3734.

entre a árvore e o espasmo
navego
e é uma distância
de pelo menos vinte séculos

além do tremor
há o futuro e chamas
abaixo e acima da terra,
antes da seiva
houve a casca e um
momento que nunca começou

a permanência me permuta
entre dois cais
e às vezes meu corpo
se dilacera entre o lá e o lá
quebro-me barco contra o
rochedo
e meu naufrágio gira
num redemoinho de agora

nem lá nem lá
sigo-me inteirando os
fragmentos

entre a árvore e o espasmo
um mar
puxando-me às abissais
do tempo

3733.

Abaixo do manto noturno
uma legião de insones
a trafegar de lá para cá
sem sair de suas cadeiras
sem sair de suas camas

Enquanto isso
correntes queimam
os sonhos de quem pouco
ainda dorme

O clã das olheiras
Na cidadania global da insônia

 
Só durmo, porque desisti
E a fissura dormente dos insones
queima meus sonhos

 
O wi-fi nunca desliga

3731. eu vejo

pelo retrovisor da bicicleta
o sol me acerta
à frente
minha sombra projeta

leste a oeste
leste a oeste
são minhas pernas
à sombra
na bicicleta

ao fim da via viro boreal
e a meta poente vira o norte
quando viro à direita

atrás austral
e o sol à leste
meu yin acerca
com seus raios de seta

e a sombra dos raios
das rodas da bicicleta
caem poentes
donde o sol ao fim do dia
certamente resta

3728.

quando seu universo não é comungável
quando se é alienígena
quando em sua língua só há um ser ainda falante
quando ninguém lhe tem empatia
quando um mar de sorrisos obrigados avança
quando você não mora sequer na memória
quando se é dos transmundos
quando a palavra companhia é sinônima do seu tronco
quando se escreve para avatares
quando se ri para aparelhos
quando se fala com teclados
quando se toca em busca de prazer
quando tudo o que o contorna é segredo
quando nada mais se faz sagrado
quando não existe troca
quando entre o peito e a garganta um mundo
quando é um mundo que ninguém trafega
quando você resta

está no adiantado da hora, pois

é quando o horizonte se mostra mais amplo
é quando a liberdade não é mera palavra
é quando os instrumentos reverberam
é quando o canto ecoa solitário em si
é quando as cores te dominam
é quando o céu lhe acaricia
é quando os enredos te comovem
é quando o sabor se assemelha à infância
é quando você se enxerga
é quando você escuta
é quando a mente clareia as formas
é quando seu corpo dança no escuro
é quando o quando não importa
é quando todo onde você está
é quando partir chegando
é quando o peito desoprime e a culpa foge
é quando você vai

3726. a-deus

vi três estrelas cadentes no céu
desde o começo do ano
e hoje no vagão da volta
três pedintes clamaram
por qualquer trocado

o número três não é cabalístico
tampouco há providência

no jardim dos acasos
eu e mais duas pessoas
somos apenas três

            – coincidências entre
            espermatozoides e óvulos

e o único óbvio
é que só a aleatoriedade explica
tanto quanto,
não salva

3723.

quem sairá da sua redoma
do seu trono
e oferecerá o apoio
o esteio
ou pelo menos a pergunta:
“precisa de ajuda?”

não serão os reis, as rainhas
nobres e fidalgos
tampouco a sua irmã ao lado
nem seu pai ou seu amigo

será ninguém

regozija-se, pois, consigo
e a revolução não será televisionada
será espelhada
 

empatia é mato
no planeta dos egos em colisão

3722. totalitalirismo

será a comunhão dos sentidos, a falta de
e o equilíbrio da razão quando precisa
contemplaremos
teias, linhas, pontos
tudo em movimento

dança pura propagada

nada serve, é ser
nada serve ninguém e é seiva

            – admire seus segundos
            secretamente sutis
            dias seguidos
            vivos

            sinta, medite…

3721. totalitarismo

é o império dos cinco sentidos
junto ao domínio da razão pura
nada é contemplável
é apenas um fio longo de ideias conexas
só meada

