Não sei rezar,
sei regar.
Será cada flor, um rogar?
Meu nome é Guilherme, poeta , professor de geografia da Secretaria de Educação-DF e mestre em geografia (UnB). Tive AVC em maio de 2020 (isquêmico) não consigo falar ainda. Tenho apraxia e afasia. Apraxia é um distúrbio neurológico motor da fala, resultante de um deficit na consistência e precisão dos movimentos necessários à fala. Afasia é uma alteração na linguagem causada por lesão neurológica.
Não sei rezar,
sei regar.
Será cada flor, um rogar?
Disparo contra o meu
peito. Amparo encontra
o seu, deixo.
– Vó, o matu tá qui é
todo torto.
– Não, mô fí,
ess’é a’rrumação di Deus.
– M’tendi, tudo zuado.
Guarda esse segredo:
em todo peito
há degredo.
viver?
eu me rendo
é certo que não aprendo
“Eu deveria ser transitório como a sombra sobre o campo.”
(V. Woolf)
Há coisas que explodem
e certas que se espremem.
Todas exprimem
algum tipo de exaspero.
A vida só começa
quando podemos
escolher não
mais tê-la.
Farto
do certo,
hirto
no horto,
surto.
Eu serro meus olhos,
daí sim
vejo.
Não se aproxime muito
– todo cuidado é pouco –,
sou do clã do infortúnio.
Dentro do espectro
do possível,
todo relacionamento
é abusivo.
O que se fazer em uma noite sozinho?
Tomar cerveja só.
E deixar o peito rasgar.
vai, sê delicada
dedicada
e despedaça
sua auto-afeição
seu amor-próprio
em cuidado
ou medo
dessa graciosa atenção
azaleias despontarão
e a beleza, roteiro cinematográfico,
cairá em desuso
como gadgets obsoletos
e uma fobia abissal
onipresente
onimpotente
cortará o mundo
nos pulsos
mas delicado,
bem delicado,
como um bisturi talhando a pele
para a plástica
e o plástico.
há beleza no mistério
quando há mistério
as partes sagradas cobrem meu corpo
e eu profano cada átomo
nominando-os e criptografando
cá as mortes assomam
concussões nas esquinas, becos, vielas
dezessete corpos desde a virada
em média
há guerras e ganhos
e há o fascínio do divino
tornar sagrado, religar
como se algo não o fosse
e tudo não se conectasse desde sempre
feitio de fibras luminosas traspassando
o que vive, pedra, peixe, pau
cá nos envolvemos com o sangue
encanta e embeleza o açoite
d’antenas aos céus captando
jorrando e como naus, nós,
singrando oceanos de sangue, bêbedos
do barro ao bento
cada ponto de começar
condiz ao sopro que arremeteu o pó das estrelas
por cada ligação sem nome no sem fim
e deu a maravilha da expansão
de se ver desde esse ponto araçá
cá decapitam aos desígnios da beleza
pelos contíguos do poder
de poder, não ter, ter além
explodir tudo, até que só nos sobre
amém.
cansaço, três doses de insônia numa noite de trinta horas
todos os dias
quatro sonhos trancafiados em pensamentos
sonhava ou pensava?
no cômputo da semana já se avistam umas quarenta e cinco
vezes trinta
doses sobre doses sobre doses
no ano encheria garrafas e mais garrafas de pálpebras
fechadas e nenhum dormitar
afinal, vive-se bem no engodo
o único sono factível
parece ser aquele depois de várias doses
dorme-se confuso, seco, encolhido na cama
uma imobilidade de duas horas
gosto de nicotina por todos os poros
nada em si adormece
tudo acordado: expectativas, ânsias, passados
o presente é apenas um estado eternamente desperto
e cansado.
explode as grades da garganta
as celas cranianas
canta
que tua voz é cristalina
de fonte profunda
indefinida
vem do centro
vem da terra
vem do vento
desorientado das manhãs
dos rasgos do solo
da solidão terçã
canta na língua destemida
de quem não se veste
e não dormita
no que vaga
no que erra
no que nada
transpassa o ar
desafia nuvens
com teu cantar
que tudo que alcança
o tecido a seda da tua voz
emaranha
enreda
trama
de se prender
e apreender
o que der
como dá
teu canto
prazer.
a verdade intocável
reside entre dois corpos
silogísticos
que em plenitude descansam
a máxima racionalidade
relacional
– sem humores e hormônios
: quando o querer é certo
indubitável e pleno
dá-se assim o encontro
a tal ponto
que é possível julgamentos
: oh, pobres mortais
que se atrevem a amar
não sabendo que
desse jeito, é errado
tristes foram os versos
que vieram depois,
humanamente amados
entre erros e incertezas
todos invadem
todas evadem
e tudo esvai
no plano do mundo
tento orientar-me
faltam pontos
e há essa rosa cardíaca
que cá inventa cantos:
normar
pólo líquido
voeste lestrada
céu de se pôr trilha nascente
cálida casa
suolar
hemisférios que se acham
inteiramente descobertos
onde esse mundo termina
do que é feito ele
efeito em mim
nos afeta e nos enfeita
quase aflige
mas de par somos feitos
e fora de nós dois
e em par ficamos
emparelhados na cama
enfermos, nos enfiamos
lençóis adentro
enfins afora
e nenhum fim emparelha em par
o certo é que enfileiramos
estatísticas
daqueles que flertam
por fora
com afinco
Quem me conhece na vida além telas e monitores, sabe que sou geógrafo de formação, segui os passos de minha mãe e fui estudar os fixos, os fluxos, os processos e as estruturas do espaço, dos territórios, das regiões, das paisagens, dos lugares… Fui atrás de territórios culturais, das relações de poder entre lugares, das hierarquias nas redes urbanas, das relações entre campo e cidade, da apropriação dos espaços naturais. Descambei estudando culturas tradicionais em espaços urbanos e fui terminar tentando desvendar o que a geografia escolar tinha para nos mostrar acerca das relações desiguais entre os gêneros.
