto
mas por quem se pôs no posto
não foi cortar o imposto
mas cortar o gosto
como se fosse gasto
tendo por pressuposto
instituir o contragosto
em cada rosto
gasto
é um espelho
dentro do bolso
quase negro
reflexos em autorretratos
reflexos irrefletidos
movimentos reflexos conduzidos
imediatos mediados
intuitivos
sem heterotopias
não há contatos
há contratos
psicopatia
é sempre lá fora
lá fora tudo acontece
o mundo arde
bolas verdes cortam os céus
balas douradas voam em frente a portões
pessoas transam com pedras
bombas expelem ares venenosos
malu vieira termina seu romance
uniformes negros cacetam negros
descobre-se cientificamente porque rimos
mutilam mais um bem-estar em coma
publica-se mais um livro de vampiros
lá fora
lá fora
linfoma nos dedos
de tanto escorregá-los
não há mais tato
mas é tudo lá fora
só lá fora
repetia uma geração inteira
sem mãos
por dentro a terra
é uma estrela
mole mole
quando vulcões se ouriçam
é só uma ânsia
por falar com seu irmão sol
na linguagem plasmática
das lavas
prefiro as texturas não as performances
enxergo com as palmas das mãos
abertas
O porquê da poesia? Nunca saberei. Como ela vai, como ela volta, como ela fica. Quando ela fica. Ela apenas vive, com suas idas e vindas, como eu, como nós. Nunca entenderei o que me levou a ela ou como ela me encontrou. Posso recuperar as sendas da memória e encontrar resquícios de motivos, mas eles já não são a razão. O arrumado ou o emaranhado das palavras além do corriqueiro do dia me ativa, respiro-as e quando elas entram em meus pulmões, parece até que são o próprio dia a dia. Ainda que de quando em vez me falte ar, ocorrem então essas lufadas de palavras, poesias, que me abrem a cabeça e o peito e me ventam tudo por dentro. E eu me vejo ali, sentado na areia branca fina, de frente pro mar, nas terras de meu pai, como ele, senhor da paz, numa
Manhã de Pescaria
(Paulo Cesar Pinheiro)
À luz da aurora o barco zarpa
A praia ainda está vazia
As águas fazem som de harpa
A brisa inventa melodia
E sangra o céu feito uma farpa
De sol na pele azul do dia
O mar se agita de repente
Mas sem nenhuma ventania
O sol ainda não é quente
A onda é quase calmaria
E a gaivota voa rente
Atrás de boa pescaria
E foi manhã de pesca boa
Na areia já tem companhia
O peixe pula na canoa
Fica mais forte a maresia
E o pescador no vão da proa
Entoa um canto de alegria
O mar se agita de repente
Mas sem nenhuma ventania
O sol ainda não é quente
A onda é quase calmaria
E a gaivota voa rente
Atrás de boa pescaria
E foi manhã de pesca boa
Na areia já tem companhia
O peixe pula na canoa
Fica mais forte a maresia
E o pescador no vão da proa
Entoa um canto de alegria
nossas mãos,
reflexos pulsantes
mar e céu a linha que nos reúne
o horizonte
bem perto do longe
não sei
do que te navega
você não sabe
o que me voa
peixes-pássaros
nos conectam,
poesias.
com as pálpebras fechadas
percebe-se a proximidade
pelo calor emanado
e as formas
pela luz mais ou menos incidente
com as pálpebras e o coração fechados
só é possível se aproximar
de si
e perceber uma convexidade
de dentro pra fora
o umbigo
abaixo do meu crânio mora um pântano
aprisiona-me movediço, de dentro pra fora
rendo-me fácil a ele,
alagadiço, brejeiro, não deixa que eu me veja por dentro.
abaixo do meu crânio mora um pântano que
lameia a cabeça e escorrega pelo tronco, viscoso.
