3251. Deve de ter sido

Como imaginar a solidão de Deus?
A perfeição pede contemplação
desde si, desde outro

Aquela superfície de sem nada
e só a si em todo o comprimento
Uma largura de nada mais,
e tudo para ser posto

Como bastar-se com o inexistente?
Sem porquê ou para onde
além da própria presença absoluta
ou só a ondulação
do vago da matéria negra
a preencher as minúcias

Deve ter sido um muxoxo,
um enraivecer, uma depressão,
uma saudade

Deve de ter sido de banzo
que Deus se explodiu na grande explosão

3249. Aboio

Pela manhã anoiteceu
e veio um sopro de tudo
feito som de trombeta

Tava lá, o gado confinado,
a cerca campeando as perdas

A máquina berrou alto,
os bois se debateram
A relva se deu de ração
e as manhãs nunca mais foram
de sua matéria cristalina,
elas caíram pela falta do despertar

Quase tudo se assombrou
e fantasmas trotavam pelos
canos d’água vindos da represa

Até o que vinha pela brisa,
baixando os olhos dos bois
a serem abatidos,
dormiu

Tudo virou visagem,
espectro, sombra

Era aquilo que podia
no sem fim da noite
vinda pela manhã

Só se aprumava um resquício de luz,
quando se abriu a porta das seis horas,
quando o umbral do tempo
desaguou a escuridão já tomada tudo

A cancela meio erguida
só restavam meias vidas
e todo o confinamento do gado
bastou-se ao chão

Algo explodiu no céu,
e a luz se apagou mais ainda
Do sonido das trombetas,
uma graça de melodia

O fim sem mote,
um bife chorava léguas

3242. Magia

Não é a pressão que varia
trazendo a falta de ar
e o horizonte castanho
Tão pouco apenas o pêndulo
da Terra
a carregar tudo aquilo
que erode camadas
e envereda verde pelos cursos
Que alucina o doce
o azedo, o amaro
em arrepios de formas e cores
Redundando em redemoinhos,
sacis e chamas

Não, não é uma sucessão lógica
amarrada num encadear

Cada nó é mais do que magia
Cada nó é apenas magia

3238. Feed

Prospecção de bits.
O que restará camada após camada:
as eras, Eros, heróis?

Fenômenos imaginados em cavernas,
toda essa existência em signos
como essência.

Cavernas digitais
a morada dos seres pós-históricos.
A imanência impermanente dos elétrons
a luz iluminista turva o tempo
transpõe espaços
em vácuo.

As letras grafadas nas paredes
e a ânsia por perpetuar a espécie.
Os dados, as cifras, as listas.

Aprisionados os seres pós-históricos
presentes no presente eterno retornável
prismam as sombras da luz dos monitores.
Todos espelhos
só enxergam a si mesmos
sem voltar dentro.

Tudo o que é certo desmancha no ar
dilui, dissipa-se
wi-fi.

Os cabos correntes
amarram um a um
uma a uma
emaranham-se pela Terra
enraízam cada qual em sua caverna.

Os vestígios tão mínimos
quando escavados, separados, peneirados
mostram apenas
o que em vão se tenta esconder:
não há para onde.

E conhecer fica assim,
esse verbo de quilômetros.

3237.

A noite inteira que dá
quando o céu não dorme
A vida inteira que há
quando a morte morre
Um pulso sorriso que vai
depois que ela te acolhe
Um medo todo que cai
depois que se descobre
Que todo ser é o além
e aquilo que se escolhe
Que debaixo do pó porém
brota aquilo que se colhe

3232. Naturalista

Quantos segredos
que ela guarda
na palma da mão?
E nos seus dedos
que ela para
como fosse um não
Pelo que vejo
parece um maneio
que não se concorda
com o coração
E mesmo não sendo
a mão liga ao peito
pelo balanço de
uma pulsação
E pulsa então
pulsa pois não
há mais segredo
apenas aperta
a dela tão certa
com a sua mão

3226. A janela aberta

Cachos enraizados
cultivados
por monotonia e doses de raiva
Olhos baixos
prestando atenção dentro,
mirando fora

A mente alta
desconectada dali
leva o corpo a cultivar cachos
Um corpo se contrai como feto
breves lampejos de sono
inundam sonhos de cafunés

Um frio entra
silencioso
Como passos de um gato ladrão

Algum tecido infinito separa

Corpos marcados de história
respiram cansaço
Coisa que gela
esquentando o estômago

A janela aberta

A brisa que empareda o corredor
Barulhos surrealistas irrompem tudo,
ensurdecem a tevê
quase borram a modulação das sombras
que o aparelho ligado no escuro emana

