3495. Menino da biqueira

Todo rolê que eu dava nas quebrada do Nascente
Lupa baixa eu já fitava um lekinho só no pente
Bem no meio da biqueira ele vinha indiferente:
“Tem de cinco, tem de vinte, pro freguês ficar contente”

Quando os rato então passava e a bura ia seguindo
Eu comprava um baseado e ele saía sorrindo:
“Valeu mano maloqueiro, tamo junto, ino e vino”
Por aquelas quebra loka minha lombra conduzindo

Nessas viela cabulosa várias treta já ralei
Mas nenhuma foi mais escrota do que essa que trombei
Num corre ali por perto, num sentimento eu parei
Subi pra biqueira vazia, o leke eu não topei

Desci da minha magrela e numa vala no lixão
Vi uma tia orando, perguntei de qual era então
“Maloqueiro, que desgraça, veja o corpo no valão
Quem matou o meu filhinho foi um milico, sem perdão”

Lá nas tantas de Águas Lindas, levando uma aparelhagem
Avistei o tal meganha, passei fogo no covarde
Hoje vivo só na fuga, os pé-de-bota na vontade
E daquele leke ligeiro, quando pá tenho saudade

O corpinho no valão a mente não deleta mais
Mas eu fiz uma promessa de justiça, liberdade e paz
Nem que eu tombe e das grade fique atrás
Nessa biqueira bandida, gambé se entra, não sai

3494. Demiurgo demente

O criador do meu universo mora abaixo da minha caixa craniana. Ele tem rizomas, raízes, fluxos e refluxos. É refém de algo que nele se instaura, que além o molda e que interno o castra. Meu demiurgo cérebro de primata algoz da natureza constrói o mundo em derredor, o físico e o sem físico. E, outro dia, fiquei encantado com aquele groove que percorria o ar, se encaixava com o grave do peito e baixo, me levava às alturas:

– Você ainda sente?

Claro que eu sentia. Era como estar nos idos de setenta e três, só que com angústia. Muita.

– Tô legal, é só uma inflamação nos neurônios. Eles se ligam à áurea, percorrem a kundalini e daí se enganam pelas trilhas da alma. Um engodo só.

– Ah sim, tá tudo certo. O diabo é não ser demente.

Demiurgo encantador e bossal. Ainda que se fizesse só matéria cinzenta e deixasse isso de querer ser mais que lucro racional, nessa uma de contabilidade emotiva. Como se disso fosse arder um clarão a sacudir os idos de setenta e três, quarenta e dois anos depois. A história se repete e nunca se refaz, um horizonte e um demiurgo e a quantidade de expectativa a explodir sua cara.

– Cara, você ainda sente mesmo? Ou já está no tempo da luz da loucura?

Claro que eu não sentia. Só interpretava as coisas ao revés, tentando tatear um porquê, que fizesse mínimo sentido. Só que sentido não havia, ou melhor, havia, uma via de mão dupla. Um ir e vir sem fim do demiurgo, ao demiurgo.

A demência já é posta. E é uma solidão completa.

3493. Ketu aqui

Atravessando esse rio de água de olho de gente
Um rastro rosa de ferro de fios de sangue quente
Correndo por um navio rasgando todas correntes
E acorrentado embaixo um povo como indigente

No meio desse transtorno um Rei veio vigoroso
Com seu arco e sua flecha para proteger seu povo
Para unir as duas margens num só continente de novo
Ele não era um índio, mas era como um caboclo

Repartiu-se em mil cabeças para não ser prisioneiro
Em cada cavalo um pouco do seu bravio guerreiro
Guiando os resistentes pelos matos bem ligeiro
Ampliando nessas gerais o traçado do seu reino

Que tal aqui?
Ketu aqui
Bem onde de seu arco
sua flecha ao chão fincou
Bem aqui
Oké arô!

