3866. singularidades simpáticas

não seriam os ramos dourados
mimese mágica
totens desabando tábuas
tábulas fábulas alquímicas
mas sim pegadas entrópicas
intertropicais clareiras
savânicas
iansânicas
sônicas
rasgos dourados de luz
em cachos rizomáticos
no inteiro do céu
no avolumado do azul mais que negro

é que há vento
no sem fim de sentidos
do firmamento
porto cósmico para aquele
em que não há centro

e há essa voz que vem de dentro
e diz
trovoa suave enquanto há
raios dourados
no azul mais que negro do céu

não silencia os raios

3865. mãe lilith

livrai-me dos abraços abrasivos
pelo vento
livrai-me até eles
por todo o vento

livrai-me do enrosco
da quebra de sorrisos
dos objetivos
dos sonhos acordados
dos pelos das peles
dos gostos
do meu peito

livrai-me da voz
do aveludado da madrugada
da lambada da serpente
dos animais sonoros

livrai-me livrai-me
livrai-me

até livrar-me de me livrar
e por-se livre
desaprendendo
desprendendo

vento

3863.

por que eu olho essa tecitura
de olhos abertos
              como se desperto
se tudo se desgoverna
em sonho?

e detalha-se a composição
              – é dia de tristeza

o que se sustenta
é delicado nada agressivo
              – é dia de tristeza

cada milímetro acima
a coisa se dissimula
labareda negra num clarão
              – é dia de tristeza

o vórtex multitexturas
o morro líquido reentrância
a memória não falha
vibra
              – é dia de tristeza

as curvas as linhas
tudo ouriça o acaso
objetivamente
              – é dia de tristeza

tudo flui para o mesmo
momento co incide
              – é noite de alegria

3861.

fechar os olhos
caminhando na comercial
numa segunda-feira ao meio-dia
respondendo ao eco do calor
e ao tato aerado
de transeuntes

               minha língua era de osso
               e ouvia cada acorde
               reconstituído pelo abafar dos passos

               se eu fosse mais cético
               seria louco
               oco
               se me sobrasse fé
               seria bruto
               urro

a luz é só exceção
e vivemos por demais

atrás

dela

pausa: Orides Fontela

Posologia: dê play

dê pausa. Da matéria, na matéria. Pare para respirar sempre. Toda pedra respira, poro a poro, pó.

O que aterroriza os passos noturnos não é a matéria disforme escuramente unida, contornos só contornos e a visão se conturbando entre o que era quando aos olhos cerrados e o agora, tudo aberto e ainda fechado, pés tortuosamente pisando o frio, mas a profundidade de onde se estava dentro antes de pisar no chão, aquela substância plasticamente adornada dentro da moleira baqueada numa “noite original cósmica que performava a alma bem antes da existência da consciência do ego”, como diria Carl, enquanto Karl lutava contra os fumos do ópio.

Não sabemos quando foi o encontro, se no tonal ou se no nagual. Se entre guerras ou sonhos, jês ou tupis. Mas foi assim, num estado de real e de além real, ainda real. As brechas são infinitas, as falhas na matriz não se computam, e tudo estava turvo e cabulosamente atolado de matéria onírica. Onironautas que somos, nos atrevemos, barcarola do São Francisco, enfrentando o mar. Não nos transpomos, mas enfrentamos a transposição:

TEMPO

O fluxo obriga
qualquer flor
a abrigar-se em si mesma
sem memória.

O fluxo onda ser
impede qualquer flor
de reinventar-se em
flor repetida.

O fluxo destrona
qualquer flor
de seu agora vivo
e a torna em sono.

O universofluxo
repele
entre as flores estes
cantosfloresvidas.

– Mas eis que a palavra
cantoflorvivência
re-nascendo perpétua
obriga o fluxo
cavalga o fluxo num milagre
de vida.

E sequer sabíamos da nossa existência. E era apenas o começo da empreita, por isso percorremos diluidamente o fluxo da vida, lendo. Eu, meu duplo e ela:

PEDRA

A pedra é transparente:
o silêncio se vê
em sua densidade.

