3397. a marcha

botas ecoam pelas avenidas
cadenciadas, ritmadas
legiões formadas em púlpitos
aparelhadas embaixo de altares
fileiras de medo e glória
esquizofrenia e paranoia
entoando a oração final contra
a nova perseguição a cristãos

turbas se aglomeram aos montes
prontas a decepar a cabeça da rainha,
como se houvesse rainha

imperioso, o ódio desconhece a ironia
vocifera apenas o pastiche
pastelão, a vontade de potência mais podre
torpe, turbilhão

as classes tomam ciência
as cores se aglomeram “esclarecidas”
as orientações se agrupam, normatizadas
corpos binários e revoltados contra qualquer multiplicidade
o mote deve ser único: um feixe de luz

os números saltam aos olhos
as cores se apoderam de significados
o teatro ideológico vira campo de batalha
e uma mortalha de estrelas cobre o mundo

o exército que salvará é de salvação
contra a danação do pecado e a pandemia da corrupção
coronéis se preparam, de amarelo e youtube
armas em punho, sentido!

sentinelas e guardiões da modernidade
não aceitam o que vem depois
querem o ontem, perfeito, como talibãs

a armada do combate contra a praga de todo o mal
é amante de toda a moral
e do epíteto ecoado do mote liberal:
a solução, meus caros, não é social
é antes de tudo e para sempre, do livre capital
além do que é necessário aplicar a pena capital
e reduzir a maioridade penal
e aceitar que a vida é desde sempre fetal
e que toda droga é fatal
e que não se deve ter prazer anal
e que a felicidade está no além carnal
e que toda mulher tem o gene do mal
e que o egoísmo é solução em si mesma, enquanto tal

a marcha continua, avante
incessante, impulsionada pelos bastiões da informação
os donos do definitivo processo de educação
(decepem até mesmo educadores, decepem, decepem, intervenham)
os formadores de opinião
planejando o futuro em torres de castelos
        
        

o futuro é lindo e quisto
então, vamos amar?

3396. Atrevimento

O que o plasma anuncia em seu instante selvático ao largo do sol?
Quem se atreve a dizê-lo é, pois, o sem fim.
Como se sente a matéria negra que comprime a vastidão em desalcance?
Sente que é, esse mesmo momento do fluxo cambiante da energia, como nós.
Quem os planetas aprisionam nos enredos circulares de suas formas?
Assentam acima de suas peles e abaixo do sem fim, nós, que vivemos da mesma matéria e outra vida.
Certas de que somos firmes, firmes de que somos certos.
Não é porque somos poetas que sabemos disso que segreda os buracos negros,
nós não respondemos nada, apenas morremos, como os cometas que se perderão no helicoidal sem fim.
O que sustenta as equações que criamos para as perguntam que criamos é o que se constrói em todas as dimensões.
O universo sabe de tudo isto, e não fomos nós quem contamos: quem fala é o mistério dos quasares quase sendo sóis e quase sendo galáxias, quem diz são as estrelas que se acomodam pelos recantos frios do firmamento, prontas a serem algum calor no colar negro do céu, quem grita é o próprio firmamento que não se firma em nada, que eletrifica os céus nos pólos e alumbra as auroras, derrete as noites, traspassa os dias, os giros e as órbitas, em fluxos incessantes em busca do resquício desse tudo que ainda neles residem, a matéria primordial que em tudo pousa: o próprio tudo.
Somos só uma pausa do sem fim, tentando olhar para o centro de si, rolando em torno de alguma luz, numa dobra dessa colcha de pontos magnéticos que se atraem e repulsam. Giramos como os astros, habitando um sem fim que não enxergamos nos riscos de nossas peles. Nos atrevemos a existir, apartadas do sem fim. Não conseguimos.