Passados passam
pipocam
Poucas palavras
Palavras receosas, medrosas
Retornos eternos, infernos

Um exemplo de grama verde pega fogo do outro lado
A mão quase toca a perna
Para
Receosa, medrosa

A janela continua aberta
o frio colhe silencioso o fogo
Olhos se evitam
Algo se perde

A janela sempre aberta

3224. primaveras juninas

apocalípticos e desintegrados
apolíticos proto anarquizados
dionisíacos quase apolíneos
olavizados
caóticos em suma
pelo consumismo consumados
pelo anticomunismo noiados
por quasares quânticos apaixonados

floresceram como ipês em meio à seca
caos, cores e carnaval
alguns blocos bloqueando a paisagem
tática e movimento
enredados em redes, paranoicos
puro “povo” num espetáculo trágico
de carona em algo não visualizado
como sempre, sintomático

daqui alguns séculos, as primaveras austrais
serão comemoradas em junho
num ritual cristo-pagão de malhação
de gente viva
ao final, jogar-se-á uma partida de futebol
com a cabeça de um político
em honra aos áureos tempos em que
o esporte bretão comovia multidões
e o papa do novo anarco-totalitarismo,
como um rei momo,
abrirá oficialmente as festas juninas

3221. A beleza como farsa

A beleza é perversa
seu consenso é fatal
Ela oprime
comprime coisas
pessoas, vidas
em castas de gradação:
mais reto do feio
ao
mais perto da perfeição

A beleza é mórbida
desalinha corpos
deixa marcas no ego
surrupia a felicidade
abusa de quem não recebeu
seu pouso de benfazejo
decepa partes e insere outras

A beleza é dádiva
dada por deus
e deus é injusto e tem planos:
Eis um ser perfeito, ainda que feio
Agora aguente
ou se tiver dinheiro,
intervenha

A beleza é uma farsa
Impiedosamente a história
não a ataca
e converte em mera questão
de proporção e gosto
a opressão que jaz atrás de si

Um dia, oxalá, não veremos
a beleza, veremos

3218. pulsa a intelectualidade no bar

tudo sempre circunscrito
em volta do seu umbigo
as mesas de bar flanam
por léguas de achismos
tão certos e imprecisos

“eu vi na internet”
“não lembro onde”
“talvez no face”
“li em algum lugar”

olvidam que o que
aprenderam nas aulas
de antropologia aplica-se
sempre a si e seu mundo

as mesas de bar burguesas
são relações socioeconômicas cegas
todos os outros são fetiches
para além de chicote e cinta-liga
a foice e o martelo da lida
além da vida, tem vida

os outros têm vida
as mesas, vazias

3216.

não é algo secreto
mas sem alarde
te quero mesmo
debaixo desse sol
quente e nesse
descampado de concreto
mesmo quando olha
e parece que não
quero, é só charme
pra você chegar
mais perto
ou só porque sou
um tanto discreto
e meio disperso
mas onde me conecto
você é o nexo
onde encaixa o teu
avesso pulsa
o convexo do meu sexo

3209. A rude urbana

“mas me diz quem é que sente
me diz quem é que sabe
o tamanho monstruoso
dessa porra de cidade”

a rude urbana engole espaços
matas, matos e sapos
a rude urbana usurpa pedaços
se amplia passo a passo apressados
robusta e rígida, armada
se conecta em sobressaltos de asfalto
em espasmos de onda ao ar reverberados
e dispositivos emparelhados

a rude urbana rouba a cena
acinzenta o céu e no mapa o traço
em concreto e contrato
seu rastro desastrado
em vidro e vidas
se estrutura em mosaicos

a rude urbana segrega e aparta
aperta um mundo em coletivos
comprime poucos automotivos
automovidos por impulsos irracionais e emotivos
comprime sujeitos em conflito
guerreia pessoas aflitas em atrito
a rude urbana é um apanágio de gerar constrito

a rude urbana é elétrica
eletrônica, histriônica-crônica
landscape escrota e estérica
um tanto rota, quente e gélida
um mar de coisa e gente pérfida
se abarrota em disputa milimétrica
grades, muros, arames, armas
cercas belicosas e bélicas

mil acima, mil abaixo,
mil atrás e mil aos lados
os horizontes da rude urbana
sãos formados por sozinhos aos bocados
máquina de moer gente e sugar o caldo
novas babilônias com todos atordoados
micro cannãs em cada esquina
vendendo a salvação pra transtornados
macro edéns com seus produtos departamentalizados
e suas vestes de super, mas apenas mercados

a rude urbana propaga a vitória
como uma saga épica de glória
como a inteligência arquitetônica da história
e nas entranhas da rude urbana no meio das palafita
e dos barraco de madeirite e compensado
a rude urbana vomita enjeitados como escória
parecia brilho, luzes, afagos
mas no contido da metáfora
mais um cavalo de troia
 