(Clara textura e verbo
definitivo e íntegro
a pedra silencia).

O verbo é transparente:
o silêncio o contém
em pura eternidade.

Mas precisávamos de um ponto comum, afinal, não sabíamos se estávamos em estado de alerta, de guerra, de sítio, (

STOP

Estado de sítio
estado de sido
estase.

) vegetativo ou lírico. Faltava uma definição que nos conduzisse ao termo definitivo, se infinito ou se fictício. A vida era dura nos dias que formulavam o mapa de onde se dava os termos do encontro. E o sonho, ou os pés gelados atravessando o corredor, às vezes pausavam diante da luz de um abajur – não era lilás –, 22:35, depois de escovar os dentes e tudo parecer que ainda era real e não tinha fibra de luz alguma emanando teias e conformado as coisas em espirais caoticamente controláveis. A realidade existia ainda:

TATO

Mãos tateiam
palavras
tecido
de formas.

Tato no escuro das palavras
mãos capturando o fato
texto e textura: afinal
matéria.

E era nessa hora que nosso peito inflava de gás carbônico, mezzo pimenta, mezzo lacrimogêneo, mezzo silenciamento. E nessas noites não sonhávamos, apenas amanhecíamos com cara de tormenta e pedíamos que nunca, jamais, temêssemos e que mantivéssemos os nossos ódios acesos, claros e salgados, pesando uma tonelada, cabendo em um olho, com diria Mano. E sabíamos que tudo seria

DESAFIO

Contra as flores que vivo
contra os limites
contra a aparência a atenção pura
constrói um campo sem mais jardim
que a essência.

E era um jardim cabuloso. E se fosse rio seria caudaloso. E se fosse sonho, como era, só, então realidade.

Mas eram tempos definitivamente carentes, esquecemos de dizer, e cada glória era uma aleluia e um milagre, mil lágrimas, derretidas, inadvertidamente, diamantes, apenas de dia, nunca amantes. Tudo cortava, tudo ruía, tudo rugia, tudo rangia: nossos ossos entrevados, nossa musculatura tensa e tesa e nunca um tesão tão aflito havia sido posto em prática. E nós três, sem falo, flacidamente como ácidos, berrávamos. Não havia

FALA

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade.)

E foi aí que entendemos que se tratava da lucidez. Não daquela, nem daquilo. O fato consumido, motor da saudade. Era o tapa na cara, a realidade. Não havia mais entregas que não as rugas na cara, os calos nas mãos, o humor ferino, a lentidão, a brincadeira, a imortalidade. E não esquecíamos de Carl: “O sonho descreve a situação íntima do sonhador, situação que o consciente não quer tomar em consideração ou cuja verdade ou realidade aceita a contragosto”. E não aceitávamos nada da realidade.

Certo dia estávamos em plena Rodoviária, sol à pino, antes da chegada dela, éramos só eu e meu duplo. Já prevíamos, mas daí ela chegou e se encostou, novamente, como se nos transpuséssemos para a Rodoviária novamente bem ao

MEIO-DIA

Ao meio-dia a vida
é impossível.

A luz destrói os segredos:
a luz é crua contra os olhos
ácida para o espírito.

A luz é demais para ao homens.
(Porém como o sabereis
quando vieste à luz
de ti mesmo?)

Meio-dia! Meio-dia!
A vida é lúcida e impossível.

E contemplamos, tremendo, do patamar superior, a vida se impossibilitando. Nenhum entretanto. Um marmitex de dez reais no seco ou dois x-tudo com dois copos de refri. Não podíamos mais fazer muita coisa a não ser ver o vai e vem de tudo, até o estalo para o trabalho e manada, gado, rês, nos pusemos em marcha. Sabedores, saboreadoras, de cada minúsculo ponto que vai, só indo, átomos de dinossauros em dispersão, até dar no Sol novamente, senhor de si, senhora de se expandir, infinita. Meramente nossa

HERANÇA

O que o tempo descura
e que transfixa

o que o tempo transmite
e subverte

o que o tempo desmente
e mitifica.

