3302.

são visagens, premonições,
o que ataca as lentes
ampliado e disforme, ao revés
o largo é sabido, olhando já se vê
tudo implodirá lá de fora para dentro
mas há um ponto que pode ser no meio
pode ser no centro expandindo alhures
até os pelos até os dedos
foca
é lá que mora o escudo
contra os mísseis que já caem

3301. náuseas públicas

em si e lá, tá mal, há falhas
desde são paulo aos rios
e o todo dessa parte
que se reparte no globo
vejo ruir tudo o que veja,
há cruzadas, entradas e bandeiras

vejo já ir, os direitos parando no bolso avaro
um marco infeliz ao longo dos anos
aumentando os celsius, deixando tudo russo
pras minas e pros manos
queda-se tudo tiririca
com o que se esperar da política
da nova, da mesma, da antiga

aberto o flagra, a arma em riste
o pastor é vero e fala alto, quase aos berros
deixa um não leve fim deles:
um ódio cultivado junto a deus
numa conserva de corações embrutecidos
pelo medo de se igualar
no oceano humano das diferenças

3282. Kianda

O sol pincelava algumas linhas pela borda nascente do dia
Recostado entre nuvens negras, esperava apenas o vento mover as coisas,
transpor o nada em raio e redemoinho, agarrar as luzes e cair pelas frestas
As nuvens macias se liquefaziam, gota por gota, nos pés de paus
Lá embaixo no chão, passeavam as nuvens negras entre folhas e cipós
entravam líquidas pela mata, caíam pétalas e frutas num olho d’água
reviravam vida e corredeira descendo a queda até espatifarem-se entre as rochas
As nuvens negras gostavam mesmo era de se admirarem no espelho da calmaria
Vinham flecha entre as águas, rasteiras e sorrateiras
até se encontrarem com elas mesmas, reflexas

Desci das nuvens e peguei o cume de um arco-íris olhando para a terra firme
a constatar que nada me erguia, que não pombas brancas,
sustentando-me ante a transformação das cores que enfaixavam o céu
Senti que as nuvens negras não me mantinham
que o vento e a chuva já me conduziam à paz de mim, ao fim do medo
Dali em diante seríamos eu e o tempo, uma árvore, até a velhice arqueada
até que uma fogueira me consumisse no que sou, a paciência para todo enfim

Desde que conchas narraram o fato, pressagiando, estava tudo traçado
só faltava haver o mar que ver, que entrar e ficar, o mar, sempre mãe
Da sorte que a ela me lancei, e por seu murmúrio me enlacei
Quando quase à beira-mar, na ponta da praia quase,
sentindo o gosto do ar salgar os dentes que se colocavam num sorriso certo,
já me preparava para o salto, para o abraço azul e macio nesse manto que envolve a dureza
era lá que me esperava o ponto final, na aurora do poente que doirava a areia
era lá no mar, porque as conchas já haviam cantado o enredo e o fim, bastava só um salto

A queda parecia vento, era feito que nem o sol se apagando no horizonte
fogueira de uma noite de junho se esvaindo na alvura de um dia vindo
a calma que toca tudo em derredor até que enfim se caiba a noite
A queda vinha, sem medo até o fim, desabava, querida e pronta
Veio toda e tropeçou num som que cortou o ar aparando meu corpo, baque forte
Foi um rodopio, um enrosco, quase cobra feita em som e cores
Me parou ali no ar, me deitou no céu e cadenciou meus olhos até a praia:
deu-se um estrondo e tudo estremeceu

Lá embaixo ela brilhava, cintura abaixo tudo luzia ouro e prata em ondas de inquietação,
desde seu colo até sua tez tudo enredava vontade e mar, perdição
Ela era feita de luzes e gente, de água e cores, humores e amores, era feita em som
Qualquer coisa me mantinha ali parado no ar, baqueado da queda e da visagem
Era qualquer coisa que se fazia nela toda, em seu canto e seu limite
Aquela melodia que saia de sua boca e aquela melodia que a compunha inteira,
era melodia o que me deixava em meio ao ar, era ela: Kianda
a que anda nas águas e enfeitiça nas praias e enamora nas pedras

Nuvens negras prostraram-se em minha cabeça, desabaram durante um mês
mas eu nem o quê, só limitava as retinas no que dispunha aquele ser
Ficava ali, envolto naquela melodia e nem tinha a feita de descer, tocá-la
Estava besta como nunca antes houve alguém e estava bem
Todo ensopado de chuva, todo mareado de sal, mas todo envolvido de som
E todo fincado no ar a olhar aquela que tinha a graça da melodia em tudo

