3686.

Havia uma suspeita
ancorada no porto
à beira do cais

Um navio chamado Caos
em algum momento
enfrentaria a arrebentação

Um acúmulo de nuvens
prateava o céu
anunciando a tempestade

O que haveria em meio
à branca espuma
que se turvaria logo mais?

Assim que zarpasse
a brevidade do Caos se daria

Um naufrágio na inquietação azul

Pedaços do Caos à deriva
se veriam à milhas náuticas
enquanto o resto afundaria
mil léguas submarinas

Destroços recompondo-se corais
morada de peixes

Do Caos um equilíbrio em plenitude
mas só depois do desastre

anunciado

3684. Etnografia de um possível casal

Ela e ele mantêm uma
certa distância
Nunca muito longe
Nunca se tocando
Sempre um quase

Por ser ele e ela
inferi ser um casal
mas pode nem sê-lo

Uma amizade certamente
Um amor lento se
recompondo, as bodas
de um fim, sol de fel
da separação
Companheirismo apenas

Andam vagarosamente
pela praia, da pedra
à foz, todo dia
Falam pouco, muito pouco
monossílabos olhares
mares de já se saberem

Ela olha com cuidado indiferente
a pele vermelha dele,
a forma como puxa os pelos
da longa barba, num auto carinho
repleto de falta,
o jeito como se alonga
espreguiçando e o modo
como alimenta o cão adotado na Cueira

Ele olha ela com saudade
de si mesmo e dela,
vê a areia que se prende
à sua pele preta,
a maneira discreta e centrada
com que move longamente
os braços para gesticular,
o traço da boca molhada
a falar “formidável” com
todas as sílabas

Se levantam e caminham até Moreré
enquanto o mar lhes acompanha,
lavando os seus pés
na mesma cadência lenta
de seus passos

Conversam na língua das ondas,
de quando em quando,
no dialeto do vento
soprando breve os coqueirais

E o cão lhes acompanha cabisbaixo

3681.

Há uma curva
no avolumado das águas

Diziam que por detrás dela
o abissal ganhava vida
na superfície das ondas
e toda a sorte de quimeras
destroçava naus e faluas
engolindo marinheiros
e vomitando rochedos

Tritões estrondavam
os mares, sereias rompiam
a cabeça de desejos
entalhando a loucura

E lá no fim, segredando
o profundo azul,
a súplica dos oceanos
se fazia ao último instante
desabando os fragmentos
restantes numa queda
sem fim dentro da noite
que envolvia a Terra

Por dentro do firmamento
toda água virava espaço
Trevas feitas de mares

Diziam

Era um mundo encantado

Sabiam

3767.

todo mundo ali
menos ela

ele sabe que ela lá
não sei onde

ele sabe que não há o que fazer
a não ser mapear
o zigue-zague das bilocas
suspensas em meio aos olhos

e inferir onde quer dar
essas lágrimas que se restringem
ao aquém da festa

buscando frestas
para onde olhar

3675.

ao lado do elevador lacerda
estava lá, o três de ouros
escondido, virado

eu poderia ser uma chave
só faltava a fechadura
que se prestasse para
destrancar

eu poderia ser um ponto
agregador do infinito
união de tudos para
sermos múltiplas

mas foi assim
um três de ouros só
no chão
pronto para que eu o
encontrasse
e o significasse

transformei-o em três de luas
e congreguei todas as ilusões

Da atenção

É um mundo distraído, que sempre se diz traído: a atenção nunca lhe é dada. Há carência e dispersão. Talvez nunca tenha havido um mundo tão abertamente emocional, entregue. Peito aberto é quase peito ao mundo. Talvez porque até bem pouco tempo atrás, isso de sentimento, emoção, o que toca essas glândulas lacrimosas, não fosse um problema. Hoje, há medicinas muitas para. Mas é isso que se me afigura agora: carência e dispersão.