E findo o dia, a volta ao lar, depois da lida, nos lançávamos nos vagões, nós três, intrépidas, no último carro. Era sempre como uma carruagem girando numa roda da fortuna falha, moinho de vento em doses de ventania em cima de uma torre, desmoronando, no sentido da noite que nos consumiria ainda envoltas no

NOTURNO

O silêncio sem cor nem peso
(vacuidade) sustenta
agudas sementes – júbilo –
da lucidez nunca
                            extinta.
Grandes estrelas fixas.

que tão pouco durava e que ainda se abria ao infinito: uma canjica amarela bem cozida, ciganas descendo uma escada ao nosso encontro, um grande catalizador de raios cósmicos sugando a porra toda e um avião desmoronando junto ao céu, mais uma vez. E logo o celular tocava e nos levantávamos e dormíamos acordados com os dentes brilhando e ainda um bafo quente e impiedoso: duas, três horas de sono? Cinco anos de sonhos aprisionados e a vida inteira por vir. Era por isso que a vida só valia sendo vivida sem

AFORISMOS

Matar o pássaro eterniza
o silêncio

matar a luz elimina
o limite

matar o amor instaura
a liberdade.

Daí matamos foi tudo logo: o pássaro, a luz, o silêncio, o limite, o amor e até a porra da liberdade. E agora estamos aí, tendo lido pela segunda vez esse livro dela, duas uniões a menos no mundo, ou três, ou quatro, ou cinco ou quem sabe vinte e seis. E me lembro que antes de matar tudo eu até mandei pra ela, não para ela, mas para ela, uns

LEMBRETES

É importante acordar
a tempo

é importante penetrar
o tempo

é importante vigiar
o desabrochar do destino.

E foi até meio que lindo, porque foi antes da morte. E aí agora sabemos bem qual é a fronteira do sonho, do sono e da surra. Eu ando leve, meu duplo urra e ela continua morta, na sua, retumbando aqui dentro como nunca, contando-me apenas algumas

MENSAGENS

A cor
alada: borboleta
ou pétala?

Fresca asa per
passa
as mãos
abertas.

Sussurro
orelha
caramujo
antena

os cabelos
ao vento.

Tudo tão leve e fácil, que mais crível que ela própria, é a quimera, própria d

O ANTIPÁSSARO

Um pássaro
seu ninho é pedra

seu grito
metal cinza

dói no espaço
seu olho.

Um pássaro
pesa
e caça
entre lixo
e tédio.

Um pássaro
resiste aos
céus. E perdura
Apesar.

E é por isso que agora, ante a seca que se avizinha, me deixo banhar n

O AGUADEIRO

Derramar um
cântaro

um canto
deixar fluir
o novíssimo
encanto.

E ela, não ela, tampouco ela, me disse que entre os espaços dos versos dela, parecia que propositadamente havia um território todo a se ocupar. E foi aí que eu compus essa canção e o caos da época gravou.

Ela: Orides Fontela (não ela, tampouco ela).

Todos os poemas são daqui:

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3846.

Acende-me a alma: algo como diluir-te alcoólica,
abre-me as mãos: toda a extensão do calor frio,
e refletindo a acústica da tua bahia ir-te,
hirto em lábios moles a tua presença, morena
(que entra pelos sete mil buracos da minha derme
e não paralisa).
Junto tuas peças, colo os teus cacos, e vejo-te
geometria de rosas a pender de cachos com filtros,
costura-me bilro e macramês o peito em floresta,
e a mente ainda se dará às almofadas do teu colo
e espalhado entre as águas dos teus vãos
empunharei o sabor das tuas palavras em minha boca.