política bruta semeada

tudo serve para algo
tudo serve a alguém e é alvo

            – ocupe seus segundos
            seguidamente úteis
            dias seguidos
            cegos

            sentido! marche…

3720. mor ar dá

haveria espaço para os passos?
ou seria tudo apertado, atabalhoado
ou seria corredor amplo, largo

seria casa, o que mais?
varanda e quintal
seria quarto e sala?
fogão ao lado do sofá
seria cortiço?
belzebu transando no cômodo ao lado
seria mansão?
a vasta experiência da solidão

não sabia qual seria
tamanho, lugar, nascente, poente
vista pro nada
sem vista
só paisagem
uma rodovia junto à cama
23º andar para pular
madeirite e papelão
bem localizada

nada dizia como seria
quando seria

mas havia um porquê
guardado no fundo dos seus olhos
quando encontravam os meus
e flutuavam juntos
no ar

e foi nele que moramos

https://www.youtube.com/watch?v=3rWMxH_owG8

3719. O fim da estória

De onde vem o saber do mundo,
o nome das coisas,
os sons com seus significados,
os gestos e sua sabedoria?

Quem habitou tudo com sentidos,
ensinou a enxergar,
separar formas no todo embaralhado
distinguindo contornos?

            – um telefone sem fio de milhares de milênios
            transcorridos, tudo cortado desde
            a origem

Desde a mente primitiva, animal,
forrageando no meio dos cerrados,
o mundo vem sendo criado

Quantos deuses nascidos de trovões, do fogo?
Quantos deuses ceifados?
Quantas destruições e recomposições do humano?
Quantos sopros de vida?
Quantas almas nasceram e sucumbiram
carmas divididos, juntados, transtornados?

E ainda assim, o passado vem à tona
Múltiplos armazenamentos para explicar
para contar essa história feita de bifurcações
que bifurcam e que bifurcam e depois
bifurcam e, então, bifurcam

Separações e fusões
sangue e amor
percorrendo e fazendo as eras

Cabeça após cabeça,
a narrativa de todas as diásporas
dos mares de migrações
ambientes tomados, partilhados, cercados,
livres

Uma Terra como o todo

E sempre há aquela, que falou para aquele, que ouviu
daquilo – pois que até pedra era gente –
que foi segredado por um bicho:
que depois daquele morro,
por trás daquela serra,
além daquele mar,
alhures do deserto,
no meio da geleira,
por dentro da floresta,
léguas deste lago,

morada há
e bom paraíso
Que é lá que os espíritos nascem

E cabeça após cabeça,
após cabeça após
os pés se guiaram para o agora

Milhas e mais milhas de memórias
transcorridas boca a boca
gesto a gesto
toque a toque

até dar nesse vórtex de dispersar conhecimento e informação
chamado hoje

 
Eras, eras e mais eras, de mais eras do que se pode supor
descontinuadas para um futuro
que engole o que foi e o que é

3718. Outros gênesis

Aqui começou o Azul,
tenho certeza
E foi nesse
mesmo ponto do ano

Assim que se separou
aquela massa de
trevas, lama e lava,
foi a primeira coisa
que Ela criou

Calma e feliz, Ela disse:
“Permita-se, Azul”
E dele todas as cores
foram jorrando em cascata
e se depositando
em cada forma que,
inexplicável,
se criava

Dos frutos do Azul,
todas as impossíveis
formas se adornaram
Germinaram beleza
desde o Azul

que aqui se permitiu
pela primeira vez.