Na sequência migrei para a arqueologia, fui descobrir as paisagens passadas e sua relação com as formas de ser do ser humano ao longo do tempo. Achei lindo tudo aquilo, o simbolismo das paredes pintadas, os restos de gente que aqui andou e forjou seus lugares, seus territórios, seus sagrados. Acabei estudando como seria possível pensar nas questões de gênero dentro da arqueologia, em como seria possível identificar esse estar “mais próximo” da natureza e a formação das desigualdades entre mulheres e homens tão ainda arraigadas no mundo. Queria ver se o passado podia dar pistas sobre o porquê disso tudo. Acabei me apaixonando pelo estudo da técnica e da tecnologia.
Foi aí que resolvi voltar para a geografia e estudar o diabo desse ciberespaço, dessa construção em rede que demove turbas a perpetuar desigualdades e preconceitos e ao mesmo tempo quer conectar esperanças e propostas para a desconstrução de algumas misérias humanas. Dissertei sobre os territórios do ciberespaço, sobre suas paisagens, sobre as redes e os fluxos informacionais que nos atordoam o tempo todo, que nos deixam sem pé no chão para o encontro de verdades, que deixa tudo frágil e efêmero, na velocidade de um clique.
Essa última imersão acadêmica terminou em 2013, mas desde lá que tenho tido arroubos distintos com o ciberespaço e a internet. Tem horas que quero mandar tudo às favas e me desconectar completamente, voltar às cavernas, sei lá. Em outros momentos, quero iniciar a revolução através das redes e conectar todas as pessoas de bom juízo numa grande massa de seres terrestres que irão tentar deixar isso aqui melhor. Nenhuma das duas coisas me basta e fico vagando entre um pólo e outro.
O fato é que ando meio querendo me livrar um tanto de algumas redes que me meti irrefletidamente e que, na real, não estavam me levando a lugar algum. As tecnologias são coisas que nos adentram de tal forma que depois do contato com elas fica difícil imaginarmos como seria nossa vida sem elas. Mas isso tudo é meramente uma produção de marketing. Nós não precisamos delas tanto assim. Dá pra viver sem certas tecnologias que nos empurraram goela abaixo como o suprassumo da conexão entre as pessoas.
Deletei quase todas as minhas contas nas famosas redes sociais. Percebi que sempre estive imerso em minhas próprias redes sociais, de afetos, de amores, de carinhos, de contatos, de conversas, de compartilhamentos, de vida. E nunca precisei antes de uma empresa que controlasse essas minhas redes e que, de quebra, vendesse minhas informações para alguma empresa de sapatos.
Enfim, esse enredo todo, é só pra dizer que será somente neste espaço que compartilharei as coisas que sempre gostei de jogar ao vento da aleatoriedade do ciberespaço: poesia, prosa, música, ideias. Cá me encontro de quando em vez, para que esse lado que em mim ainda quer a conexão com o mundo através das tecnologias tenha espaço.
Aproveito o ensejo para compartilhar duas descobertas desses dias de downloads frenéticos, em que tentei terminar a minha coleção de discos brasileiros de 2015:
tuas mãos miúdas
cá, colavam quase
eu segurei
como naquela música
vinda daquele poema
chuva que seja
miudinhas
lindas
chuva fina, passageira
outra vez te perdi
quando esse sol de todo tamanho
assomou
os fluxos não vão todos para si
a terra ainda gira em torno do sol
e o cuidado
é aguar uma roseira pequena
dentro de uma estufa num planeta minúsculo
podar um baobá
mas eu não sou eternamente
sou nada
e quem sabe de algo nessa nebulosa?
a saída
labirinto cabuloso
a escolha
como entramos
mas
comentamos
que sabemos
e sentimos
mentimos
e nos metemos
e remetemos
há fontes
sentidos
e sentimentos
outros alhures
referências bibliográficas Gilberto Braga
Leandro e Leonardo
tudo dado
nebuloso
educado
mão única da história
invisível?