Parece que ninguém se importa. Talvez, pela quantidade de portas de que dispomos para abrir o que nos falta e o que adentra quando escancaradas, são apenas protocolos de tratamento. Deve ser isso o que sempre houve antes, mas a nossa sede é pelo imponderável alento certeiro, imediato e loquaz.

E nos falta tudo praticamente, pois que tudo se insere, hoje, no âmbito prático. Utilitarismo desenfreado. Onde mesmo amar nos serve e beneficia – deixa a pele melhor e nos livra dos hormônios da loucura, dizem especialistas. Cada gostar, vira curtir, na matemática do comércio de afetividades, no âmbito da mais-valia emocional. E, ainda assim, tudo nos falta. Procuramos sempre um tudo para nos preencher ultimamente, mesmo o inútil, que tem ganhado cada vez mais razão de ser.

Mas essa economia de preenchimentos só faz sentido num espaço mediado de auto-validação dos processos de busca por preencher as faltas; é necessário um ambiente em que cada ponto desse sistema se reconheça e valide os procedimentos de preenchimentos ali empreendidos, até que disso, uma paz caia sobre as têmporas e a falta se invisibilize, até a próxima, daqui a meia hora.

Se você não está nesses ambientes, conforte-se em lidar com a falta no modo tradicional, ou seja, no bruto. E qual a melhor forma para tratar a falta quando fora de linha? Não problematizando-a, no máximo tematizando-a, e sem somatizações. Deixando-a ser isso que ela sempre foi: a incompletude humana que nos é a marca de sermos humanas e humanos. Somos esse projeto incompleto. Uma coisa que será. Eternamente. E isso é o nosso ser. Tudo nos falta e nada não nos basta. Ânsia em latência. Mas tudo não é uma possibilidade. Sequer existe para nós. É, também, um projeto. Tudo é um devir.

O distanciamento que há entre nós, nos ajuda nessa ânsia plena: sempre parece que houve um momento idílico, talvez já vivido por nós, talvez vivido por gerações passadas, certo que no futuro, em que a distância não há. Laço comunal e familiar, sempre talvez. O certo é que a falta nos demove em redes e não facilitamos os processos para ninguém, é tudo sempre complexo e absurdo. Cada vez mais. Sequer aventamos a possibilidade da simplicidade. São tantas portas, tantas aberturas, cada vez mais como fissuras, que a única forma de preencher o que falta, parece ser faltar mais. Distraidamente.

Há atenção muita, em todos os recantos dos ambientes de comercialização de afetividades, mas nunca atenção plena. É sempre uma tensão dispersa, travestida de atenção cuidadosa. E cada vez mais me apercebo que o problema – para mim – não é que ninguém dê atenção, é a minha própria desatenção, que começa em mim e vai de mim para a outra e para o outro.

Observar a minha falta e as minhas faltas, atentamente. Essa é a minha missão para esses dias.

https://www.youtube.com/watch?v=4cu4E3TufTk

3670. domínio do fato

eu não autorizei nada em meu nome
você que amou os rastros
despejou querer por aí esparramado
dando atenção em troca de lealdade apaixonada

eu não disse forma cor textura
nem percebi que coisa assim havia
sequer ponderei que era disso que o mundo precisava

subentendido você executou os amores
bem colorido
e caiu em desgraçada sucumbido
flagrado com êxtases nas cuecas
levando junto uma tropa de apaixonados
todos destruídos

e eu não autorizei nada em meu nome

mas seguiram as evidências por você deixadas
e deram comigo sendo

minha pena

:

vinte e cinco anos de coração esvaziado
e mais três

em regime semiaberto

 
eu não era réu primário.