3717. Horóscopo Floral

Queria construir outras constelações
e a cada traço imaginário
unindo os pontos, as candeias,
reverter os destinos

rastrear o plasma arremessado
por estrelas passadas
ardendo eltro-magneticamente
a fagulha dos contornos

Não destruir os signos,
mas distrair os sentidos tidos
e recompor o firmamento

Faria em cada nova constelação
uma flor, ou seus cachos:

Quem nascesse sob o signo das Gerberas
seria solar, raiante
A quem pousasse a constelação de Gerânio
múltipla e ímpar se faria delicadamente
Quando no horizonte despontasse
em acensão as estrelas que compõem as Begônias
o eu de quem assim surgisse
irradiaria a suculência da vida
Sob os auspícios da Rosa
teria personalidade de quem
fere retinas dado o belo
O signo da Açucena
oposto complementar ao de Jasmim
traria a elegância opulenta
contrapondo-se à fineza discreta
E se Marte repousasse aplicativo
à constelação da Flor de Manacá
sua ação seria doce e leve
Pelo signo de Violeta, o mistério, o segredo
e a necessidade do velado
No trígono entre Vênus e Dama-da-noite
a suavidade e o perfume exalariam
da sorte desse encontro
Entre a Lua e Lírio
um ser de sentimento aberto e calmo
dado à emoção
Se no Meio do Céu se formasse
a constelação de Tulipa na hora do nascimento
trabalharia com o coração, abençoando todos
os frutos de seu labor
E quando na 12ª Casa, repousassem as candeias
no feitio da Orquídea, o mundo espiritual
seria contagiado pela plenitude
ciente da brevidade

dessa nossa matéria
feita de pó de estrelas

#comoarrumarumanamoradapreta

O primeiro passo é não ser idiota. Você, necessariamente. Ela, de preferência. Afinal, ninguém gosta de idiotas. Saber escutar é algo premente, não pelo primado machista e categórico de que falam demais, mas porque todo mundo gosta de ser ouvido e porque é bom saber de alguém, conhecer-lhes a história, saber-lhes as posições, os gostos e mesmo as angústias. Falar também é um bom começo, não pra contar vantagem, não para uma paranoia egoica e contorcida de fatos inverídicos e autoafirmações impiedosas para ouvidos alheios; mas falar como quem tem o que dizer e sabe que ali há uma ponte para o diálogo, para a troca.

Contemplar-lhe a beleza é bom também. Se você nunca a percebeu, sinto muito, provavelmente você é racista. Não necessariamente do tipo que xinga, desencosta ou agride, mas do tipo que adentrou no conceito histórico racial que a maior parte do mudo lhe outorgou sem qualquer reflexão sobre, e que constrói até mesmo a forma de como e quando você vê beleza em alguém, oprimindo seus olhos para não ver beleza onde há. Você pode até dizer: “mas, beleza nem é fundamental”, tudo bem, desde que você ache que a beleza negra é beleza. Senão, você é idiota, certamente. E racista.

Admire tanto quanto sua beleza, ou até mais – a depender do que lhe atrai mais –, as suas ideias, inteligência, caráter, charme, postura, o que ela é. Se não for admirável, saiba que não é pela cor da sua pele, mas por humanidade demasiada, efeito que se dá em qualquer exemplar da espécie humana. Se não sabe, bem… você é racista.

Fale de política com ela, fale de história, fale de amor, fale de músicas, filmes, novelas, livros, bichos, aquarelas, flores, física, espaço sideral, passarela. Troque ideia sobre tudo, que nessa troca você vai sacando o que lhe agrada e te agrada em conversar e o que flui entre vocês.

Para encontrá-la, basta ir a qualquer lugar em que elas queiram estar, pois estão em todos os lugares. Alguns menos, outros mais. Numa sociedade racialmente desigual em termos socioeconômicos infelizmente você sabe o que isso significa. Se não sabe, já sabe que é racista, ou no mínimo uma pessoa burra útil à perpetuação das desigualdades. Mas nunca, em hipótese alguma, estranhe se ela estiver em um lugar X ou Y, pois não há lugar definido para que elas estejam. Elas estão por aí, como todo mundo deveria e poderia estar.