à terra, ao pó, ao solo do meu corpo
junta-se a minha umidade de trovões e raios
e raízes expostas
e tudo vai se afundando internamente
só sobra o lodo
a lama, o pântano
aqui dentro.
abaixo da minha pele mora um pântano
que quer ser minha alma
rendo-me fácil demais a ele,
afundo-me, adentro,
no que me afunda em mim,
ele quer me decompor.
abaixo do meu espírito mora um pântano que
quer afundar
sou frágil, imóvel, deixo que me afogue
todas as noites dos dias e todos os dias
enquanto a vida escorre.
emudeço: só vejo as águas turvas
sem febres, sem faces.
esse pântano me habita, sou seu bioma
há coisas vivas que o atravessam
e esbarram em minha pele, não saem
nem ficam
e vivemos assim
pesados, densos
matéria em suspensão.
e é isso o tanto que se precisa
para um homem ter o aspecto mofado
de quem cultiva
um pântano dentro de si,
e você, o que te habita?
testamos teorias
sustentáveis
tentamos
atrás, os meus estragos
avante, o meu testamento
no centro a tua
temperatura
estratosférica
inabitável
nossa resiliência
é uma colcha de retalhos
qualquer inspiração acaba
quando cessa o ar
turvo, fuligem
clausura
aperto, prisão
e há essas paredes de palavras
mais que letras e sons,
tijolos
que desmoronam
tapam peito
entranham destroços
pó no pulmão
tudo isso, quando nenhum ar se avista
rodar, dissipar
desembarcar
toda a carga adentrada
girar, girar, girar
circunavegar
como se o vento
te fosse a própria vida
e teu corpo, veleiro
e toda a Terra, mar
livra-te das culpas
há um desastre iminente
numa curva, sempre em frente
a paz
te pertence
Na gênese não se vislumbra início
não se chega a tocar aquela matéria quando se criou
era uma mistura de charme, curiosidade, tristeza
solidão
Volta-se várias vezes atrás
labirintos de tempo e ideias ideais
era um filme?
foi um filme?
quem dirigiu?
O projetor interno não para
rebobina a fita alugada
havia uma fala de uma atriz
vinha de um livro
capa azul dura, folhas finas
quase de seda
falava sobre se deixar
desistir de se achar
entrou dentro
repetiu-se no diálogo da atriz
Existiu atriz?
Volta-se mais uma vez
era a música
a vida do músico
a vida da música
algo não encaixava na vida
a melodia aflitiva
truncava as vias da razão
Parecia até que havia vida
Houve, parece
O presente vem assolando
e se descobre que é só nele que se vive
ainda que exista outro
universo, em paralaxe,
dentro do crânio
alcançando espinha e nervos
A boca dá espasmos involuntários
O olho treme
Está tudo bem
a solidão colide
com a visão dos pássaros atravessando
os vãos dos fios
Tudo só parece
nada se parece com o filme que roda dentro
Abandonos, abandonos
A vida humana é só uma experiência divina sobre a liberdade
Um baque no asfalto
esse projeto falhou
Parece que os créditos sobem
sem som
(ao longe alguém chora)
Tudo o que vive, respira. E todo o tudo, pouco tem me inspirado. A bagunça ordenada do mundo não tem ajudado. Continuo estudando os astros, na esperança de compreender o que tem ocorrido em mim e ansiando por respostas para o que vem se passando com o mundo. Dei uma pausa na ciência, que bruta e afobada, pouco me ajudava. A poesia também coloquei de lado, me tem sido superficial, parece que há uma casca grossa colada em minha epiderme que não tem deixado nada penetrar. Pode ser meu momento no mundo ou o próprio mundo, só sei que tenho escrito pouco e tudo que sai parece piegas.
Pode ser por causa de Setembro.
De todo modo, vou ficar com o samba, pelo menos, só, por enquanto.