se resigna
e não cobre
qualquer revolução
é fácil querer a mudança do mundo
quando em si só se cabe
mas, se é o mundo que queres
vai lá
se abre
ou bebe leite
eu magma, movediço, viscoso, destruidor
ela brisa, passa, fica, pacifica
entranho-me terra
exaspera-se atmosfera
entre nós
água
solidifica-me
chove-a
e nos agarra as partes, todas
talvez você esteja tão
perto, mas tão perto,
que não haja aperto
no peito, dado o
diagnóstico da distância
mas talvez você bem
do lado, possa ser uma
via láctea, entre nossas
lentes de enxergar o mundo
e aí só uma lerdeza
haja entre nós
talvez nem longe nem
perto, mas tal qual tudo
o que dista e une: para
todo magnetismo
há possibilidade
a cada aprovação, ela
sorri desajeitada
a cada minuto, ela
cai mais na cadeira
a cada bocejo, ela
se assemelha mais à lua
a cada arrumada de cabelo,
nela, meu desmantelo
a cada estacionar-se em si,
dela, é mais minha atenção
a cada suspiro longínquo,
aquela, se torna meu ritmo
a cada tristeza abafada,
por ela, o fim do suplício
pra ela: sou todo sorriso
Estou agora deitado,
de frente à porta do inferno, contam,
porque de enxofre é minha espécie
Meu juízo não dá conta de me por à lume
o que se dá. Porque há esse
tempo parado, estáticos segundos
e eu não sei se estou a ir
ou se ainda imerso no mesmo ermo
Labaredas azuis,
que assim é o inferno,
vem a mim por outros olhos
Não os meus
Olhos de algozes, de anjos,
encantados que esbarrei
e me projetam suas entranhas
tão límpidas, cristalinas
de paraísos mediúnicos, aleias, cometas
com a graça de uma dança
Acho que estou ali deitado ainda
com uma serpente por travesseiro
acho que de vez enquanto, enrolo-a
em meu pescoço, para passar mais calor
O problema é achar tanto, quando nada perdido
Estou encantando nalgum lugar
Ouço ao longe o trote dos anjos
suas asas batem como mariposas
Sempre há quem em mim veja
o condenado do peso demasiado,
que erra preso a uma bola de ferro,
por campos de humores ácidos,
dissolvendo espumas,
mas esse não sou eu
Sou sim, o próprio erro que avassala
Eu não lutei por nada, ninguém, nunca
só sangrei as luas não dominadas de outras bocas
E era só a guerra que contava
só os destroços e os espólios
Fui rio de lava para enredos de outros
e minha idade nem mais sei
Até diria as eras,
se o tempo voltasse a transcorrer
e me atirasse ao mar de magma, princípio, sempre
Sem algozes ou anjos
Saciei todos os pesadelos
esses mesmos que nunca me ocorreram
nos dias em que meu vulcão erupciona
Anos-luz me atravessaram,
falaram-me quem me via
E o espelho era irreflexível, turvo
desfigurava torto
Se cá estiveram,
deitados sob nuvens
querubins, fantasias,
incitaram em mim certos infernos?
Sei que deito:
o odor me alcança,
o calor me trai, mas não disseram
Eu vi o inferno à minha frente,
fui eu que bati na porta, espero abrir
Agora me resta levantar
e casto, árvore, procurar
o precipício do paraíso
por fim, resto-me por companhia
dura, bruta, pouco acolhedora
mas que me firma como raiz de castanheira
extraio dessa companhia
não os frutos
não sementes
mas o sempre,
vívido pulsante do agora
estar presente em si por companhia
me acontece assim
esse estado de coisas
de que céus astrais foi forjada
a complacência opulenta dos castanhais?
se na escuridão da mata, no mergulhar do sol
o que resta são os barulhos de bichos
a perturbar as partes
e o estalar fino de sua própria casca só
me tenho por companhia
e é nesse triste acontecimento
que se sente o soerguer-se
sinto-me galho e folhas
despontando aos céus astrais
sinto-me, bojo, caule, firme
contornando a minha existência
deparo-me com o que é mais segredado,
só a mim árvore:
no emaranhado da terra
entre o podre que permite a vida
sinto minhas raízes rasgando
terras, pedras, rochas, veios
fincando espaço de existência
sugando o néctar do solo
que há de me conduzir seiva
esse estado inanimado
que me humaniza árvore
enquanto solo
comigo só
por companhia
É um time sem reservas
técnico, técnica ou tática
Quando entra em campo
cem juízes e juízas
mais 300 bandeirinhas
dentro de campo,
na arquibancada e
telesperando nossa mancada
pela televisão.
É sempre um descompromisso
nossa escalação
nunca muda o time
pra perder de goleada,
nunca nem uma virada,
rebaixamento é a função.
Nossa linha de defesa
tenta ser bem azeitada:
são cinco só na zaga
Uma muralha intransponível
que só vive vazada.
Dessa barreira torpe
a primeira é Natália
gata nova bem arisca
nem um tanto feminina
curte mano e também mina
e em lágrima e sentimento
se destila.
Na sequência vem o Silas
celibata por opção
tem dez anos que não trepa
sem caretice ou chateação.
Bem do lado tem Tainá
essa curte mesmo é dar
mas de tão tão doada
pela rua é toda zoada
que chega a magoar.
Como quarta da barreira
vem a Bruna bem faceira
ainda mantém um aparato
no calção bem guardado
o avesso do outro lado
teso de não ser mulher.
Fechando essa fronteira
vem o capitão Guelé
que um dia mais sem menos
resolveu ser quem ele é
e amou o mundo inteiro
sem qualquer preocupação
e por ser em demasia
sua marca foi a traição.
Bem atrás dessa barreira
vem a nossa goleira
Chiquinha Caminhoneira
na retranca a vida inteira
resolveu alvissareira
declarar-se sapatão
e depois de por seis anos
ser casada com Tonhão.
Um pouco mais avançado
à direita vem Bernardo,
vulgo Pura Tentação
De longe o mais dotado
físico inabalável
é por si apaixonado
e pra alguns iguais é dado
só por sexo e tesão.
Do outro lado, pela esquerda,
bidestra com certeza
vem Fátima liberada
tão sincera em seu ardor
da entrega ao amor
que em meio a tanta gente,
sempre fica só com a dor.
De volante, quase ao centro
só um tanto à frente deslocado
vem o maestro desse time
Otávio, o otário
Vez por outra sempre apaixonado
perdidamente por aquele
que dura uma semana
e é por ele abandonado
mesmo até trocado por ela
a quem o amor não emana.
Sei que o time é incompleto
há duas vagas e sem reservas,
mas no rol de quem não se adéqua
sempre há espaço pruma tabela
cruzamento ou esbarrada
até chute na canela
e carrinho por trás,
seja ele, ela ou dela
aquilo, aquele ou aquela
na pelada há vagas por demais.
O problema é que a vitória
ou empate nunca rola
especialistas em derrotas
nossa equipe inadequada
perde sempre de goleada.
Uma coisa deixo claro,
nosso time até se estrepa
mas o jogo é cadenciado
todo mundo que experimenta
não quer sair desse lado.