Acho que foi de amor, que as nuvens negras me ajudaram a sair do ar
Elas me abraçaram dóceis e serenas, chuvosamente lacrimosas
me conduziram até o chão, derreteram-se em mim, adentraram minha pele
e moveram meu corpo até a que brilhava e eu todo negro, todo nuvem, todo água,
todo tudo, aquilo que se enraizava desde o tempo até o além
Desaguei no fim da noite em cima de Kianda, desabotoado o peito
desfeito em amor por tudo, amei-a até que sim, bastei-me em paz
Quando acordado, fez-se a luz, que me brilhou desavisada o inteiro do meu amor:
espalhar-se o quanto possa, pelo bem que faça, no que valha
sem queda

3281. Iara

Por quais águas se esconderá?
Até ontem a vi nas correntes dos meus olhos,
desabava por entre aquela cachoeira
Vinha de dentro de mim

Antes, ocupou-me tanto espaço
nem sabia que havia esse mar todo dentro aqui
Mas foi um mar que desabou
durante cinco noites seguidas, aflito
E ela foi indo junto, parte por parte

Se recompôs onde?
Onde agora ela nada?
Não sabê-la mata, não se nada
Esse vazio de mar agora,
derramado olhos afora
E eu aqui todo e sem ela a me ocupar

Por quais águas ela se adorna
de conchas e corais, de algas?
Em qual praia canta sua hipnose,
de qual areia chama o torpe a se enternecer
e marulhar-se no fim da tarde
entre o tórrido e o líquido?

Aqui havia esse tanto de mar,
esse litoral inteiro
pronto para ela
Aqui dentro, amplo
Por que desabei?

3280. Liberdade

Lá por onde o vago da cidade
Anda a pernoitar os sonhos insones
Lá bem no lugar em que a cidade se abre
Entre os limites
Do sonho e as certezas do amor
Há o depois deles
Impuro lugar em que o querer não dorme
E à realidade não cabe o ódio
A cidade da liberdade
Fica num canto escuro de si
Lúcida e consciente, lá sente-se o latejar
De toda saudade sem medo
E o melhor do que a paixão
Lá se ama com os olhos do peito abertos

3268. Mãe d’água

Não cabe exaltação,
nem medo
Não palpitação desmedida
ou o apelo da agonia
prisioneiro da antecipação

Cabe a hipnose
o encanto calmo
da admiração

É ela que anda nas águas
descansa nas pedras
deambula no mar

É ela que é serena
que é a senhora
do que te destinar

Nas águas que a envolvem
no enredo de sua rede
o que te recobre
te prende e afaga

Se rende
abraça logo sua água

3266. Fone

Quase nunca sabemos que lágrimas,
gritos, gemidos ou sorrisos
escorrem pelos fones de ouvido

Essa que agora passou, sorri ao vento
e lá dentro, há o movimento
de Schubert a derretendo

Aquele ali que parado se embalança
e não é samba a sua dança,
é The Cure o que interno sangra

O senhor de bigode aparado
parece curtir um vanerão aprumado
mas o que toca é um bolero do passado

A moça de touca, o que a toca e demove
será um electro qual sua camisa cobre
ou a cadência triste de um choro nobre?

Quase nunca sabemos
o que movimenta o som
interno que temos

3264. Ria no final

A solução tá sempre em frente
O projeto é atraente
Na esquerda ou na direita
Todo o centro é quente
O bloco negro passa rente
A escopeta no batente
E os mano lá no morro, tudo presidente

Zela passa o recado tirando de papo reto
Vampiro num aguenta deita, e reza a salvar um feto
Tia sai do meio do mato e apresenta a salvação
Tá dentro de um livro preto que carrega sempre na mão
Maluco são diz que a meta é matar todos os mendigo
E os noia lá da área tão tudo, menos extinto
Zoiudo cresce o olho em tudo o que pode vê
Das biqueira aos condomínio, porque ter mais é que é ser
Modelete de butique se arma na internet
O revoltado e indignado vê xvideo de boquete
Zumbizão de meia soquete
Paralisado, oitavo andar, se pular vira espaguete
Toma um sorvete e chupa chiclete
Tuita mais uma informação sem saber mesmo o que acontece
Se tudo o que diz procede
Se sua própria vida carece
Se a dos outros vai ficar na mão dos mequetrefe

Mas a solução tá sempre em frente
O projeto é coerente
São mil proposições
Postas por quem mente
A massa aflita é só quem sente
E o sangue do inocente
Mas os pleyba das mansão, tudo very crazy

Pode dizer o contrário
A economia vai bem, obrigado
Cada boca, cada esquina, uma pá de noiado
As noites tudo agitada, andarilho pra todo lado
O sexo pelas calçada, freakyzão estriquinado
As perdida, as encontrada, com os zoio esbugalhado
As mina massa, machucada, se mandam nos afluente
As tia corre, maltratada, desandam pelas corrente
As xica fria, injuriada, não são mais sorridente
O bonde passa, na madrugada, as levando pelas torrente
E a virada tá apregoada na pregação dum crente
Que diz com seu pau reluzente
Que o preço é alto mas a cura
É mais do que eficiente
É ampla e paradisíaca, derrama mel de todo ventre
Entre, o céu é para todos os que pedem, podem e pagam
Não se iluda com o mundão que te fodem e esparram