3395. dos dias

passo os dias a lapidar diálogos impossíveis

então, naquela vez em que olhamos a estrela
e você me disse que não era o azul
mas o laranja que era a cor mais quente,
você quis dizer que ainda gostava da vida?

a ânsia pela completude de uma resposta que não virá
me deixa como um paranoico à deriva num mar revolto de ódio e insegurança
segurando os cascos e os pelos
para não despontar pelos campos num trotear insano

passo os dias a ler os grãos de poeira e traços dos gatos no chão

o problema não é a impermanência da vida,
ela é a solução
a questão não se afigura nas respostas,
mas nos caminhos

e exatamente um ano atrás, eu sequer sabia que haveria essa possibilidade

os dias são dizeres destópicos
e o futuro é a trilha para o diálogo:
a utopia de não se aprisionar em si

De quando foi

Quando eu era criança, ou um pré-adolescente, ou um adolescente, ou um adulto (caso eu tivesse cometido algum crime segundo a moral geral da população nacional nos últimos dias julga), fui inculcado com uma coisa maluca na minha cabeça que dizia respeito a como eu deveria entender a religião na minha vida. Não sei por que cargas d’água e mesmo onde foi que entendi isso, aprendi que a religião era um preenchimento, era uma orientação, um horizonte dentro de mim que me abria para o mistério do divino. Por alguma sincronia do acaso muito estranha (talvez, mística), naquela época eu aprendi que etimologicamente a palavra religião tinha algo a ver com religar-se, seria tipo uma conexão com algo essencial dentro de si, algo que, na minha interpretação, sempre me levaria a um universo que não era da esfera de estar mera e fisicamente nesse mundo, nesse tempo.

Religião para mim não tinha função social, função econômica, função política, religião para mim, ao largo dos meus parcos 13 anos de então, tinha função em mim, por mim, dentro de mim. Provável que, por isso, comecei a abandonar o cristianismo católico que me havia sido trazido por tradição familiar. Recordo-me bem do momento do abandono do cristianismo católico: várias crianças (ou pré-adolescentes, ou adolescentes ou adultas e adultos) da minha quadra estavam frequentando as aulas de catecismo na Paróquia Nossa Senhora de Lourdes, a Igreja que ficava na entrequadra de onde morava.

Como muitas pessoas que eu conhecia estavam a fazer o catecismo, em prol de se imiscuir no mistério da primeira comunhão com o corpo e o sangue de Cristo, e havia ainda aquela garotinha a qual eu era muito apaixonado, resolvi fazer também. Frequentava as aulas todo sábado de manhã e era muito bom, sempre tinha um lanche nas casas em que seriam ministradas as aulas, a professora e o professor eram pessoas queridas, amigas e amigos ali estavam. Discutíamos a palavra de Deus, a Bíblia e outras coisas sobre a vida, sobre a moral, sobre os bons costumes.

A minha infância quase toda eu estudei em um colégio de freiras, chamado Jesus Maria José, e sempre tive aulas de ensino religioso, talvez por isso, eu fosse um destaque dentro das aulas de catecismo, sempre tinha a resposta na ponta de língua, até que um dia veio a pergunta derradeira, feita num momento em que estávamos diante do padre da igreja e não mais com nossa professora e nosso professor, ele perguntou enfaticamente: “Quem é Deus para vocês?”. Como eu já tinha respondido muitas perguntas, quase todas com as respostas certas, o padre me olhou logo após a pergunta, esperando que eu respondesse e – claro – que lhe agradasse. Daí veio a minha resposta carregada daquilo que falava que entendia por religião naqueles tempos:

“Padre, Deus é tudo.”

O padre deu um riso confuso, mas ainda terno, e entendeu o que queria entender da minha resposta, creio que ele foi numa pegada do tipo: “Padre, Deus é tudo NA MINHA VIDA”. Ele já estava pronto para inquirir outra pessoa, quando eu continuei, afinal, eu ainda não tinha falado tudo o que eu queria falar e tudo o que eu sentia acerca de Deus:

“Padre, Deus é tudo, entende? Está em todas as coisas, no universo todo. Deus é o universo. É a natureza, é tudo que tem de bom. Mas também é tudo o que tem de mau, porque Deus criou tudo, até o mal…”

O padre arregalou os olhos e me cortou decididamente, me interrompeu e disse que Deus nunca poderia ser o mau. Eu tentei interromper ele e dizer que o mal podia gerar o bem, mas ele não deixou e me passou um sermão demorado acerca de como o Diabo podia nos enganar com esse argumento e Deus só podia ser uma coisa: o bem.