A gente gosta mesmo
é do jogo aberto
tudo às claras
quando em vez nas escuras
mas, nossa inadequação é certo
só não se adéqua por ser rara
é só jogada que perdura
pelas eras, pelos séculos
deixando geral de cara.
meu amor
tem sangue
nos olhos
não escolho
de encarnado me molho
ferro doce líquido colho
o árduo esforço
sanguíneo de erguer
moradas casas
primeiro o alicerce
fundação fundamento
ego concreto escudo
esteio abrigo
o que sobra após
as sombras dos
escombros quando
desabado desmorona
se frágil não sobra
nem sombra só partes
tudo cacos pedaços
perfeitos enquanto em pé
depois as paredes
tijolo a tijolo
por cimento ligados
projeção do conforto
erguidas a duras penas
se o projeto é falho
as paredes enclausuram
tem que haver espaço
para janelas claraboias
portas portais umbrais
o livre ir e vir
de ventos e vidas
de luzes e astros
senão se amofina
se infiltra e casa
alguma se atina
sem um fora que
ao redor se avizinha
uma morada erguida
só a é envolvida
quando alguém a habita
e dá sentido de dentro
contraposta ao circundante
que a conflita
mas há que se cobrir
as paredes com uma
camada protetora
contra tudo que do
céu desaba caído
raio chuva meteorito
uma assustosa trovoada
com telha telhado zinco
palha tá pronto
o básico do abrigo
estruturada a morada
feita com tudo o que
vem de fora para
se proteger do lado
de fora e num dentro
se pertencendo
é por isso que depois
do básico feito para
o abrigo se enfeita
se adorna se arruma
dá brilho as cores
as formas ladrilhos
aquilo que encanta
mosaicos vidros
o que é feito para
se gostar um patuá
um feitiço o superficial
sensorial meramente
contemplativo no fim
na morada habitação
de fora protegida
por dentro construída
descansar justa medida
até uma reforma qualquer
medita só
olha o
sol que lhe dão
vim dizer vozes que se fazem
vim dizer ventos que se arrastam
vim dizer veios d’água pelas veias
vim dizer vórtices que embaralham
vim dizer velas abertas e acesas
vim dizer vazios que se preenchem
vim dizer você que não cala
há quem eu acompanhe
obra posta
tudo já aglutinado
livro e coletânea
no seu caso
o acaso me deu você
verso a verso
Às vezes é puro binário
combinações aleatórias ou programadas
algoritmo insensível ou molécula – varia
me conduz mares ou montanhas,
os condutos dos prazeres.
Mas sendo binário é nunca
impossível
e se agrupa ao meu toque, avança territórios
descortina mundos
falsamente.
Tanto faz se tecla ou toque
sendo binário é nunca a verdade.
E às vezes é denso magma
de derivas erupções ou ilhas
encarnado e negro de massas, teatro
não bem interpretado
catastrófico
Mas sendo magma é rocha
indestrutível, mutável
ao longo de eras, quânticas agora, sub-atômicas.
E sendo magma é raro
morre
câmbio incessante, sendo magma
logo se infunde e
arrasta pelos ares, magma, em ondas
se transmuta em códigos
binários.
Há momentos em que estamos mal. E isso não é necessariamente um problema. Afinal, o que é estar bem? Há uma questão de definição aí. Uma questão ontológica. Axiológica, também, sem dúvida. Há também um problema cultural aí. Histórico e cultural, do rol da domesticação dos sentidos, dos sentimentos, mesmo até dos afetos.
Volto, então, à pergunta: o que é estar bem? A nossa educação sentimental, tão pouco falada, mas tão tanto empreendida, é possivelmente a culpada para que encontremos elementos poucos para informar o que é estar bem e ao mesmo tempo, elementos todos para definir o que é estar bem. Não vou me atrever ao desgaste da atividade, que julgo improfícua, neste momento. Prefiro que pensemos naquilo que nos demove a identificar o que é estar bem para uma pessoa.
É claro que sei que alguns elementos são imprescindíveis para se estar bem, como o conforto material, não estar com fome, o conforto físico, estar saudável… enfim, é um sem-fim de coisas que poderiam nos afetar como imprescindíveis ao estar bem. Mas percebemos que, mesmo estes elementos, são relativos e contextuais. Há quem esteja muito bem sem comer nada há mais de um ano e com o braço esquerdo levantado sem repouso há pelo menos dois. Há. E estão bem.
Então, o que é estar bem? Tudo bem, devo situar o meu discurso, falarei desde este lugar “ocidental” – à revelia deste nosso sul-ocidentalismo-afro-ameríndio, mas ainda assim, ocidental, como tudo o que se globaliza. Assim posto, conduzo a argumentação, me utilizando da nossa educação sentimental cotidiana para abordar o tema.
Como nossa educação sentimental trabalha com a percepção de estar bem conosco? Ela opera em diversos sentidos, com as mais variadas facetas e os mais variados modos de se apresentar. Uma novela, um ditado, uma história, um fato, um livro, uma música, um comercial, enfim, qualquer narrativa carrega, em si, uma forma de se pautar o que é estar bem. Claro que sempre trabalhando com o contraditório: nos apontando à face o que é estar mal.
Somos massacradas diariamente com uma educação sentimental que domina nossos horizontes de escolha e diminui nossa margem de possibilidades. Educam-nos, por exemplo, que estar bem é ter um emprego, que estar mal é ser desempregado. Educam-nos, também, que estar bem é ter um amor, estar mal é não ter um amor. Educam-nos, ainda, que estar bem é ter bens, estar mal é não ter bens. Educam-nos, por pressuposto, que estar bem é ter uma vida sexual ativa, estar mal é não ter uma vida sexual ativa. Educam-nos, disso exposto, que estar bem é ter saúde, estar mal é não ter saúde. Mas estas definições podem ser vinculadas a argumentos negativos, como, por exemplo: estar bem é não usar drogas, estar mal é usar drogas. Enfim, estar bem é amplo pra caralho. Estar mal, também.