 
 
 
 
“às vezes eu acho
que todo preto como eu
só quer um terreno no mato
só seu

sem luxo, descalço, nadar num riacho
sem fome
pegando as fruta no cacho”

3207. Diletante a cozinhar

Quando a noite será tumati
e a manhã será mamão
Nesse, saber-se-á com a pele
que o amor é libertar
Dói e dura
Coragem e candura
feita de desprendimento,
diáspora e bem-querer

O sentido das coisas é tênue:
a frigideira esquenta,
joga-se um fio de azeite

O amor, já livre dos enredos da cultura,
dorme alhures

Primeiro a cebola
e depois o alho, para não queimar
A mente que dói e dura
conduz a colher de pau

Houve um choro entre a faca
em sobressalto no dedo
e a cebola sendo picada
Escorreu essa marca de que o peito é quente
mais que a frigideira
derreteu nó de gelo na garganta
e desabou flor de sal

Disponha as couves-flores
no azeite quente
acrescente um punhado de couve fatiada
e tempere com sal e pimenta
Ao final, adicione um pouco de manteiga

Despersonifique o estado
do amor no ser
O amor livra e é sentido
o ser é a pessoa,
há um fluxo aí

Quando ela chega
a mesa está posta
Ela que recebe o amor
andou pelo mundo,
tem história, faz

Os lábios se selam livres

À noite, molho ao sugo
Pala manhã, vitamina de mamão

3204. urbícidio

Beijing Citizens, Shrouded In Pollution, Flock To Giant Screens To View Artificial Sunrise

o lépido desenvolvimento
promissor horizonte de consumo
é uma paisagem num telão de led

milésimos de centavos
pagos por cada grama de CO2

bilhões ávidos nas fileiras
em formação de guerra
para a liberdade de tudo poder

o manto da liberdade
cobre o mundo, colore tudo
a beleza de ser livre para torrar um milhão de impulsos elétricos
tidos por dinheiros
em 20m² com todas as facilidades ao redor

cidades fantasmas
desenvolvidas e envolvidas
entre flores e florestas

o império do pós-urbano
são as moradas informacionais
construir castelos de impulsos elétricos
nas redes do ciberespaço

e as ruas
cada vez mais
menos livre circulação de gente
e mais livre circulação de gases
aqueles que não causam qualquer aquecimento

– “e tenho dito! mas que prepotência humana!”
vocifera mais um ser livre em 20m² de pura ostentação
construindo seu castelo em uma tela de led

3203. da noção de justiça no baixo século XXI

culpado
todos querem encontrar
culpado
é o que querem vociferar
culpado
sua escolha foi ser espancado
culpado
essa estória de história é papo furado
culpado
para expiar seus próprios atos
culpado
para remir os seus pecados
culpado
para eximir-se de sua conduta
culpado
para alentar sua alma dúbia
culpado
por sua burrice sintomática
culpado
declarado do alto de sua empáfia
culpado
pelo largo de toda outra volúpia
culpada
porque a estuprada é que é a puta
culpado
ao passar a esquina
culpado
passado no fio da guilhotina
culpado
às esquerdas e às direitas
culpado
menos o centro e as extremas
culpado
por querer o que não lhe cabe
culpado
quando no banheiro deus invade
culpado
por não se colocar no seu devido lugar
culpado
é pra levar pra casa ou pra matar
culpado
pelo crack, pelo alarde, pelo alarme
culpado
prenda à força, amarre, coloque à parte

culpado
o cidadão de bem pagador de impostos
culpado
todo aquele que fomenta o ódio
culpado
não se exaspere, não se iluda
culpado
seu deus, você e a sua própria culpa
culpado
por cinco séculos de penúria

3202. Maseko

Maseko voará pro Orun sem sair do Aiye
Maseko numa carruagem de ferro e fogo
Rompendo as nuvens de Oyá percorrerá o Orun
Maseko voará abençoado por Ogum
Que rege o movimento da técnica
Que forja todo ferro e que faz o fogo
Maseko voará dentro do Aiye, sentido Orun
Um pedaço daqui partido ao céu
Protegido do inesperável pelos raios de Oyá
Por seus sopros e seus estrondos
Maseko voará pra bem do lado de oṣù

Maseko, aquele que nunca se soube voar
Do solo da terra primordial
Descendência do barro do ser que subirá próximo à luz de ser
Voa Maseko, no céu, ao seu som
Predispõe tua terra a um religare terreno
Se o esquecimento se deu devido a deuses monolíticos do Oriente Médio
Que da máquina, o Orun se reaproxime