Fiquei acuado e não falei mais nada durante as aulas seguintes, afinal, eu entendia e sentia tudo errado sobre Deus. As aulas foram seguindo até o dia em que eu tive de me confessar para no domingo seguinte receber a primeira comunhão. Estava meio desanimado com aquilo tudo, tinha levado um golpe muito duro. Quando fui me confessar, eu não sabia o que fazer, o que falar, durante todo esse tempo, o Demônio havia me enganado e eu não conseguia sentir que Deus só podia ser o bem. Fiquei achando que toda a minha existência era meio errada, porque sempre tinha sentido Deus daquele jeito, como não podia falar que toda a minha existência era um pecado, falei apenas que de vez em quando desrespeitava a minha mãe e meu pai. Ele me falou que era errado mesmo, e que eu deveria rezar alguma coisa, tudo muito desanimador.

No dia seguinte eu fui à primeira comunhão, todo vestido de branco, os cachinhos tinindo, um rosto calmo e provavelmente angelical (se eu fosse loiro, certamente seria angelical). Esperei apreensivamente a hora de receber o corpo e o sangue de Cristo consubstanciados naquela hóstia. Vi colegas ajoelhados após receber a hóstia aos prantos, felizes, intensos. Eu recebi o corpo de Cristo com a mão esquerda para colocá-lo com a direita em minha boca, esperei a hóstia derreter em minha língua sem o mínimo sacrilégio de mastiga-la e aguardei o mistério penetrar o meu ser.

Aguardei.

Aguardei.

E nada aconteceu.

Achei meio tétrica a situação. Praticamente todo mundo chorava, menos eu. Disfarcei um pouco, fingi que chorei e fiquei ali, vazio, dentro da igreja, acreditando que eu estava abandonado por Deus, que eu não o merecia. Foi uma das maiores decepções da minha vida.

No outro dia eu acordei e olhei para o calendário com Cristo crucificado que havia no meu quarto. Olhei um bom tanto, não conseguia mais me comunicar com ele como fazia antes. Levantei, fui fazer a lição de casa para ir à escola na parte da tarde. Fui até a biblioteca de casa e peguei um livro de “grandes personagens da história universal” que tinha lá casa em casa para responder a uma das questões, era um dever de história. Abri o livro aleatoriamente e dei de cara com um dos “grandes personagens”, era Buda. Comecei a ler aquele capítulo por acaso, as imagens eram interessantes, havia uma que mais me fez ficar intrigado, era uma imagem de Sidarta Gautama, o sábio dos Sakias, impávido, contemplativo, enquanto diversos demônios voavam ao seu redor. O texto falava sobre como Sidarta lutava internamente contra Maya, a ilusão, aquela nos lança ao desejo. Fiquei impressionado com aquilo tudo e li todo o capítulo, esqueci-me até de fazer a lição de casa.

Algo ali me preencheu o peito, me preencheu algo que eu não tinha ideia do que seria, só sabia que preenchia. Era algo meu, que vinha a partir de outro mundo, de outro universo, de outro lugar de mim.

Nunca fui atrás do budismo de verdade depois daquilo, nunca mais fui atrás do cristianismo de verdade depois daquilo, mas uma coisa em mim continua certa, viva, acesa: religião pra mim não tem função social, econômica ou política, ela tem a ver com a minha relação com o mistério, com o místico, com o absurdo de existir, talvez, até com a beleza e eu a vivo todos os dias da minha vida desde então, sem templo que seja, sem sacerdotisa ou sacerdote que baste, ouvindo tudo o que vem, mas escutando aquilo que me toca e é melodioso dentro de mim.