3843. do poema da meia esfera da vida

o poema da meia esfera da vida
deveria ser escrito em castelhano, já adianto
mas tenhamos nossas impressões
com as sinapses à lusitana mesmo

o poema da meia esfera da vida
nos fala dum movimento, não fala de

poderia ser tido em um quarto,
um quinto, um cêntimo
ou num sentimento
até mesmo num milésimo

o poema da meia esfera da vida
se encaixa tal e qual
em toda vida de qualquer vivente

se a esfera completa se efetivasse
junto a trinta distâncias do sol
o poema da meia esfera da vida
deveria ser lido
à sombra de quinze translações

ainda que o poema da meia esfera da vida
seja para sempre e sem direção
tendo qualquer exemplar
da tecitura humana
a paixão por lê-lo
ele é mais que um marco,
é uma passagem, um portal

o poema da meia esfera da vida
poderia marcar apenas um azimute no céu
mas poderia mesmo ser um poente
fechando o horizonte em curva
ao nascer de uma longa noite numa vida
ou quem sabe ser nascente de cachos dourados
a uma vida que até a meia esfera da vida
estivesse apenas na escuridão

o poema da meia esfera da vida
nunca foi escrito,
há uma conta magnética
que deve ser feita antes
e uma reza secreta que deve ser rezada
transliterada do egípcio ao igbo

o poema da meia esfera da vida
possui uma estrofe muito estranha
que começa com a saudação
“uma dedicatória a Juan…”
e termina com um mote e uma glosa
“perto do coração selvagem”

o poema da meia esfera da vida
não se combina e não fala da história
de uma meia esfera de uma vida
e nem do futuro em que se circundará

o poema da meia esfera da vida
possui uma trilha sonora afro-peruana
e apenas incendeia o peito de quem
percorre a meia esfera da vida

ele,
o poema da meia esfera da vida
que nunca será feito

Meditação

O sorriso das violetas na cozinha de manhã, enquanto olhava Baltasar se levantar do sofá com sofreguidão. O corpo de Baltasar era turbulento, melhor, era turvo e lento. A marca do cassetete que lhe deram às costas mostrava o porquê. Eu estava à mesa e conseguia ver os dois movimentos, a vagarosa dor de Baltasar e a explosão inerte das violetas.

Outro movimento pescou minha atenção, Relâmpago, o gato, me encarou só com um olho escondendo-se detrás da parede. Queria brincar, certamente. Só levei a caneca de café à boca, tampando meus olhos, para que Relâmpago não os buscasse mais e entendesse a mensagem.

Minhas pernas doíam, não sei por quanto tempo eu correra, em vários momentos eu sequer sabia para onde eu corria, só corria, em meio ao gás e ao estampido dos cascos dos cavalos estrangulando o chão.

Minhas costas estão doendo muito, disse Baltasar me fitando com uma cara de dor real. Senta, toma um café, se pá a gente cola num hospital pra ver isso daí, vai que quebrou algo.

Ele se sentou, mal conseguiu encostar na cadeira. Devia estar doendo pra caralho. Eu olhei para as violetas, elas realmente estavam lindas refletindo seus tons pelo alucinado da luz daquela manhã, que seria uma das mais belas já vistas: tudo ali na medida certa de luz e precisão, até o quadrante da janela arrebentava a barra do cosmético e se alicerçava esteticamente como amplidão a ser alcançada. Que manhã.

Tem açúcar? Baltasar só gostava de café com açúcar. Você sabe que tem e sabe onde está. Porra, pra que a grosseria, já não basta essa dor? Você sabe que não é grosseria, é apenas acordar, ainda mais com essa beleza toda em volta, não sei pra quê isso, nessas horas que duvido mesmo de Deus.

Baltasar me olhou com sarcasmo, ele era ateu convicto. Pegou o açúcar, colocou no café duas colheres bem cheias, com certeza o seu índice de glicose devia ser altíssimo. Contemplei-o com curiosidade por algum tempo, ele era feio, mas mesmo assim, naquele manhã, parecia que ele ornava ainda mais o ao redor.

Posso fumar um cigarro?