Saiba desde sempre: elas não são máquinas sexuais. A priori ninguém é. E quando são, são porque querem e gostam – como geral que quer e gosta e é uma máquina sexual. Saiba disso. Se não sabe, bem, você já sabe… Mas acrescento: além de racista, você é machista. E idiota. Descubra o que querem sexualmente devagar, sem pressa – ou com pressa e força se é isso que ela quiser –, no toque, no trato, no cuidado, delicado, atencioso. Não porque elas são carentes ou coisa que o valha. Geral está carente nesse mundo, elas não estão nem mais nem menos. Elas desejam. Igual que nem geral. Seres desejantes, é o que somos.

Dê prazer, porque dar prazer é bom, e dar prazer dá prazer. Experimente. É bom. Garanto.

Mas, para além dessas obviedades todas que digo, saiba minha amiga e meu amigo, que não sou e nunca serei um especialista em como arrumar uma namorada preta, quiçá mesmo de como arrumar um namorado ou namorada de qualquer cor. Especialista nisso não existe. Se alguém se diz especialista nisso, é idiota. E canalha. Para arrumar uma namorada preta, o primeiro e único passo que deve haver é o encontro e o encantamento. E para isso é preciso estar aberta ou aberto para encontrar e se encantar, não numa sanha louca de buscar uma mulher preta para se relacionar, é óbvio. Mas, aberta ou aberto para se relacionar de forma não abusiva com outra pessoa, dentro da vida.

PS: Só escrevi esse texto porque tive contato com algumas coisas tão absurdas na internet esses tempos que não consegui tirar isso da cabeça. Sublimo-o aqui (e em hipótese alguma compartilho as atrocidades que, infelizmente, vi e ouvi).

3709.

houve um tempo
em que amávamos devagar
e quando do dissabor
curava-se com solidão
e um vermute, anos a fio
era uma velocidade
de caminhar a pé
de cartas transoceânicas
levava-se bodas de ouro
até se aperceber do amofinado
até se juntar rusgas
e se tocar pelo invisível
do desenredo

não é que amávamos mais
ou doêssemos melhor

é que sentíamos lento

3702. Departamento de Ortofrenia e Higiene Mental

Será revitalizado dentro do novo Ministério da Moral e dos Bons Costumes
na Secretaria de Defesa da Ordem Social
vizinho ao Departamento de Fomento ao Civismo
e ao Departamento de Fiscalização da Família Tradicional

Será responsável pela implementação da Política Nacional de Contenção dos Desvios
com o objetivo de extirpar anormalidades e anomalias sociais

                         – dessas que se nos ajustam,
                         o cambiante da razão
                         junto ao todo do espírito
                         ao aprumado da alma, para quem acha que tem
                         e ao bem feito do corpo ao ser feito como quer e usado como gosta –

Será comandando com pulso firme, bolso avaro, eficiência e eficácia
aos auspícios do Exmo. Sr. Dr. Cel. Asdrúbal de Deus
originário do Terceiro Destacamento da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão
cuja ferramenta primordial para o alcance dos objetivos colimados
será o CANALHA (Cadastro Nacional de Anormais e Loucos em Higienização Atávica)

Terá recursos, além de um programa de renúncia fiscal para
empresas que aderirem à CAGUETA (Campanha de Gestão Uniforme de Empresas que Tratam Anormais)

Ganhará o Prêmio de Práticas Inovadoras na Gestão Pública
no ano seguinte à sua instituição
 

Será privatizado até o fim do mandato,
após a 25ª versão do Programa Smart-Estado “Minimizar é Melhorar”

3701. catarse

cometa comentários
como cometas cáusticos
colidindo com cosmos caóticos

comente cometas
curta como cársticas
cordilheiras caladas
camadas compressas

compreenda como casos
compartilhamentos coisificados
contraídas colagens cantadas

conte cantos com
carcomida condução cortical
conduzindo comprimidos computadores

controle-se comicamente
com colisores, códex
curtos códigos, códices
captando compassos convalescentes
colérica condução

combatentes cambiantes
codificações contratadas
carregamentos conectados
carga, carro, caminhão

categóricas coreografias combinadas
cartografias corporais colapsadas
corcundas cabisbaixas
 

cosméticas cabeças capturadas
corrosiva comunhão

3700.