Toda fala
parece vinda
de uma garganta em pausa
destroçada
E a pele ainda derrama
microscópicos relevos
em outra pele
Toda fala
avolumado timbre
contido dentro de gargantas
não sai
Não salga
nem salva
Toda fala calada
lambe uma pele
de abismo
Seria a hora do Não Dito
mas agora
é só a hora
do vazio
Não há além
sobram pousos
e sem voo
Era uma blusinha verde de linha
com uma trama cinza bordada
por cima do vestido de riscos verticais
já gasto pelo tempo
que ela sempre usava
Seu cabelo crespo e prateado
bem puxado para trás
dois grampos segurando os
fios revoltos na parte da frente
formavam uma trança única e fina
que agasalhava as costas
arqueadas pela idade
Sua pele negra macia e rugosa
tinha uma elasticidade carinhosa
que me abarcava com ternura
E ela sempre me dava melado de beterraba
Ela tinha olhos de alegria
E eu já sabia desde sempre
E seu Major
nunca antes militar na vida
sentado em sua cadeira vermelha
de fios de plástico
a barriga dura e grande
espocando-lhe as calças
uma barba por fazer
pelos duros e brancos despontando
a pele manchada ríspida e vermelha
com seus olhos tímidos por detrás
das grossas lentes dos óculos marrons,
via o tempo acontecer em sua frente
como vendo o Araguaia se espraiar
de novo em sua frente
e a mata densa e as castanheiras
Ele tinha olhos de mata e rio
E só hoje eu sei
Eu ficava ali
entre ela e ele
acontecendo no tempo
nas manhãs de sábado
na manha
mexendo na caixa de ferramentas dele
mexendo nas plantas dela
e esperando minha mãe me buscar
E tenho olhos de saudade
Eu já sabia
E hoje eu sei
muito mais
não é
suficiente
é só
desnecessário
Era o vasto
a imensidão
Um demônio separava porções
um espírito guardava limites
um tabu dava o contorno
Até o rio da água vermelha,
o conhecido
Além da pedra do irmão perdido,
o temor
Depois da curva do horizonte em mar,
a queda
Os passos apinhados da experiência
como a ancestralidade de saber a terra
conhecendo o que se compartilhava pelos pés
Ouvia-se com atenção as palavras
das superfícies
que contavam caminhos, sendas, passagens
e das cabeças, as cabaças da memória,
que falavam dos voos
dos barcos
das entranhas calcárias
E havia um respeito pactuado
donde a guerra só aflorava
dado o alinhamento dos planetas
Em alguma beira da história
isso tudo se perdeu ou foi engolido
E do medo, o poder sem limites
brotou como muralhas, limitando
E de pedras sobrepondo pedras
pátrias nasceram
acima do sangue que corria
pelo vasto
pela imensidão
sem alarido
disse verdades
agiu política
por luta
pós luto
e só
Das coisas
triscamos
Nem tudo que respira
machuca
Mas tudo que fere
tem face
A cor do espelho
é matéria absurda
e linda
e tem a sua forma
ali adiante.
Mais vale o voo
que as mãos
pássaros coresvoam
mãos, não.
Quando percebe o túnel
e sua apascentada negritude
diante da luz inerte
das estações.
O fim será
quando começará
e percebe-se então
o engodo
desse prólogo de eras
(se) míticas.
Do inominável
in do
[h(a)]
mável
amante
e só
e antes de tudo
e de antes
de si
sempre.
As coisas domésticas
– o sono felino
a cama desfeita
o aroma de café
amanhecendo –
em tudo emana
e irradia
o matiz
da cor dos espelhos.
casais improváveis
da cor de espelhos
eu e você de frente
e seguro a sua mão
vida adentro
perdidos entre a areia branca
e o céu atordoado
de linhas auroreais
pequenos sulcos de luz
advertiam às nuvens
que a tempestade não viria
sem luta
perdido entre a areia branca
num longe de qualquer fim
um olhar estendido mar
tinha por olhos o oceano
perdida na areia branca
o mar a engolia
em ondas de branca espuma
a luz
perdida dentro da areia branca
ela via tudo acinzentar
enquanto a noite caía por tudo
e aprisionava entre os grãos de areia
a luz
i
não aquieta
mesmo quieta
fluxo infindo
que afoga e carrega
fragmentos
inteirezas
inunda
vai corroendo pedras
esculpindo formas
ainda que se desvele
– das formas
uma verdade elétrica
vinda além do céu
ii
enquanto a revelação não vem
ela revolta
molda terrenos
de dentro pra fora
iii
a liberdade é um relevo
acidentado
dentro de sua paisagem
um mundo feito de migrações
êxodosdiásporas
antes de toda a manifestação
das fronteiras
apenas algumas muralhas
e os caminhos como limites
na próxima bifurcação
é melhor cada ir para um lado
em solidão remota
sem controle
sem juízo, tudo acabado
de início
Tatuagens forçadas
na pele das coisas fixas
falam formascores das falhas da arte:
1) como não olhar a eternidade
2) as intempéries dos elementos
3) signos inacessíveis e inábeis
4) estética teórica
5) ethos aético
e 6) o medo do escrutínio da multidão.