3389. as voltas que o mundo dá

em algum momento andamos
lá longe no tempo
nos becos e vielas das quadras
no peso
fluindo o corpo numa prancha no asfalto
rolês e rolamentos
atravessando o mato seco queimado
queimando por dentro
suaves, sossegados

um pouco mais à frente
mas ainda lá atrás
bem onde a vida bifurca
na travessia de dois motes ou duas sinas
as estradas ganharam léguas
eu fui
ele foi
fomos adiante, radiantes
porque ir é invariável
irremediável

meus remédios eu achei
seguindo a lida do sempre, do agora
e do medo, conselheiro
e da morte, companheira, à esquerda, à distância de um braço

seus remédios ele achou
seguindo aquilo que havia, no agora
sem o medo, maloqueiro
sem a morte, dívida

agora ele é morto
bala no peito
a mortalha de sangue coagulado dentro de um carro roubado
uma noite toda pra ser identificado
o tráfico do proibido
no peito do culpado
o tráfego atribulado pelo carro parado

mais uma conta no jornal, culpado

estou aqui, no agora
longe daquele tempo e desse espaço
mais perto dele do que saberia
com medo
e com a morte

dele

e ele não está mais aqui

3378. Destruídos, vingaremos

Este post, vide o verso,
morreu para todo o resto.
Morreu à glória ao capital,
imitação da rosa infernal,
urro aflito do decapitado,
sangue que serpenteia,
fazendo bem, todo o mal.

Morreu para a revida,
em Shangri-lá, Ivy marãey,
Utopia, bala aflita,
morreu porque é ciclo
e vive pelo que se afia.

Caracteres fincados em led
emaranhados dentro de nuvens
agora, este post, pergaminho,
está sendo absorvido,
pelas palas, pelas peles,
pelas íris de todo humano,
está como o que explode
e domina o território,
já é como o drone móvel
que mata em campo exploratório.

É assim que existe a morte.

3377. Felizes para sempre?

o enredo é autofágico
as cidades são uma só?
                                        composição em rede

a trama é tautológica
cada pergunta é feita
para a resposta sempre
                                        pronta:
a culpa é dos prótons divinos
ou da política stalinista

a verdade é repetida
latida
cada fragmento sincrônico
irá dizer o mesmo
sequência de citações e remixes
por uma memetização da realidade

                    conecta
e segue o ditame

dita-me
edita-me
duro, suave e quisto
como um comercial automotivo

porque o amor há de triunfar
após mais uma ação da polícia federal
        
        
                                        no próximo capítulo

3369. vencida e fadigada

por que ela me leva a ela?
eu que desisti de todo olhar
que preteri os encantos
que escondi o desejo
e ando a lhe dar adestramento anti-mágoa
instrução aritmética
hermetismo intra nirvânico

mas por que ela me leva a ela?
e põe a descontrolar todas as vozes
então casta-ladas
encasteladas
aladas no infinito
céu de não mais doer

por que ela me enleva a ela, me eleva?
se eu mesma me sei torpe e má
a vilã sem escrúpulos
da novela das seis

a crápula
a gárgula

já me enfiei à deriva

não
não olha cá
que a náufraga
não quer porto
quer mar

pausa: Adélia Prado

Os dias são amontoados de informações inigualáveis e todo mundo sabe disso – talvez, e provavelmente só talvez, em Kiribati nem todos saibam. Me questiono onde mora o tempo agora e já não consigo diferenciar tempo, informação e espaço. Tudo dá a impressão de ser apenas uma mesma coisa seguindo o fluxo da expansão do universo e sangrando nesses pequenos fixos já móveis (plexos em rede, algo como a imprecisão de sermos “nós”): a gente não vê, mas o tudo vai, inflacionário e relativo. Até supermáquinas para super acelerações de partículas tem quem faça. No final deve ser superútil, tipo descambar pra alguma nova bomba ou coisa que o valha (ah se me dessem a chance de “dar um reset”…). Tudo caótico.

Certo, o caos e a quantidade me atraíram por muito tempo, sempre flertei com eles. O caos principalmente, aquele mesmo que “precederia a anarquia” – o ácido sonho juvenil da vendeta (contra tudo especificamente). Flertei tanto com o caos que uma vez consegui até namorar ele, foi tenso. Até um monitor de computador ele jogou na minha cabeça depois que terminei o doce deleite de três meses. Tenso, muito tenso. Dias antes de findar meu romance com o caos, eu tinha comprado

talvez tenha até previsto a necessidade de menos caos, depois do caos. Adquiri o livro em uma barraquinha de livros que ficava em frente ao Quarentão, perto da Feira da Ceilândia, por uns dez pilas. Comprei com uma grande expectativa, posto que uma coletânea poderia introduzir-me a esta poeta de modo amplo – ah a quantidade de informação, a necessidade da amplitude, a precisão da velocidade… No fim, o caos fazia aniversário próximo e resolvi que ia dar o livro de presente para ele. Fiquei meio condoído de minha falta de poesia vindoura, já que teria de me desfazer do livro, tinha lido apenas uns poucos poemas iniciais e seriam pelo menos quatrocentas páginas de metáforas, metonímias, aliterações, enfim, da mais fina flor da poesia.