Fulminei-o com um olhar, ele correu torto à sua pochete, tirou um cigarro de filtro amarelo qualquer e o acendeu. Foi até a janela e ficou fumando enquanto bebia o que eu só conseguia imaginar ser uma caramelo travestido de café.

Vou meditar quinze minutinhos no quarto e já saímos, firmeza? Essa manhã está foda. Acho que dá pra organizar a mente um tanto.

Baltasar só aquiesceu com a cabeça. Entrei no quarto e fechei a porta, sentei-me em lótus diante da janela. Que imensidão, quanto horizonte, quanta luz! Maravilhei-me uns instantes antes de apagar a mente. Antes de estar ali e só ali. Relâmpago roçou as minhas costas. Levantei-me tentando controlar alguma irritação e tirei o gato do quarto. Baltasar pegou-o do lado de fora e começou a coçar-lhe a barriga. Voltei para dentro. Dentro.

A concentração estava difícil, muita coisa na cabeça, Baltasar e o cigarro lá fora, o mundo ruindo mais lá fora ainda, meus olhos ardendo por conta do gás, queimavam irritantemente, minhas pernas doendo. O que faríamos hoje? E amanhã? E depois? A revolução? Que revolução? Voltei novamente para dentro e corri a apagar, diluir, calmamente, sem força, o que arfava. Não era difícil, não precisava lutar, era só deixar as coisas se dissiparem. Algum barulho intenso houve lá fora, estranhei e não me atemorizei, voltei para aqui, agora. Presente.

Não sei quanto tempo fiquei ali, mas quando despertei, estava bem, sentindo-me com disposição. Abri a porta, saí do quarto e respirei fundo, feliz.

E então, Baltasar, partiu ver de qual é na suas costas?

Baltasar não respondeu. Olhei para os lados e nada. Andei para a sala e vi a porta aberta. No corredor do lado de fora, um rastro de sangue no chão até o elevador e Relâmpago cheirando curiosamente aquilo. A tia estranha do apartamento da frente me olhou por detrás da porta entreaberta. Quando notou meus olhos cruzando com os dela bateu a porta assustada. Não entendi nada.

Baltasar, que porra é essa, balbuciei, enquanto todo o meu corpo tremia.

Dos que vagam no meio da noite

Olhei-o disfarçadamente, de soslaio. Desavisadamente. Não queria que percebesse meu interesse. Olhei seu semblante cansado, havia ainda aquele ar de tristeza, mas não era mais o mesmo de antes, aquele ar de tristeza infantil, bobo. Agora era um ar destruidor de tristeza. Essa nova tristeza lhe entumecia a masculinidade. Outrora sua tristeza o amolecia, dando um contorno flácido à sua constituição. Agora era algo bruto. Talvez essa tristeza houvesse se aglutinado a um certo rancor ou a uma mágoa e nesse momento se ajustava em torno de uma superfície árida, sem fluidez. Seu rosto estava desértico e até a cor lembrava areia, só que sem qualquer minúsculo cristal de quartzo a reverberar alguma luz.

Ele não havia reparado que eu o olhava. Estava longe, longe, léguas. Não tanto ali, eu dele e ele de mim, mas de qualquer coisa, parecia ausente. Levava uma lata de cerveja à boca mecanicamente, intercalando um gole e um trago num cigarro. Aflitivamente descompromissado e perdido. Provavelmente não ouvia a música, a banda, o show. Parecia que a única coisa que lhe acometia era aquela tristeza. Retumbante. Agressiva e longe. Descompassava os pés com um pretenso ritmo que não ouvia.

Parei a poucos metros dele, queria e não queria olhá-lo. Fazia muitos anos. Será que eu ainda fazia parte daquela tristeza? Certamente algum tanto, ninguém passa incólume por um amor. Será que ele ainda era ele? Certamente não mais algum tanto, os anos atravessam alma e pele.