Eu por exemplo, julgo que não estou bem, logo, sinto que estou mal. São condições excludentes, aparentemente. Aparentemente, porque, às vezes, coisas inexplicáveis ocorrem, como saber-se bem e mal ao mesmo tempo, ou bem em estar mal, ou mal em estar bem, dando coesão a incoerências, é como seu próprio nome:
Impresso
como parece estranho
o mesmo nome
com que te chamam (MARQUES, 2015, p. 14)
É estranho mesmo, sentir-se mal e pensar-se bem ao mesmo tempo. É uma incompreensão textual e de sentidos. Coordenada. Interna. Dentro de si. No caso, dentro de mim. Dispor disso é difícil, estabelecer prumo do que ocorre é quase impossível. Dada a nossa educação sentimental que impede a coexistência de contraditórios – quiçá de paradoxos! –, é tarefa inglória tentar traduzir o que se passa de um modo que não leve em conta a forma única que te – me – ensinaram a traduzir os sentimentos: ou se está bem ou se está mal. Impossível uma outra Tradução, como n’
Este poema
em outra língua
seria outro poema
um relógio atrasado
que marca a hora certa
de algum outro lugar
uma criança que inventa
uma língua só para falar
com outra criança
uma casa de montanha
reconstruída sobre a praia
corroída pouco a pouco pela presença do mar
o importante é que
num determinado ponto
os poemas fiquem emparelhados
como em certos problemas de física
de velhos livros escolares (MARQUES, 2015, p. 22)
Nestas horas em que o corpo – alma talvez? alma também? alma além? – não consegue encontrar limite específico para traduzir o que se passa dentrures, não resta muita coisa a se fazer, a não ser sentir, pensar e tentar continuar a construir uma possibilidade que seja distinta do que a educação sentimental – panaceia – nos aponta. Nestas horas, busca-se – busco – um Esconderijo, em que se possa atrever palavras que possam dizer – mesmo caladas – o que ocorre interno:
Estas são palavras que eu não
deveria dizer
palavras que ninguém
deveria ouvir
que elas permanecessem no silêncio
de onde vêm
no fundo escuro da língua
cheio de doçura e ruídos
com o ranço informulado
dos segredos
por via das dúvidas escondi-as aqui
neste poema
onde ninguém as vai encontrar (MARQUES, 2015, p. 26)
Eu-poema. Disfarçado o sentido do que não pode o conter, escondido dentro do que se precisa para; resulta ainda, outro problema, oriundo dos acasos que não cessam e que destroem toda a tentativa de massificação da educação sentimental possível. Quando estar bem e estar mal se encontram, com hora marcada:
Combinamos por fim de nos encontrar
na esquina das nossas ruas
que não se cruzam (MARQUES, 2015, p. 40)
Nesses momentos de encontros inusitados, que se processam à revelia do que se espera, que deixam um gosto de anormalidade em si tão prazeroso, é que se entende que as coisas são mais esdrúxulas do que se imagina, e que ter-se em si de modo vário e deseducado sentimentalmente, é estar bem, mesmo se estando mal, como:
As casas pertencem aos vizinhos
os países, aos estrangeiros
os filhos são das mulheres
que não quiseram filhos
as viagens são daqueles
que nunca deixaram sua aldeia
como as fotografias por direito pertencem
aos que não saíram na fotografia
– é dos solitários o amor (MARQUES, 2015, p. 60)
Daí se transforma em cinza, uma mediação entre o branco e o preto. O preto sendo o ápice de estar bem e o branco sendo o cume de estar mal. E tons cinzas pincelando a sua anormalidade emocional. O foda, é que
Ainda é tarde
para saber
Ainda há facas
cruas demais para o corte
Ainda há música
no intervalo entre as canções
Escuta:
é música ainda
Ainda há cinzas
por dizer (MARQUES, 2015, p. 65)
No fim, não dá pra saber muita coisa. Isso tudo posto é apenas um apanhado de impressões de quem não gostaria de se definir decididamente entre uma coisa ou outra e que não só não gostaria como tampouco consegue, não apenas por força de intento ideológico, mas por defeito de fabricação genuíno. Redundo, então, afinal: O que eu sei?
Sei poucas coisas sei que ler
é uma coreografia
que concentrar-se é distrair-se
sei que primeiro se ama um nome sei
que o que se ama no amor é o nome do amor
sei poucas coisas esqueço rápido as coisas
que sei sei que esquecer é musical
sei que o que aprendi do mar não foi o mar
que só a morte ensina o que ela ensina
sei que é um mundo de medo de vizinhança
de sono de animais de medo
sei que as forças do convívio sobrevivem no tempo
apagando-se porém
sei que a desistência resiste
que esperar é violento
sei que a intimidade é o nome que se dá
a uma infinita distância
sei poucas coisas
Sei que esse livro mesmo me pegou assim: estando mal, estando bem. Ou estando bem, estando mal. E me deixou muito bem. Embora eu continue mal. Porque este é um livro, que em si, já é

A gente vai se parecendo a cada poema.