A arte não mora no saguão.
de olhar o céu
a mente assoma:
e lá no sol,
faz sombra?
nossos gostos e gastos
gota a gota
pelo ralo
algemas que
o carma
encarnou
toda água exposta
é da terra ver o céu
a forma
liberdade, quando?
se se nasce
liberdade, onde?
se se situa
liberdade, por que?
se quase
liberdade? tanta
– tenta –
e sou tua
liberdade, santa
– que atenta.
o teu tempo
é o mesmo que me cobre
e o tempo das telas
insiste em nos descobrir
nos escondemos dele
em busca desse tempo
nosso
o encontramos
debaixo do edredom
e ele para
matar os desejos não adianta
movê-los, escondê-los
tampouco
a dor reside até mesmo em não tê-los
e não arde
e nem arrepia pelos
é só um céu de falta
com você dentro
sem voo
ou vento
Para conhecer os nós
eu teria de ser o ar que os envolve –
amarras sequenciais, fluidas
atam e desatam, viram teias.
A natureza dos nós
é dada por dedos precisos
que escolhem as qualidades: cegos ou frouxos.
Atam memórias, anseios, horizontes
agrupando cordas que enforcam e subjugam.
Os nós tecem as redes que abrigam cardumes –
habitat temporário de quem será devorado.
A vida tem sido feita de nós
que conectam arremedos passados,
meio presentes, parcialmente futuros.
Diante dos nós
os laços são clones
sem estudos dos impactos,
os nós – tatuagens híbridas, intervenções.
Massas amarradas, como gado pro abate,
atando mais nós, armadilhas,
os nós nos ligando
ponto a ponto
emaranhando.
Eu e você já nos aprisionamos
entre todos os tipos possíveis,
deles, os nós, que somos nós apenas se tivermos nós.
Já possuem vida própria.
Tantos e tamanhos, da textura de tecidos
que vibram como se ondas d’água fossem.
há dois pólos
que provável
invertam
e disso inventam
– enquanto cardos sofrem
e carpas nadam na areia –
arroubos irreversíveis
ideológicos
num caos quisto
aos dois pólos
“Nas minhas andança dentro do cerrado
Já vi coisa do invisivi e do malassombrado”
Elomar
Andarilho de chinelos gastos arrastando
passos pelos quatro ângulos do quadrado
tendo o ocaso a anunciar os findos dias.
Dos pés que chicoteiam o chão e da pele
vermelha de barro ruidoso, o sangue em
pó, nuvem rasteira, se afasta de mim, lá pra trás
poeira minha, de terra minha, erguida
do cansaço longo dos meus próprios pés
vão virando redemoinhos de criança
– num tempo em que começou a dor de andar
viração de viver sem ter escolha, fumaça de saci
só cerrado e sertão se descampando.
Cada grão elevado, levado para onde pisei
distando os passos desde onde já estive
pousa num canto obtuso entre capim e raiz.
Como sei que caminhei, caminho
sempre atrasado no horizonte, no sentido
de onde o sol diuturnamente se esvai
vermelho como o chão que arrasto
nas tardes dos dias que inefavelmente existem
onde ando, antevendo o abismo da noite.
O sentido do poente, onde atrás tudo já
se apaga, cobrindo meus rastros com
o manto de chumbo de acolher estrelas
é o sentido do percurso, até que num cardinal
encruzilhado, o fio da comunicação
há de mostrar-se esfera e admoestar passos
“segue outro rumo, vira os pés austral”
Já alfabetizados nessa língua dos ventos
meus pés então se permitem não procurar o sol
e como foram as horas que andei
quando de lá de cima muito além não se vê
caminhei apenas pelo tempo, feito de barro vermelho
pós me arrodeando, paus secos meus irmãos
passos lentos, passamentos, buracos na mente
pensamentos, como se se fosse possível sê-los.
Andante, prossigo, caminhando até sobre as águas
dentro delas o sangue em pó vira lama
costela e marcha, incessante e adiante.
É que no meio da noite, quando se anda
é preciso fechar os olhos e com as palmas dos pés
ler o braile dos relevos, as formas nas pernas
há o estalido dos gravetos e o mato amassando
e o assombro das corujas pelo assomo
de minha presença, fortuita e humana
dentro do breu, um mundo de betume
e esses silêncios assustados, luzindo vagos
e lumes ao longe, zumbindo coisas em línguas mortas.