Refleti deveras sobre o ato. O caos mereceria? Ele tinha tentado me dar uma voadora na jugular no meio da rua dias antes, havia me perseguido até o trabalho jogando pequenas porções de ácido sulfúrico em minha cabeça, me feito correr de cueca na rodovia, me colocado em um tal estado de desmiolamento que acabei por gritar como um louco aos quatro ventos: “VAI SE MASTURBAR COM UM ALICATE, CAOS!!!!”, fez até com que eu traísse meus melhores amigos, bebendo espumante em taça de cristal em festas privês no Lago Sul… Meditei profundo: é, talvez o caos não merecesse o livro.

Resolvi dar uma chance à sorte do caos, jogando a responsabilidade para o acaso. Aleatório como sempre, abri e foi

Verossímil

Antigamente, em maio, eu virava anjo.
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
‘Canta alto, espevita as palavras bem’.
Eu levantava vôo rua acima.

E o pior, ainda era maio. Daí nem li mais nada, liguei pro caos e falei que tinha um presente para lhe dar. Marquei com ele no Parque da Barragem, tava afim de tomar um banho de rio. Depois de matarmos uma garrafa de Velho Barreiro e comer uma porção de ovo cozido, tivemos o sexo de despedida dentro do carro mesmo, lhe entreguei o presente e fiz uma dedicatória bonita. Creio que o caos saiu um pouco confuso do encontro, tudo tinha sido tão tranquilo e bom, por que não continuar? Bom, eu sei que eu não queria que monitores voassem em minha cabeça novamente. Ele me pediu para tirarmos uma foto. No outro dia estava no blog dele, posto assim

Fugi do caos como o diabo da cruz depois daquele dia, não queria mais voadoras, monitores voadores, caminhadas de cueca ou sexo dentro de carros, fui seguindo na contramão do caos. Fui caminhando com essas pedras que se apresentam no meio do caminho e foi num dia bem tranquilo, que de repente, via sincronia do acaso, encontrei novamente o livro em outro sebo. Achei muita coincidência, parecia muito o livro dado ao caos, fui olhar a dedicatória e vi uma

"Poesia com cheiro de campo minha flor"

De fato não era a minha dedicatória, era de um “A.” para uma “flor”, assim, bem bonitinho. Enterneci na mesma hora e julguei possível o amor ainda. Acomodei-me nas antípodas do caos, planando lentamente até o banquinho do sebo pausando os olhos em

Um sonho

Eu tive um sonho esta noite que não quero esquecer
por isso o escrevo tal qual se deu:
era que me arrumava pra uma festa onde eu ia falar.
O meu cabelo limpo refletia vermelhos,
o meu vestido era num tom de azul, cheio de panos, lindo,
o meu corpo era jovem, as minhas pernas gostavam
do contato da seda. Falava-se, ria-se, preparava-se.
Todo movimento era de espera e aguardos, sendo
que depois de vestida, vesti por cima um casaco
e colhi do próprio sonho, pois de parte alguma
eu a vira brotar, uma sempre-viva amarela,
que me encantou por seu miolo azul, um azul
de céu limpo sem as reverberações, de um azul
sem o z, que o z nesta palavra tisna.
Não digo azul, digo bleu, a idéia exata
de sua seca maciez. Pus a flor no casaco
que só para isto existiu, assim como o sonho inteiro.
Eu sonhei uma cor.
Agora, sei.