BIBLIOGRAFIA:
MARQUES, Ana Martins. O Livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
PS: Uma Ana Moura, só pra corroborar a coisa:
se deixar
como se estivesse
na banguela
deixar o corpo fluir
como carrinho de rolimã
numa manhã de terça-feira
de um julho qualquer
numa ladeira toda
deixar correr o corpo
corar a alma
desabotoa as vestes
desabrocha
se deixa
dá
a gente vive um jogo
efêmero de captar obviedades
e reerguer discursos
do meio de escombros
mas cada nova palavra
gera um rombo
entre o turvo
espaço curvo
de nossas bocas
táteis
é tanto urro em meio a murmúrio
saltando do óbvio ao absurdo
que nossas bocas bipolares
nem sabem
que se atraem
opostas
não frita
nem atrita,
não é paradoxo
é encontro e desoprime
e brilha:
a liberdade é segura
e a segurança é livre
mudo, como o vento
de pressão em pressão
e minha cabeça
ao relento
mudo, como o vento
a poeira – palavras –
pouco pousam
percorrendo
mudo, como o vento
nuvens nublam
descortinam sol;
céu cinzento
mudo, como o vento
nada diz o vagar,
mas sim o silêncio,
me sendo.
carrego uma dor comigo
que eu não sei de onde brota
mas carrego
há muito que carrego
ela me rega
e depois jorra
flâmulas boiantes
no mar verd’oiro
das manhãs
concordo avesso
com o poetinha:
é sim, fundamental
está em todas, todos
é alicerce de tudo
tal e qual
a luz do fim
galhos pousada
folhas fotossintetizadas
brilha amanhecendo
deixa a epígrafe
assim
se des
sendo
até parece que
nesse amontoado de aço
ferro, vidro e borracha
há paz,
palha.
De todas as coisas, a que mais me toca é provavelmente a música. De certo que foi ela que me demoveu às palavras. Foram elas, as cantadas que me sortiram a cabeça de enternecimento. Foi a música a culpada. Ela e meu peixes na Casa 1. Algumas das memórias mais antigas que tenho estão relacionadas a ela. Lembro-me da vitrola lá em casa, os vinis escutados atentamente, os infantis com histórias de Mágicos de Oz, porquinhos, lendas, cantigas de roda, várias feitas de infância contadas e cantadas. Sempre as adorei:
Depois veio o acometimento das músicas de gente grande, tudo graças à minha mãe: Caetanos, Cantorias, Gilbertos, Gals, Marias, Quintetos, Rauls, Cazuzas, Chicos: quando a Roda-Viva começava a rodar, eu rodava e rodava e rodava na sala, até tontear, deitar e olhar o poste pela janela imaginando que quando rodava e deitava no chão, eu conseguia perceber que a Terra girava, e ela girava. Nas voltas do meu coração:
As músicas sempre estavam a me margear a cabeça, a me compor a alma, os ânimos, o meu eu. Lá pelos dez, onze anos, uma das que mais me tocava era essa do Cazuza e Angela Ro Ro:
Era denso, era forte, era estranha a sensação. Um medo do profano, um receio do que se passava no além, de quais seriam os projetos do além, era uma tristeza e uma certeza de si. Escutava várias vezes, com a cabeça enfiada dentro do buraco reservado para a caixa de som da estante de compensado. Essa faixa é furada nesse vinil que ainda hoje tenho.
Na mesma época, outra que me tocava absurdos, era essa do Raul que vinha toda melodiosa, calma, esperançosa, como algo que fosse se conhecer, se achegar, ainda que fosse de noite:
Daí eu fui ficando mais “velho”, e ao mesmo tempo começando a me dedicar às músicas da moda, ao que tocava nas FMs da vida, na Rádio Cidade. Fase em que eu ainda não era eu, ou que talvez eu tinha perdido o meu eu, para um eu coletivo que, sinceramente, dispenso. Ainda bem que durou pouco tempo. E logo fui novamente ao encontro do que me tocava de verdade. Com a ajuda de minha irmã e do meu irmão. Tudo bem que eram música um tanto agressivas, um tanto conturbadas, mas me ajudaram a perceber o que eu gostava de verdade. Encontrei nas minhas memórias essas duas, a primeira, fruto da minha irmã e a segunda, oriunda do meu irmão:
https://www.youtube.com/watch?v=MWZwjnNIiFc
Não coloquei os trash-metals, punk-rocks, hard-cores, rap-cores, raps racha-cucas e afins que na época me tocavam muito, principalmente para descer a ladeira da Feira do Produtor de skate, porque eles não me tocam muito hoje em dia, ainda gosto de uma coisa outra, mas, enfim, foi-se uma época. A musicalidade dessas duas aí de cima, ainda me tocam, me marcam, me equacionam de alguma forma.