o dever é o de libertar afetos
o dever nenhum, pois

não houve empréstimos
ninguém tratou de dívidas
tampouco houve aposta
há sim vida

o som mesmo me afeta
enfeita corpo e cabeça
com o invisível
me sinto mais bonito
quando sons me adornam
mais que quistos e soltos

a sinuosidade dos toques
que me tocam
a síncope e a cadência
que me ritma

seja de qualquer mão que venha

há quem não goste
e arranje artes de desgostar
esquece de libertar os afetos

como aquele primeiro de todos
de dentro de si
 

liberta
deixa-se gostar

https://www.youtube.com/watch?v=ar5vfgW7u2Q

3699. O Teu Canto

Retalha-me a pele, tatuado auto-relevo,
corta-me o espírito em três, mas
continue o canto.

Não me negues a nota
o ar que dança ao teu movimento,
a boca que trisca o céu
e em som se faz,
as mãos que ondulam
mares em meus ouvidos.
Ou me negue.

O mundo se arruína em degredos.
Sempre volto com a alma em frangalhos
quando me aventuro em seus labirintos
– essa infinita mudança prostrada,
mas quando o teu canto atravessa
espaços e me traz paisagens
estelares em manhãs douradas,
pulso vida aberta.

Mas não é amor, é flutuação
e claridade que estonteia
em mim teu canto, sem a face
dos grilhões debaixo da terra
a surgir flores carnívoras.
Canta, porque teu canto será para o mundo
esmaecendo a dor.

Em meio aos vales ecoantes,
o teu canto não deve nada
será canto e doçura,
estação precisa dentro do ano,
para desabrochar flores,
cair folhas, chover mares,
chorar frios e calores.
Será teu canto.

Canta o escuro,
a brisa, a bruma,
canta as cidades
os rios e as pessoas,
canta tua vida
pra mim que não te ama,
para o universo que te faz
e já te refez
indo e vindo nas mesmas forças,
feitas de cantos,
como o teu.
Destroça-me as partes,
todas e de além,
e teu canto também
se quiseres,
porque ele é teu.
 

Mas lhe peço humildemente,
continua o canto.

Da loucura

Sempre gostei de caminhar, muito, mesmo. Desde moleque, adorava fazer caminhadas com minha mãe, ao longo da avenida, escutando as suas lamúrias, queixas, projetos e pequenas alegrias, algumas lembranças, memórias de sua terra, de seu tempo de garota. Ela caminhava por hábito de saúde, para conseguir emagrecer, para melhorar a circulação das pernas sempre cansadas devido ao ficar em pé, aulas e mais aulas infinitas. Adorava caminhar também com meu pai, seu silêncio reflexivo, sempre imerso em um mundo seu, nas suas noias, seus problemas, seus quiproquós criados por questões sexuais para quem nunca falava – só para si. Era um caminhar contemplativo e depressivo ao mesmo tempo. Sempre com alguma finalidade: comprar algo, pesquisar o preço de algo, ir a algum lugar, tudo bem rápido e mecânico. Mas ainda assim, gostava dessa caminhada.

Ainda hoje caminho, muito. Para fazer de um tudo. Mas a melhor caminhada é essa dos fins de semana, em que misturo as duas andanças feitas por minha mãe e meu pai: a revigorante da saúde e a objetiva de afazeres para o lar.

Gosto de caminhar aqui no meu bairro, são vistas que reconheço desde a infância, à revelia de todas as transformações da paisagem que possam ter se efetivado nessa porção do espaço. Nesse meu andar, vejo ainda pessoas do tempo de menino, o Edu da barbearia, o Joaquim da vendinha, a Lia da igreja, o João da agropecuária, a Conceição do salão. Mas existe uma figura que sempre avisto, e o desde quando se perde na memória num longe muito. Andando hoje, eu a vi.