O pouco das nuvens no céu desmanchavam-se esfumaçando os tons violáceos do horizonte. Um frio outonal apavorava os meus ossos e o casaquinho verde de linha pouco me bastava. Um tremor percorreu minha espinha, talvez pelo vento, talvez porque pensei que os olhos dele me buscavam. Virei de costas e andei. Não queria beber, mas o impulso me conduziu a comprar uma cerveja.

Demorei delicadamente em cada ato: num tom alegre e de intimidade perguntei qual cerveja ela tinha, indecidi-me, pedi a de sempre, quanto é, mais barato, vai? sei, entendo. Abri a bolsinha de moedas com estampa da Índia. Ele que havia me dado. Quantos anos… Que bolsa boa. Paguei, abri minha cerveja e bebi, lentamente, quando me virei, ele não estava mais lá.

Minha mente se acalmou por não mais vê-lo, mas aquela sombra de que agora era ele que poderia estar me observando me arruinava a naturalidade. Media cado ato meu, minuciosamente, na intenção de que, se ele estivesse a me olhar, visse apenas o ondular da leveza que existe e insiste apenas em ser verdadeira. Havia um desejo secreto em mim de que ele ficasse mais triste ao contemplar a minha altivez genuína.

Mas, inadvertidamente, eu ainda o procurava nos cantos, de esguelha, percorrendo cada rosto na multidão. Não o encontrei. A poucos metros, avistei Rebeca, fui até ela e por lá fiquei, ainda catando rostos ao longe, sem vê-lo em canto algum. No fim do show peguei o carro sozinha, não dei carona pra ninguém. Numa calçada mais à frente foi que o avistei de novo, caminhando no meio da noite, sozinho, ainda com aquela novidade de tristeza. De fato eu já não o conhecia mais, podia ser qualquer pessoa agora. Certamente, era. Parei num semáforo, ele ficou quase ao meu lado. Não se virou, apenas continuou caminhando, suspirando profundamente, olhar fixo no horizonte adiante.

Alguém atrás buzinou pra mim, o semáforo ficara verde e eu não havia saído. Caí em mim e parti, ainda a tempo de vê-lo mais uma vez. Muito tempo se passara. Era apenas um desconhecido no meio do noite, indo do nada pra lugar algum.

3831. Gazal efêmero

Os ipês com suas folhas belas
prontos a logo mais perdê-las

desnudados pelo céu azul anunciado
logo o vento de maio irá vê-las

esparramadas pelo chão vermelho
até que junho adentre em tê-las

Amarelo, violáceo, rosa ou branco
o cacho em cores ao dia candeia

os tons dos céus aos fins dos dias
repetem as flores ao procedê-las

Mas algo assim não se vivencia
só na selfie e na postagem tateia

A comida dos olhos para a alma
já não basta em si de si ser plena

é preciso o registro efêmero
como transitória é a vida ao sê-la

sem se viver do que é feita
resta o mero de uma imagem dela

E por tanto diluir o que o peito
queria concentrar até nas veias

o belo, a flor, a cor, a forma
viram algo de matéria etérea

Foi só um momento, um clique
um close, que quase pensou-se tê-la

3830. Duas Reginas

A casa era grande
espaçosa, ampla, arejada
a viola era o fetiche
o curral e a vida simples
dali eram antítese
bucolismo ostentação

para poucos
para poucas

e Regina conduzia
o álcool, a festa, a folia

Mas a outra ali,
Regina também
de um lado pra outro
lavava, lavava, lavava
rodo sustentação
– parou um tanto
olhou de beira
cantarolou a moda

E Regina, a dona
olhou fulminante
cantarolou a moda
e tomou mais um gole:

“Toca aquela do Jorge e Mateus”

partida: sem pausa

chega de luto.
chega de luta contra si.
a vida é plena e abundante.

problema?

problema é acabar com o racismo, a intolerância religiosa, o machismo, a desigualdade de gênero, as desigualdades sociais, a homofobia, a transfobia, o ódio que martela o coração que acha que sabe amar.

eu não tenho problemas.

eu tenho vida.

que como qualquer e geral, erra.

e da merda nasce flor.