Lindas letras pretas que no branco do papel marcavam paz como lépidos lápis colorindo um borrão calmo de alma pós-caos. Segui o corão poético, assomado pelos contornos que poderiam se abater em mim e me fazer ver metáfora plena: eu lançado a alguém que nunca soube minha presença que estava

A meio pau

Queria mais um amor. Escrevi cartas,
remeti pelo correio a copa de uma árvore,
pardais comendo no pé um mamão maduro
– coisas que não dou a qualquer pessoa –
e mais que tudo, taquicardias,
um jeito de pensar com a boca fechada,
os olhos tramando um gosto.
Em vão.
Meu bem não leu, não escreveu,
não disse essa boca é minha.
Outro dia perguntei a meu coração:
o que que há durão, mal de chagas te comeu?
Não, ele disse: é desprezo de amor.

Com aquela minha distância tão intravenosa, dei a paga em reais justos pelo livro e saí a rodar coletivamente em busca de minha casa. Cada verso que lia, me acomodava em paz e mediação, coisas que haviam se fiado ao custo das apostas, de pagar pra ver: o caos, as voadoras, as coisas voantes… Quando desci do coletivo logo vi

A casa

É um chalé com alpendre,
forrado de hera.
Na sala,
tem uma gravura de natal com neve.
Não tem lugar pra esta casa em ruas que se conhecem.
Mas afirmo que tem janelas,
claridade de lâmpada atravessando o vidro,
um noivo que ronda a casa
– esta que parece sombria –
e uma noiva lá dentro que sou eu.
É uma casa de esquina, indestrutível.
Moro nela quando lembro,
quando quero acendo o fogo,
as torneiras jorram,
eu fico esperando o noivo, na minha casa aquecida.
Não fica em bairro esta casa
infensa à demolição.
Fica num modo tristonho de certos entardeceres,
quando o que um corpo deseja é outro corpo pra escavar.
Uma idéia de exílio e túnel.

Quanto mais eu lia Adélia, mais me invadia aquela sensação de que sim, o encontro já deveria ter ocorrido há eras. Talvez até, já tivesse se dado, só não tinha me atinado. Dentro de tanta informação, como lidar com o que realmente importa e te transporta para um porto mar aberto à beleza? Afinal, quando se apanha esse corpo da tarde, triste que dá dó, mas cheio de uma esperança brejeira, de uma calma consoladora, é que você percebe que só precisava disso na barra de algum

Dia

As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
– ia dizer imoral –
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.

Aquele maio, quando vi que não precisava do caos, e compreendi que diverso mesmo é esse

Objeto de amor

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.

resolvi que não adiantaria esquentar-me com os revezes, com as quantidades e a direção dos fluxos – mesmo que amorosos: eles me arrebatariam a qualquer momento. O imponderável e o inominável se cruzariam sempre e diuturnamente na minha cabeça. Mas, se diante da vastidão do que te apresentam, o amor se infiltra personificado e ainda cria nascente no solo da alma, como creditar que a variação é a máxima do que se precisa? Adélia me abriu a proposta que, mesmo no amor máximo, menos pode ser mais, calma e densamente como em um

Pranto para comover Jonathan

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

 

Ah, só ia me esquecendo de um detalhe, nunca, mas nunca mesmo, pare para ouvir o que Adélia tem a dizer sobre a moral e os bons costumes… Sério.

PS: Adélia sempre foi mais que matéria poética, sempre me foi inspiração:

1293. Adélia I / 1294. Adélia II / 1295. Adélia III / 1296. Adélia IV / 1900. Sem título

3357. O homem analógico

Ele se lembrava daquela água verde
e mergulhava ainda nu
e todos os dias
de feira a feira

A pele dele tinha cheiro de pele de gente
e pelos de pele de humano
cabelos como o todo sempre
hálito e fezes

Ele morria, ele matava
tinha até um roupão e um cachimbo
um medo de ser na noite profunda
tinha alfarrábio
fazia convescote
olhava as horas pelo sol

Vagava entre as sombras da cidade
vigiava a coisa toda de soslaio
se pendurava na rede na sesta da tarde
Se calava na aurora
e esperava os espíritos se assentarem
depois da luz atravessada no limite do céu

Ele era analógico, ela falou
Tanto que biológico
arrematou

Ele vida era ali, tamanho –
deslembrava