E a solução tá sempre em frente
O projeto é imponente
O templo se estende
Do sol poente ao ocidente
A salvação se faz presente
Uma prisão impotente
Quando pensa liberdade é tudo diferente

3263. Maloqueiro

a gente deambula
cai pra lá e pra cá no vai e vem das ruas
se mete até em reino de almas nuas
dá as caras no rol das estátuas de alta envergadura
bota o próprio busto pra jogo, na ranhura
finge elegante, finge reticente, pura gastura
mas no fim é só mais um maloqueiro,
que meio se arroga, meio matuta
puro baseado, além força bruta
tanto calado, todo prosa, mesmo na fissura
o que se prostra em seu devido lugar:
a peregrinação da lida da lua

3261. Quando pesa, leve

Desde aquele dia
pesam-me palavras
Toda a densidade
dos coletivos de letras
abarrota os meandros,
quer se instaurar
em todo canto

Desde aquele dia
as imagens desmancham
As palavras lavram
toda a terra
se entrometem
entre a pulsação de sorrir
e o aconchego do
olhar perdido ao longe

Desde aquele dia
todo o peso das palavras
pausou os dias
tão lentamente em tudo
que só se anuvia agora
a pura leveza
de desde aquele dia

3259. Antes do céu

Acompanhados desde longe, ficamos
        como tudo antes da parada
        – a mente em sobressaltos dentro do crânio.
O tempo que se moveu sonolento
        despencou em letárgica velocidade
        chega esmagou tudo.

A cidade pouca e larga:
        cimento, postes, ipês, sol;
e dentro da luz a pino no meio do meio-dia
        foi verde o que parou, a praça
        em tom brilhante, a ideia com gosto

quando se sabe com a pele,
        com a veste dos olhos despida
a desnudar as entranhas
        borbulhando aquilo que impele pelos.

Um pombo cruzou o céu
        outro pássaro marcou frutas ao largo dos casais.
A paz poderia, mas ficou parada:
        “Precisamente, parar é o mote”
        antes que alcançasse o céu.

Antes do tempo, ficamos
        para ficar com a terra e seus frutos,
alimentar pássaros e se debruçar
        pelo largo da cidade, borbulhando
        sem sobressaltos
sem céu para voar.

3258. Obrigado

Ficam por murmurar as águas. Entendo pelos meus pés.
Pois que adentram entre o que segue, sendo o que corre.
E fortuitas as nuvens somem em eneagramas azuis
para que eu os decifre e cale com o estampar das flores.

Ficam por explodir amenas. Ainda vejo que o horizonte
abre dentro de meus pulsos seu desejo irrefreável de tocar o sol;
e um vendaval só surge quando uma montanha quer
que lhe façam cócegas em sua dura derme de eras.

Sinto que brotam campos. Sinto que correm pedras.
Levar todo esse mundo quedou-me o tédio em contemplação.
E já não sobra a angústia, queima, sim, aquilo que fala
a língua suave de quando arrebatado pelo não humano.

3256. fica

naquelas noites de vibração
que não dão para o gasto –
o consumo da vida pede
que tudo seja mais
onde falta a variedade
eles inauguram o velho
os pés destoam vagarosos
e os trejeitos são absurdos
– planejadamente
desplugar-se do que alimenta
como foi lá? totalmente mais que demais
matar os antúrios, plastificá-los
superá-los no 3d da tela esquiva
amá-los desconhecendo-os
ficar nu como sempre
se passa as estações dentro
das vestes da moda
tendo o aroma de si comprado a prazo
essas manhãs de expectativas
enroladas junto ao fumo e ao pó
nada é curto
tudo é videoclipe

3255. possível

nesse dia, pasme, em todos os dias
dou uma realidade insustentável
feito se morresse
deixasse o caixão, subisse sete palmos
livrasse-me dos vermes
e quando silenciada a morte
de camisa verde florida
a alma dividida em mil
pontos flutuando em derredor
conseguiria certo livrar o infinito
do castigo de ser breve
visível, o que se acerca,
aquilo que não pode conter
o lugar
jorrado sem ímpeto pela torneira
banhando os dias, a vida
disparatada que o imponderável
guardou em mim

3254. translação

enquanto as flores estampavam os campos
prontas a ornar mesas, jardins, lápides e dias de mortos e mulheres
abelhas almoçavam ração de frangos confinados
e a Terra, detentora de toda terra a lhes dar raízes
esburacava-se, tremia e rachava
e a cada volta que dava em si
elíptica e helicoidal em seus movimentos soltos no sem fim
seres escapavam de sua órbita
e se lançavam ao alcance de nada
como a beleza das flores
despropositada, própria a ornar
desde o que jaz, até o que jaz