É que eu ando como a força da Terra
oscilando de cá pra lá sem saber ao certo
qual é o centro ou se o centro é em todo onde
sendo assim, indecidido como a Terra
volvem-se meus pés rumo ao nascente,
à espera talvez de que o sol se apresse em me beijar
e ainda assim, há que se passar pelas trevas
já que a hora dada é a de que durmam
seres rastejantes só que não, espreitando meus pés
mas eu sigo a vazante das estrelas rumo ao beiral
do dia, um porto de claridade atracados barcos
de vida, prontos a acordar e zarpar, meus pés insones
há morros no percurso, bem dentro do escuro
contornando córregos que tagarelam águas
em manadas, cardumes palavreiam dentro da noite
falam motes: “lava os pés, limpa a sola, lambo
rio de descansar tua caminhada”, eis que paro
ainda que o orvalho já floresça em meus pelos.
Diante do sentido tido, ido, o sol há de me encarar
borrando cárstico a anunciação das horas
o sol nunca dorme, como os meus pés
que se principiam ao sol alcance, seu
de todo modo ele há de vir, e afugentar os espíritos
que me rondam, voando baixo sobre a poeira
instalada atrás dos meus passos, anunciadoras
do que já andei, vestígios de que fui
a esperança de que desvanecer é apenas ir.
Sei que o que alcanço é a própria caminhada
moto-perpétuo de se projetar alhures
– o rumo de nunca ter pra onde nem porque.
Mas há espíritos que me contam segredos
durante a caminhada, falam palavras de cansaço
e querem me prender no molhado do chão matutino
de manhã cedinho e de tardinha,
todos os espíritos saem de suas tocas
e querem me tocar, almas, plumas de painas
penadas, até que pássaros emplumados
saem de dentro da manhã nascente e me dizem:
“lá vem o sol, siga boreal, queime a destra”
meu pés refazem o percurso e angulam-se
em noventa os graus, fechando a senda
geométrica que governa os meus caminhos.
Com o sol despontando candeeiro disposto
a roubar qualquer outra luz, aquietei-me
dentro do azul, passante quase em repouso
passaredo em solitário, coletivado na estrada
voo baixo de se ter em terra, barro e pó
irmanado ao desassossego de se ter prostrado
num mesmo sítio, minha morada é por onde
ando, meu arranjo nômade feito me desterrar
o peito diante do assombro, de ir.
Meu corpo é feito de pés e passos
arrastados dentro do cerrado e vagueiam
deixando atrás de si, um rastro de poeira.
Lá na frente foi a partida, desde quando não sei
ainda agora lá morarei pelo raso das horas
me acertando novo prumo poente, outra vez.
Existe uma aflição no peito que se dá de quando em quando e que ainda não sei como ela se forma, de onde vem e porque vem. Tampouco sei o que fazer com ela. É um exaspero, uma vontade de, um sopro que faz tornado e furacão por dentro. Ela veio vindo ainda agora. Tomei um chá de camomila com capim santo, inspirei e expirei, várias vezes, pausadamente. Não passou. O computador agressivo. A internet matadora. Um sol estranho lá fora. Um ambiente opressor cá dentro. Quando essa aflição já trazia angústia, ansiedade e um medo insone de continuar trotando nesse mundo cabuloso, a serenidade me chegou assim, de repente, em Ascensão:
https://www.youtube.com/watch?v=b_-HPVYSk9U&feature=youtu.be
Salve sexta-feira.
quando não se deseja,
dois afagos lhe são dados
vivenciados sem expectativa
e de plena a carícia
um deles é o chão
superfícies irregulares
rasgadas de tons múltiplos
terra, pó, cimento, ardósia
mesmo o lixo entre as pedras
instiga de se ver
o outro é o céu
superfícies mutantes ao
longo do dia
morada do invisível
e de tudo o que desmancha
onde a gente vive sem ver
quando não se deseja,
se olha pouco para os rostos
que transitam seu caminho
olha-se o chão ou o céu
o problema são os tropeços
dada a desatenção
que ocorre quando não se deseja
e meu problema é o enleio
de quando não desejo
que mesmo nada vendo
se acomete em mim pelos cheiros