Ela se chama Dona Testa. Quando da infância havia um conflito sobre o correto nomear dessa pessoa: Testa, Terta, Téta, Treta. Ninguém sabia ao certo, ou cada qual achava que seu modo era o certo. Eu pertencia a quem tomava por partido que era Dona Testa, desde sempre, óbvio. Dona Testa sempre fora uma velhinha na minha cabeça, tiazona negra, magra, bem magrinha, miúda até não poder. Cabelos brancos desde que me entendo por gente, sempre com uma roupa desgastada, puída; saia e camiseta surrada. Andava sempre com o braço direito meio que segurando o esquerdo e de tempos em tempos tinha uma espécie de tipoia apoiando o lado canhoto.

Dona Testa não falava muito, mas quando se a ouvia resmungando, falava coisas que para nós eram desconexas, palavras soltas, coisas aleatórias, parecia não haver contexto algum. Sempre ficava à caça de bitucas e quimbas de cigarros pelo chão, mas não os fumava, apenas os procurava e saia com eles nas mãos. Não sei se os comia ou se apenas limpava o chão, mas fazia isso sempre.

A molecada tinha algum medo dela, não muito, pois ela mesma não fazia nada, quase nunca revidava as inserções agressivas das crianças, sempre parecia passar incólume, dentro de si mesma, num mundo que ninguém ali sabia do que se tratava.

Dona Testa não era a única “doida” da vizinhança – título que dávamos a diversas figuras que ali moravam –, havia também o Zé Doido, ou Zé da Lua, como por vezes era tido. O Zé era uma figura sui generis, um sujeito amorenado, com os olhos puxadinhos, sempre com um quase cavanhaque, uma cara redonda e gordinho. Parecia meio chinês, mas hoje, pensando bem, ele tinha muito mais cara de mexicano do que de oriental. A doideira dele se manifestava de outo modo, era estática. Ele ficava sempre parado, uma das pernas levantada, equilibrando-se apenas em uma, com os braços estendidos e tesos para os lados à altura dos ombros. De quando em quando, trocava de perna, em busca de novo equilíbrio e algum descanso. Batia corriqueiramente palmas e falava coisas muito estranhas, não para dentro como Dona Testa, mas para fora. Falava sobre a lua, sobre algo que viria e parecia sempre meio que captando energias do sol e, quando de noites de lua cheia, dela.

Ele era do revide, se alguma criança arteira viesse puxar-lhe o boné que quase sempre usava, ele corria atrás batia e xingava a peste. Zé Doido não levava desaforo para a casa e tampouco deixava que lhe tirassem de seu contemplativo e singular tai-chi diário. Um tanto mais próximo ao Zé, eram os dois irmãos que moravam no conjunto G, um bem alto, troncudo e o outro mais baixo, gordinho. Ambos de bigode. O maior era mais agressivo, o menor um pouco mais calmo, mas mais chorão. Eram mais velhos, deviam ter seus trinta anos já, mas tinham um comportamento infantil, brincavam de bola os dois e falavam coisas de criança, com um tom de criança. Viviam sempre dentro de casa, quase nunca saiam para a rua, creio que porque eram meio agressivos com outras crianças.

Moravam em uma casa murada na frente, o que era bem raro até então. A maioria das casas tinha portão na parte da frente, com jardim e plantas. Essa coisa de muros e cerâmica é moda do final dos anos 1990, antes disso não, a moda era ter vida para além dos seres humanos e dos humanos caninos e felinos que habitam as moradas. Na mesma rua, havia o garoto com síndrome de down que morava um pouco mais à frente. Sempre risonho, sempre com vontade de brincar com a gente, mas quase sempre aprisionado em sua casa. Tinha um ar triste, mas feliz ao mesmo tempo. Penso que vivia dentro de si num mundo à parte, louco por experimentar o outro lado, sabedor de que não havia problema algum para a sua presença em qualquer outro lugar, mas que ficava ali, estigmatizado por conta de alguns genes que resolveram se diferenciar da média corriqueira das demais pessoas.