Mas desde aí eu comecei a ser eu um tanto mais. É claro que sempre imiscuído por essas três figuras – mãe, irmã, irmão -, mas já dotado de uma individualidade nova, própria de quem tem os seus quinze anos. Foi aí que eu comecei a me hippieorongar por conta própria, costurar “pizzas” nas minhas calças para deixá-las boca de sino e me aventurar pelo macramê, imaginando paisagens como essa:
Ansiava por lábios cor de açaí, céus azuladamente celestiais, trens e mais trens:
Atravessando brasis, regiões. Tudo era ansiado, era quisto. Ainda que do alto da minha impávida condição de menor de idade, tudo o que me restasse se resumisse a uma vitrola e um quarto, sós:
Tentando falar com alguém, sem coragem para o quê ou mesmo quem. Rabiscando palavras em cadernos e mais cadernos. Querendo algo sem saber. Sozinho, no escuro do quarto. Com algo preso na garganta, para ninguém:
E depois das explosões, só nuvens negras:
E me ilhava, só, sem ninguém. Durante muito tempo foi assim. Durante um longo, longo, tempo. O pode-crerzismo ainda persistia, mas eu, então, já com a cabeça contaminada por Carlos Castañeda, me atinei que, talvez, mergulhar em outros universos fosse a solução para sair da fossa de amar não amando. E me debandei para o misticismo nordestino de cabeça:
Durante um tempo, a psicodelia foi a minha salvação. Os universos paralelos, os seres siderais, os deuses astronautas. Era tudo o que eu podia ansiar, visto que o amor trafegava léguas de mim. Fui ruralizando um tanto, só pensando na minha casinha no campo:
O diabo é que faltava a tal da Rosinha. E quando eu menos esperava, já estava, de novo, com o amor nas têmporas e ouvidos. A sorte foi que naquele momento, enfim, apareceu um alguém do outro lado para ansiar alguma resposta. Que nunca vinha:
https://www.youtube.com/watch?v=yVpq8j23oHY
Isso que foi o que se sucedeu comigo até completar os meus 17 anos. Ano de 1999. Um tanto com ela, um tanto por causa dela, a música. Pra lembrar o que se passou nos 2000, tenho de fazer um esforço maior. Porque aí já tinha mp3, muitos amores, muitas dores e um sem fim de trilhas sonoras para cada momento da vida…
L I V R (Á) M O R
INTERIOR – DIA (INTERIOR – NOITE)
Amanhece lá fora. Da escuridão das janelas cerradas, acho que chove. Há um fino murmúrio de gotas insones desde há muito. Sento-me na cama burocrático, o celular ainda não despertou. Olho o celular, faltam três minutos para o despertador tocar. Sempre assim, perco os três últimos minutos do sono, sentado na cama, esperando que ele desperte. Se ficasse na cama, não dormiria mesmo, continuaria aquela insana perspectiva de saber que o sono já tem de ir e ainda estar um tanto imerso nele. Prefiro a dor de contemplar os três minutos, sentado na cama, olhando o celular, esperando cada minuto ir e, finalmente, me levantar. Esses três minutos demoram bastante, já pensei em meditar nesses três minutos, esvaziar a cabeça, deixar que a inflamação pousada no meu cérebro se contente em ir embora com o lavar da mente. Nunca consegui. Mundos e mundos se emaranham em minha mente, mesmo de manhã cedo. O celular toca, desligo o despertador. Levanto-me. Na cozinha já é dia, olhos todos aqueles objetos e tento imaginar o que devo fazer. Comer algo é a melhor solução, sempre. Tomar o remédio pra pressão, tomar o multivitamínico, tomar o ômega 3. Com goles de água gelada direto da garrafa. O que comer? As bananas estão passando, a última maçã, podre. Jogo fora. Dentro da geladeira tem um resto de mamão picado desde há muito. Faço uma vitamina com o que ainda deu para aproveitar de duas bananas passadas. Faço uma xícara de café. Bebo devagar, o amargo e quente me entranha. Uma letargia suplicante me atinge, preciso tomar banho. Procrastino no celular, leio quatro horóscopos, em diagonal, passo o olho nas notícias. Abro e-mail, apago cinco, tudo spam. Abro dois. Notícias. Abro mais um, horóscopo personalizado. Olho o banheiro. Vou pra fora e fumo um cigarro. Procrastino mais um tanto no Twitter, revoltas, ataques, ciberataques, altas, baixas, ódios, músicas, poesias, tudo em transversal. Tenho uma ideia brilhante para 144 caracteres. Escrevo. Leio-a cinco vezes. Fecho o aplicativo sem enviar o tuíte. De que vale uma brilhante constatação acerca da vida? Ninguém vai ler. Alguém vai ler. Cinco pessoas lerão. Eu lerei cinco vezes depois de publicado. Volto pra cozinha, olho o banheiro. Se ainda tivesse Facebook seria mais meia hora de procrastinação. Tomo banho finalmente. O ato é mecânico, rápido. Nem sinto meu corpo. Nem sinto a água escorrer pelo meu corpo. Nem sinto o sabonete deslizar pela minha pele. Não sinto os dedos junto ao xampu massageando a cabeça e a barba. Não sinto o sabonete de enxofre no rosto. Não sinto o frio que se instala quando desligo o chuveiro. Não sinto a toalha que precisa ser trocada secando o meu corpo. Não sinto meu corpo nu diante da pia. Não vejo meu corpo nu. Não sinto o hidratante em minha pele. Não sinto o desodorante em minhas axilas. Não sinto a escova e a pasta em meus dentes. Não sinto o perfume que passo. Não sinto as roupas que me cobrem. Não sinto o ritual que se segue: pasta, espelho, olhar turvo, oblíquo, insensível, chave, porta, portão, rua. Não sinto.
EXTERIOR – DIA (INTERIOR – NOITE)
Entre a casa e a parada de ônibus, poucos metros, poucos passos. Meu corpo pouco, insensível, passa pelas ruas como se não as houvessem. A chuva já não há. Só as calçadas molhadas, as poças no asfalto, a urgência de quem esperou que ela cessasse. O horizonte é chumbo e denso, ainda há de vir outra chuva. Ainda há de desabar aos cântaros tudo sobre nós. O céu ainda há de se estatelar líquido sobre nossas cabeças. O firmamento ainda há de derreter bases, desmoronar rios, enfeitar lagos em nossas cabeças, infiltrar mares em nosso peitos. Como em todo fim de ano. A parada é só um ponto. Nela estou eu. Um ponto. Um ponto. Um ponto. .