3668. crediário (casa baiana)

ele não me olha mais nos olhos
desvia capoeira
fala daquilo de tudo de tanto
menos de nós
dos nós
do peito
da garganta
faz roda e arrodeia

ele passa incólume e atento
aos tempos
a tempos
rijo que nem pau de biriba
oco que nem cabaço de berimbau
malemolente

fica tudo lento daí então
maresia pousando no sertão
evaporada de um tanto

me largo na rede e balanço
sem pressa
enquanto tudo se apressa nos dentros
e aperta
e espero

ele vem num toque de são bento pequeno
e me passa uma rasteira
na dianteira do tempo
no adiantado do atraso

tudo acabado
mas a gente faz um novo crediário
longo longo prazo
a juros no correr monetário
da vida e do juízo

uma hora amor volta
atenção vem
a tensão vai
e ele fica

 
meu crer diário.

3665. des-curso

brado alto, altiva a voz
certo o alvo, altaneiros nós

do púlpito azul, limpo a minha tela
para que dela saia a sentença mais bela

(antes bela do que certa)

:

morte àquela, àquele, àquilo
morte às massas, aos quilos
morte à morte, morte ao vivo
morte morte morte será a máxima sorte para o bandido

morte a você, morte ao meu filho

(se assim ele for na conduta do desvio)

morte a mim, se for preciso
para salvar essa pátria em perigo

assim tuitou o menino
que curtiu do pai
que compartilhou do avô
o que enviou o primo
pelo grupo ensandecido

“Qui foi triste aquela função lá na cabicêra
Qui dassanta, a burrega marrã
Foi incontrada num canto do terrêro
Junto c’uns violêro mortos naquela manhã.”

https://www.youtube.com/watch?v=a5jHjarxACI

3662.

Em tudo há fins

                        – desde sempre –

onde os meios são todos:
cartas muros papiros suspiros
corpo relva mar

                        – e não os justificam

                        os compõem
                                    são tecitura.

A chave de um verso

                        – feito em prosa
                        olho no olho
                        afago de hálito quente
                        trêmulas mãos que se vestem
                                    umas nas outras –

é o fim

                        – silêncio que transporta
                        transpiração da pele
                        transposição de sensações
                        transformação do desejo
                                    em sentidos –

quando vira poesia
com outro.

3660.

da pedra ainda saltam as águas
que abismam o lusco-fusco, anunciação
do caminho visto, vasto, até a vertente do amanhã

esse entalho de luz no nascimento da noite e das nuvens
é o atalho que um canto faz pra sussurrar
o rasgo da terra por raízes feito

brotos que saltam para o alimento do voo
para o corpo ao vento envolvido
sementes, esperanças, saciam o avesso da falta

e um baobá se lança a todos os cantos
da feitura do tempo, arvorando-se ao vértice do espaço
pois que nele se sabe o início e o fim

feito o ir das estrelas para a vida, simples
unindo todas as dimensões.

3658. rede

a casa agora está vazia

debaixo do que pode definir
o contorno da existência

                                          pele

tanto

esse invólucro vagueia
perambula
peregrina
pelos ermos da casa

                                          para

há uma janela aberta
e o mundo para espreitar
imã ela

pulsa uma luz fria desde a janela
constante
tocá-la choca
e a redoma de pele pega
é um impulso elétrico
                                          magnético

o magma das eras que a forma
a redoma
se apega à janela
passa olhos dedos pele

                                          salta

adentra

e o mundo inteiro faz companhia
como se

 

e a casa agora continua vazia.

3657.

e se eu estranhasse essas paredes?
o largo corredor
o quadro celeste em forma de trapézio do quintal
as três marias sempre ali
essa areia de praia solta no céu
que doura a mortalha azul profundo

e se eu estranhasse você?
essa que me apresenta outra e a mesma
numa metade da maciez dos tecidos
no travesseiro companheiro
você mesma que renasce
sem cabelos

e se você renascer alhueres?

e se eu estranhar as gatas, o cachorro?
e não conseguir levar a mão
aos pelos sedentos de carinho
e se eu estranhar o menino?

e se eu estranhar as plantas?
a espada-de-ogum, a samambaia
a jiboia, a dama-da-noite
a arruda, o manjericão, o gerânio
as bromélias, o boldo e a sem-nome
essas que eu plantei, reguei e conversei

e se eu me estranhar numa manhã de quarta-feira?
olho no olho no olho do olho que me vê
mirando nauseado a calça que não me é
a camisa que não me cabe
o trabalho que não me alcança
o sapato que não me entende
as pernas que me arrancam de mim
os óculos
o cabelo
a barba

a vida

e se eu estranhá-la?

me dá a mão, me abraça?