Essas pessoas eram algumas das ditas “doidas” que viviam na minha quadra, mas se percorrêssemos as quadras vizinhas era uma nova sorte de sujeitos desajustados com o que deveria ser o “normal”. É claro que se fizéssemos uma avaliação detida sobre a maior parte da molecada que colava com a gente, hoje em dia quase todas seriam diagnosticadas com algum transtorno, hiperatividade, desvio de atenção, sei lá mais o que. Tinha o Divino, completamente amalucado, que tinha por mote ir para a Barragem só para brigar com pessoas, havia o Herbert que gostava mesmo era de tacar pedra nos telhados alheios, só por ouvir o barulho da pedra nas telhas, tinha o Alan, que gostava de falar sobre masturbação para quem quer que estivesse por perto, sem filtros, além de curtir um gato novinho no espeto, tinha também o Maurício, daqueles que se tinha por dito que enlouquecera “de tanto estudar” – embora, houvesse quem falasse que ele era doido por “tomar Diazepam com pinga”, vai saber… Enfim, havia muitas loucuras distintas, eu mesmo estaria, sintomaticamente, dentro do espectro dos transtornos bipolares, sempre tido como no mínimo “esquisito”.

Caminhando hoje até o Centro, até a Casa de Yemanjá, atrás de umas contas de Oyá para minha companheira, andando para pegar um sol e processar vitamina D, passo leve para conciliar o todo do corpo com o estado da alma, respirando profundamente e escutando o novo disco da Céu, encontrei Dona Testa, em sua andança de sei lá onde para não faço ideia de até quando. Carregava sua loucura como sempre, dentro de si. Desapressei mais o passo para que pudesse acompanhá-la um pouco mais, trazendo comigo esse mundo todo de desde criança, essa proximidade com a loucura sempre dada, sempre possível.

Na altura do Tatico nos desencontramos, continuei meu trote solitário, com o caos e o cosmos aqui dentro e por todo fora. Imergi em mim nessa imensidão de céu que se tem nessa cidade, em meio ao pó do barro vermelho e solto que a memória dos meus pés nunca se esqueceu. A mente inquieta, a espinha quase reta e o coração, tranquilo. Certo de que a loucura é um estado de espírito de quem tem um mundo outro dentro de si. Caminhei.

3692.

fui passear com a minha
camisa no samba
no samba iaiá
no samba iaiá

fui passear com a minha
camisa no samba
camisa iaiá
que ela me deu

camisa medida
bem mais que bonita
que ela me deu

de pano da costa
detalhe dourado
e da cor do breu

naquele dia
só quem aparecia
era eu

só que minha menina
que é a que brilha
sendo a noite o corpo seu

naquele mesmo dia
no samba
não apareceu

fiquei só com a
minha camisa
passei com
a dor bem vestida

era a camisa por
ela cerzida
que me conduzia
no salão

engomada e linda
era só a camisa
que deslizava
no samba-canção

3691.

era uma beleza por um fio
de Ariadne
saia das mãos em finas linhas
tramas e mandalas
se ressignificavam no dorso
e transpassavam o umbigo
num ir e vir de segredos
morava um sagrado
uma constância com a mutação
e certezas diluídas

era um não sei quê
de tudo incerto
e charme até nos pés
uma coisa de interior
ainda que com ossos nas orelhas
é que havia singeleza
e calma

pausava atenção para ouvir
e deixava que adentrassem
mostrando os traços
e as cicatrizes
sofrera
como toda beleza

houve parca luz e só
contornos
no assustado da noite
entre a chuva
e uma varanda de existir
juntando cada fio
novelo de enlace
a madrugada dispõe
olho no olho

3690.

doce irmã
sei que já nos deitamos
entre sedas e silêncios
falando esse tato de sentir
e aprendemos a dimensão
dos corpos

aparamos a grama e as
arestas
e debruçamo-nos sobre
muros, intransponíveis

o verso dos ventos
nos deu de dorsos uma à
outra
e ainda assim somos
e permanecemos
soltas à inveja
das labaredas e flamas
que ansiavam nossa morte

doce irmã
as águas nos unem
pacto e laço
igarapé que somos
até dar no mar
destino certo das
vazantes que nos constroem