3491. tão bom comprar

uma espiral de imagens gira
gif as a gift
um fractal de vontades criadas
emaranhadas entre
o contorno da matéria

histeria histórica da terra,
parte à parte, apartada, estranhada
e entranhada
em meus intestinos tensionados
fios que me tecem, tela a tela,
morada de neurônios numa tampa de iogurte
no meu bucho

e os contornos das cifras
prateadas brilhantes
atraentes, reluzentes, salientes
em dia e noite

uma vontade ressentida e despida,
envolve-se nos contornos
quase toco
falta o troco
miro o fim, me presto em partes
meu emprego que compra minha vida à prestações
sem juros ou correções
espirituais, monetárias,
apenas vontade e espirais

tonto eu tento e toco
o que me era imagem
jaz em meu bolso
sem troco
só parcelas
pedaços de raras terras
cifradas e não decifradas
suores e sangues
negramarelados

um fractal de vontades
no bolso
e eu
sem saber o que desejo

3490. instrução intrusiva transitiva de transa

prelúdio ministerial,
plataforma e sistema:

um séquito de sujeitos
frustrados com o sexo
o seu ou o de outras

quem lida e não deslisa
pelo vão do próprio
desejo, quando além espelho?

quem está se olhando
estacionária das
experiências de prazer
arauto das histórias de medo?

geral e ninguém
     
     
     
nos principais sites,
no intervalo de malhação 50 anos:

curso de masturbação
quântica-comunitária:
a salvação para o
desacordo dos desejos
– à distância;
com bolsa
(certificado de 320 horas)

3485. Bi

Começo pelo que não tem fim,
isto é, não infinito
progressão egométrica
matéria feita de imersões
em fatalismos:
o pico, o cume,
o ápice do ar, dor,
depois, abissal,
há dor. Apenas.

Termino pelo que não tem começo,
isto é, inexistente
proporção aérea
áurea erguida por pedras
longínquas:
o fosso, o poço,
o abismo do ar, morto,
antes, celestial,
amor. Tanto.

3481. Questões bausísticas

A cidade é uma só?
Se perguntava sempre.
Talvez, depois dos
escombros, reparava
e arrematava.

Os significados e sentidos
são estanques, instantes.
A depender das condições
meteorológicas do peito:
o motor das percepções,
jaula líquida da memória.

A cidade é uma só,
mas becos e vielas são
numas porções só.

Pedaço que é toda ela,
que não se manifesta.
Onde a festa é outra
e a farsa é fim.
Expectativa do último
capítulo da novela das nove.

A cidade é uma só
no fluxo cotidiano:
um só sono na ida
e na vinda,
do concreto ao cerrado,
e vice-versa.

E no sono insone de
cada dia massante,
o vai-e-vem da grana.

A cidade é uma só
pra quem pode:
pra quem quem sem
documento sem,
quando a cara e a pele
por si só dizem:
é alguém.

A cidade é uma só,
essa solidão comprida e cumprida,
também.

3479.

misto de militarismo e new age
a empresa pós-moderna,
salvadora da pátria, do mundo,
do multiverso

(extraterrestres empreendedores,
liberais ferozes que avançam
seu livre mercado da evolução
ao galope de óvnis
pelas galáxias
matando todos os deuses
e vendendo documentários
e canecas)

o cenário do capital
é algo entre alegre e decrépito
com um tom verde musgo pegajoso
boiando espuma num tietê

3477. flexível e liquidado

o primeiro passo é o medo
um temor que nunca passa
tremor que abraça e afaga
como o fio de uma navalha
e o corte de uma adaga

daí vem a insegurança
nada te segura, nada é esteio
tudo é estrago e desesperança
todo interno vira inferno
sem a mínima proteção

eis que assim surge a raiva
consigo, com qualquer
explosões dentro dos nervos
erupções no topo da cabeça
arrastão da calmaria

pois que a anomia se escreve
então benevolente e malévola
falta eu, nosso, norte
horizonte vida ou morte
falta passado, porquê, mote

disso tudo, só a ansiedade salva
feito presente nunca vivível
eterno retorno do que virá
embrulhando o estômago
parando nó no esôfago

e no fim, alienar-se de tudo, com tudo
rapidamente enredar-se como peixe
num mar de sem sentido
como todo o sentido, inválido
pornográfico, anárquico, liberal