ÔNIBUS – DIA (INTERIOR – NOITE)
A estrada é longa, sucessão de paisagens que não param. O espaço não para. No fundo, depois de espasmos corporais para não espremer ninguém, não roçar em nada, não existir para além do incômodo de percorrer todo o corredor, bem lá no fundo, sempre há vaga. Um vaga. Nela eu me instalo. Planeta solitário em meio àquelas tantas constelações. Cada uma delas, interna, em seus gadgets. Galáxias explodirão em algum momento. A paisagem é lenta. Um carro por minuto. Uma vastidão de solidões protegidas em metal e vidro. Ninguém se importa com isso. Nem eu. EU me importo com o sêmen gasto, os óvulos ocupados, nove meses de trabalho para isto. Proteínas perdidas num mar sem fim de auto-criações, cada uma mais grotesca que a outra. Eu devo parecer um demônio. Alma. Ninguém me vê. Eu não me vejo. O livro derrama enredos, histórias, pesquisa, dedicação, eu me enredo nas imagens, sem paciência, só paciência. Meio carro por minuto. Depois do gargalo tudo flui. E a manhã continua. A luz que sai de dentro das nuvens é qualquer coisa para lá de luz, é como se a matéria da luz pudesse tomar a forma de todas as cores e todas as árvores refletissem essa matéria, reflexo da perfeição, momento da imperfeição do caos. As árvores são as coisas mais lindas que existem. Uma epifania. A luz da manhã é uma das coisas mais lindas que existem. Outra epifania. Juntas, sou só enternecimento. É como se eu derretesse e me espalhasse em tudo. Ainda vale. Algo ainda vale. Elas ainda valem. Eu só preciso delas.
EXTERIOR – DIA (INTERIOR – NOITE)
A massa de constelações turbilhona. O caos se antecipa, se antevê. Logo mais tudo arderá. Agora, só um balé apressado. Nascimento de galáxias. Minha mente. Caminho, pelo caminho, apenas os vazios arquitetados, as pistas, imensas aos lados. O concreto armado. Minha mente, solta. Mundos e mais mundos. Nada me centra. Tudo me tenta, me atenta. Flashes o caminho. Flashes. Ruídos. Céu aberto. Peito incerto. Tudo dentro de mim.
INTERIOR – DIA (INTERIOR – NOITE)
Sento-me em frente ao computador. Em. Frente. Ao. Computador. Enfrente. Eu, enfeite. As horas desmoronam me erodindo. Às vezes vozes vem. Imagens vem. Cliques. Pedaços delas lá fora. Algo vale. Elas valem. Vivo para que elas valham. Sentado. As horas inundam meus olhos. Um mar de luz branca me invade, luz fria, ela não vale. O que me invade? Nada me invade. Covarde. Horas, horas e mais horas e mais nada. Parece que acabou. Por hoje. Amanhã é terça.
EXTERIOR – DIA (INTERIOR – NOITE)
No fim do ano, o dia nunca acaba.
ÔNIBUS – DIA (INTERIOR – NOITE)
A mortalha negra do céu parece querer cobrir aos poucos a terra. Daqui a pouco, só luzes e flashes, e paisagens limítrofes. Mas ainda é dia. Encosto a cabeça na janela. Parece que durmo. Acordo ainda dia. Duas à frente, a minha parada. Enfrente.
EXTERIOR – DIA (INTERIOR – NOITE)
Quando a noite há de chegar mesmo? A vida no subúrbio tem momentos muito específicos de acontecer. Esse é um deles. É quando a vida vaze. E ela vaza, por todos os lados. Abro o portão. Anoitece.
INTERIOR – NOITE (INTERIOR – NOITE)
Os rituais se restabelecem. Menos roupa. Menos ânimo. Menos fome. Menos líquidos. Como torradas secas, sem nada de acompanhamento. Bebo água, várias vezes, direto da garrafa. Procrastino no celular um pouco. Estraçalho o celular no chão. É assim, todas as noites. Fico sentado na cozinha algum tempo ainda. Olho lá fora. Fumo um cigarro aqui dentro. Bebo mais água. Molho as plantas. Meus olhos me molham. Fumo um cigarro pelos olhos, para me secar. Molho os gatos. Dou comida para os animais. Fumo os molhos. Algo vale. O que mesmo? O peito parece ser número 55 vestindo 38. Um demônio que ninguém vê. Alma penada apertada. Passeio com o cachorro, cheira todas as árvores, caga duas vezes, mija em todas as árvores, se alvoroça com qualquer animal. 15 minutos de duração, duas quadras à frente. A gente volta. Eu passo minhas roupas para o dia seguinte. O que valia mesmo? Bebo muita água, desabo mais, olhos afora, peito adentro. Me adentro. Fumo um cigarro pela cabeça, minha cabeça toda fuma um cigarro. Lá fora, no chão molhado, fumo, passo ali o tempo fumando. Quebro outro celular. Todas as luzes da casa apagadas. Eu não me vejo. Não me sinto. Deito no chão do quintal molhado, por instantes, eu sinto o chão molhado tocar minha pele. Alguns segundos, frio. Molhado. Meus olhos se conectam com o chão, como se tudo fosse uma única e mesma matéria. Um fluxo constante. Alimento o chão molhado horas à fio. Mundos em minha cabeça expelidos olhos afora. Me enrolo no chão Me molho todo. Algo vale. Algo vale. Me levanto tonto. Fumo mais um cigarro. Bebo mais água. Me seco. A cama parece ser o lugar mais aprazível. Deito no escuro. Frio. Mergulho no escuro, não sei se estou de olhos abertos ou fechados. Não sei se sonho ou se penso. É tudo uma continuação só. Minha cabeça não para. Abro os olhos e vejo os sonhos. Fecho os olhos e me afogo, real. Noite adentro. Dentro de mim. Talvez eu já sonhe. Talvez. Talvez. Sento na cama. Olho o celular, todo estilhaçado. Duas ampulhetas quebradas jogam areia em meus olhos. A lama é escura. A noite é escura. Eu estou no escuro. Dentro de mim. Lá fora chove. Eu escuto o silêncio dela. É um murmúrio quente. Abafado. Bem no centro da cabeça. Deito de novo. Acho que durmo. Não há música alguma, não há qualquer movimento. É só, quando danço.
INTERIOR – INTERIOR (NO INTERIOR)