3656.

como o topo dos cambuís
vão no vento dos céus
e o xixi-de-macaco caindo
até ruivo o barro ficar

como o jambolão derrubado
jabuticabando as ruas
e o algodão leve das painas
a tecer a terra em branca vez

como escorregadias as frutas
das saboneteiras a espatifar
e sementes pisadas crocantes
redondas do jacarandá do cerrado

como essas árvores
sempre no mesmo lugar
atravessa os absurdos

fincada

arbusto

até arvorar.

3655.

do clã do universo
minha tradição
remonta às células iniciais
e de todos os troncos
eu vim
remoto

o mistério que me compõe
todo átomo como lenda
da oralidade da luz
à flor-de-lis

paredes, papiros e papeis
cada ponto do meu corpo
grafite helicoidal

geração a geração
esse fluxo de energia
que paira e explode
plasma e pessoas

do som mais primordial
eu ecoo aquela faísca
fagulha
lírio reverberado
o que houve
que há
haverá

um instante

minha genealogia é do espaço
minha herança é o tempo

segredo encravado no crivo
mais fundo da minha cabeça.

3653. recriação de mar

quando me foi dada a missão
depois de tudo volvido ao ventre mãe

quando me inteiraram da função
que o malogro do distanciamento vagou

tinha por certo de novo separar
o que dentro da esfera girava misturado
só ventre e poeira

mãe já não havia também
só secura
era pó e quentura
pingo de estrela crua

e eu não tinha mais cabeça
ninguém quis
tinha pé e mão e tronco

e fui fazer então ela
que mar de novo tinha de vir
e tinha de ser feminina

separei cada pedaço de água que tinha
e salguei com sangue do peito
que é o mais salgado

era toda água muito miúda
e sem cabeça ficava mais difícil de separar

fui pelo tato
que água a gente sente jorrada
pelo toco dos dedos

o pó todo eu soprei e voltou estrela
a água eu amaciei doçura
ternamente e envolvi ela mesma
gota a gota
com sal de sangue de peito vivo

fiz redoma de água salgada
e veios de água doce atravessando
gota única dentro do céu
girando o sol

recompus só a mar
e me desmembrei larvas dentro dela

cada pedaço uma família de peixes
irmãs e filhas e mães

sem barro.

3652. cem quilômetros de solidão

a liberdade é das manhãs
e em cada alvorecer
um deus te nasce
entre os dentes
e morre

os raios enramam
feito jiboia trepando
e o peito desaperreia
ipês dentro
quando flores despencam
face afora

dura pouco
mas são léguas

cada dia
a brevidade das manhãs
põe séculos na pele

só nessas manhãs
você sabe a medida
da sua extensão
quantas eras

só.

3645. rastros de chuva IV

ele não sabe mais nada sobre mim
tampouco pergunta
não sabe que todos os dias eu choro
e reflito acerca da inexistência
não sabe que nada disso se trata
do desespero do suicídio
ou do afã de um fim de amor
não compreende que cá dentro
existem celas, que me aprisionam
cada ânsia um cárcere
grades e mais grades que antecipam
o real da vida e comprimem
não o peito, mas me comprimem dentro
dele, do peito

ele não me olha mais nos olhos
por medo da verdade
eu me encolho e nem tenho mais olhos
tenho correntes, paredes
me prendendo e espremendo
é tanto entranhamento que gera
um próprio estranhamento
não me reconheço

mas ele ronda tão próximo
e tão longe, tem pés de seda
mãos de afeto, que não tocam nada
ninguém

ele sabe do que há de vir
mas não me conta
fico aqui, em coma
dentro dentro
meu próprio carcereiro

ele, o discernimento