e precário

3476. Dor que cabe à beça

Passei uma noite sem dormir
na leveza da gandaia.
Quando dia, claro até,
havia feito um big-bang em mim
e depois de duas horas
de olhos fechados
e nascimento de galáxias,
uma dor fina cerziu-se
bem no meio do meu cérebro,
se instalou bem arrumada.
Parecia querer unir
os lóbulos junto à testa.
Doeu. Doía. Dói.
Vivo com essa dor
costurada na cabeça,
emenda crânio, olhos, alma, tez.
Uma colcha de porções
de espaço sideral retalhados,
variações de planetas,
coisas meteóricas, doridas,
a cabeça.
De quando em quando,
fios se esparramam
e trapos de estrelas pingam
dos meus olhos,
cachoeira tecida em salvas.

3468. Vai vendo

Eu vou de bike,
pelo caminho, vê-se as ruínas
do antigo castelo dos sonhos brutos,
a cracolândia de quem não teve
direito às expectativas calmas,
os restos materiais para a
futura arqueologia dos sentidos urbanos.

Ao largo, os hieróglifos inauditos,
visíveis e invisíveis, paisagens já.
O pixo atrevido de cada dia.

No meio da ciclovia, o tiozinho de joelhos
e um saco vermelho preso na cabeça,
tapa os olhos,
ergue as mãos para os céus.

O céu é infinito e nos cobre.
A fiação é de cobre e foi arrancada,
moeda de troca em um mundo
de pouca valia a quem mais deveria valer.

Continuo,
passeio por essas galerias de arte a céu aberto
que são os muros das escolas.
Os grafites que dão graça à quebrada
que reproduzem o marco central,
a caixa que guarda a água
e lembra a luta de quem saiu de lá,
de onde não a havia e cá a queria.
A Caixa D’Água.

A coisa toda vai indo,
eu vou percorrendo.

A coisa toda é loka.

Eu, vou vendo…

3466. plano

Pessoas queridas e poucas que ainda me têm em suas vidas,
aviso que vou me matar.
Não se preocupem se o peso desse verbo enclausura seus peitos
de um acometimento desmensurado a moer as entranhas e umbigos.
Para que durmam o sono justo e tranquilo, mudo o verbo,
já atino: vou me enmatar.
Virar mato, mata, pau.
Virar essa inutilidade que alcancei primor,
esse desmerecimento da cultura.

Enmatar-me para que o que digo seja só sussurro de luz da lua,
segredado ao vento abafado e esbaforido,
como o que avoa e nem faz força para se des-ser.
Serei mata para me apoderar dos meus verdes
e tilintar sabiamente nos olhos da margarida
vida abelhas.

Enmatar-me-ei:
tornar-me terra, depósito de sombras e negrumes
que anuviam-se em água rio de dentro,
até gruta gritar os lodaçais que devem sair.

Queridas pessoas poucas que por acaso dos movimentos elípticos
ainda me aderem a seus sóis,
vou-me mato, momento raro de se desprender do ardor,
ser-me pedra, bicho, flor, desbotar-me os tons em paz
como ranhuras no ocaso, rasuras nas nuvens
rasgo laranja no negro do firme ar.

Enmatar-me para mato em si dar. Tá?

3454.

Quando morro, o que morre?
Será que é só isso envolto em terra?
Soterra?
Ou dos erros nova matéria?
Ou da matéria isso que volve
a ser morro, parte da terra?
Será que espírito se espraia?
Será que alma?
Nada será?
Será paz de árvore?
Será plácida?
Água?
Quando morro, o que morre?

3450.

Olhando daqui até parece que ninguém erra
Mas quantas culpas esculpem esses peitos?
Quantas fendas de angústias talham

as almas transeuntes?

Quantas dívidas, quantas pagas?
Poucos seres possuem a tez de

“piedade, eu pequei”

Quase ninguém conforma na cara seus erros
E daqui, desse perto alhures,

só se avistam os meus

e essa extensão toda de ser errático