3548. marcha

cada história ali posta
andante, em marcha
cabeça punho erguidos
conta o absurdo mais inglório
de um momento histórico que não cessa

cada corpo ali composto
construído
milhares de partículas de diásporas
desafia a cultura engessada
asco e aspecto da perversão humana

cada sangue ali corrente
atravessadas léguas de mares
em correntes
transmutado pela e para a violência
expõe a permanência da barbárie
macha e branca

cada uma ali presente
é o presente de outras
caladas, invisibilizadas
assassinadas, violadas
e é o seu avesso
a luta e a reversão
é a voz e a vez
o horizonte e o agora
o que há de ser
e será

cada ela ali aguerrida
é ela e tantas mais
coletivas, próprias
delas e para elas
em lutas que deveriam ser de todos nós

Sem título

3547. intento

antes que as paisagens
se coloquem no outro
lado da lua
que os mares soterrem
a visão e que desacreditemos
nas formas das nuvens
há ao menos o ameno do amor
para que praias em nuvens
avancem sobre nós
e ao molharem nossos tecidos
nos coloquem antes
bem antes
do ermo findo das paisagens

3545. treta

o problema não é a nossa massa grossa
é essa casca fina que a cobre
alcochoada por esse emaranhado inútil
de pelos e testosterona
e ser historicamente dotados de tônus e músculos
e essa aderência com nada mais que a violência

o problema é construir-se homem
em meio a essa massa podre
cinzenta de dejeto, desejo e desterro

o problema é que não é fácil desconstruir-se
homem

3544.

Lado de cá, Definitivo Federal, 12 de novembro de 2015.

Mano,

Com carinho lhe saúdo. Venho através desta lhe dizer, que feita a passagem para o outro lado, aquele em que nós dois já estivemos – certo que você por mais tempo do que eu –, que esse outro lado também tem sua valia. As coisas se alinhavam sempre em casas confusas, a costura certa, alinhada, é coisa de outra época, uma época em que tudo era definitivo, do nascimento à morte. Todas as coisas eram certas. Havia – certo que havia – quem desafiasse os fios da vida e costurasse seus próprios retalhos ao bel prazer, mas pouquíssimas figuras eram estas, esteja certo. Porque, afinal, o que é certo é o certo, e o certo vem da maioria.

Mas deixemos de delongas, voltemos ao mote da missiva, a sua estada no outro lado. Dizia que há ainda valia no outro lado, este de cá, em que eu adentrei há tempos e que poucas vezes o deixei, tem seu encanto: as novelas, os filmes e as canções nos conduziram a vê-lo enquanto o suprassumo da realização de alguém, o exato meio termo entre o nascimento e a vida: a companhia posta enquanto encanto, magia e arroubo de corpos e almas. Definitivo.

Há que se ponderar que esse lado foi, no decorrer da história, diluído em outras formas possíveis, ao passo de que, nós dois, por exemplo, entramos e saímos dele diversas vezes. Mas ainda assim é, decretadamente, o mais correto, belo, feliz e racional lado para se estar.

(Te peço que se acalme, ainda falarei acerca do quanto o outro lado pode ser melhor do que parece, mas preciso tecer mais alguns comentários acerca deste lado que abandonou e desde onde me encontro).

Ambos sabemos o quão ilusória pode ser a assertiva posta acima, o lado de cá, por você abandonado, é cheio de interpenetrações que a sujeitos descentrados como você e eu, parece que vão nos esburacar deixando pouco espaço para algo inteiriço que nos faça minimamente presentes enquanto seres presentemente inteiros. O lado de cá promove o despertencimento, esfacela o nosso eu em nome de um outro eu dúbio, formado por você e outro alguém, ansiando uma complementariedade irreal, formando uma expectativa insana e, ao mesmo tempo, promovendo alguns dos melhores momentos da sua vida. Diluir-se é bom, é vida. Não se ter é ruim, é morte. Tudo bem que há quem julgue a morte um bom mote, o fim almejado – definitivo e certo. O problema é que existem seres como nós, que têm ímpeto de vida. Mesmo que esbravejemos contra a própria, esperando a morte solenemente de quando em quando.

O lado de cá promove calma, controla impulsos – de quando em vez corta os pulsos, quase um pulo do vigésimo andar. O lado de cá contorna imprevistos, assegura as coisas, firma o chão. Lembremos, pois, ainda, que o lado de cá, é fruto da paixão. (Normalmente, claro. Houve tempos – certo que ainda os haja – em que era fruto de arranjos e artimanhas, prisões acertadas por juízes e padres). O lado de cá dá isso, enfim, a certeza de que a gente se escorou no definitivo. É isso, está tudo definido.

Mas e o lado onde você está? Este que você adentrou, meu truta, asseguro, que o bagulho pode ser maluco deste lado. Falo, óbvio, com ares de pouco conhecedor deste outro lado, talvez até idealizando-o um bom tanto, fantasiando. Mas assim o vejo: espaço afetivo em que a mediação é apenas consigo, interna, intrépida. As escolhas se tornam um desbotado opaco, mas são feitas em um lócus manejável, científica e espiritualmente passíveis de serem conduzidas por seus próprios meandros. Se esses canais serão caudais turbulentos, se serão lagos serenos, se terá margem, porto, cais, se será mar aberto, peito escancarado, rio subterrâneo em casulo cavernícola, nunca se sabe, mas se sabe – ah sim, isso se sabe! – é de sua inteireza particular.

O lado daí é assim, morno. Mas fluido em sua possibilidade de meditação e menor mediação, fluido em seus éteres, seu descompasso aerado, não aderido nem atritado. O outro lado pode ser bom, pode ser mau, mas ó grande lance, mano velho, é que (n)ele (se) pode.

Fico aqui do meu lado, definitivo, esperando a vida que possa para este seu. A vida que queira, meu caro mano. Na medida certa de altos e baixos, de infernos e céus, de epígrafes e posfácios, da feitura que seja para o básico de um viver na manha com sabedoria. Fico aqui, mano, meu, até que você venha, de novo, para o meu lado. Enquanto não, responda-me o quão logo puder, senão é treta aqui na cuca.

Abraço-te.

Do seu,

Carvalho da Selva.

3543. e nem fazem questão de se esconder

a piada é propaganda
graça-desgraça
dada de graça
enredo para a dominação
projeto político
a piada é a arma ideológica
os fins são os seus meios e começos
e o começo é esse carne e poder

por detrás da piada
querem o sangue
de seus brinquedos sexuais
e fetos preservados para o próximo abuso
baba e líquidos e mentes entupidas de pornografia
testosterona e mma
cheiram porra podre
por debaixo do milimetrismo de topete barba e perfume

querem brinquedos para tudo
e não estão brincando
tão violando violentando vis
vigiando gravando dentro de vagões
tomando corpos à força
querendo a próxima forca

eles se esparramam por todos os lados
viscosos como suas porras
em rede e em toda esquina
assoviam e constrangem
papam hóstia e são pais policiais
berram bíblias quando lembram
batem em bichas por poder
matam

eles estão em todos os cantos
não são piada
urram merda em todo canto
e tem quem faça coro

só não core quando o couro lhe tingir de ferro o lombo
não ria deles
faça como o sol fará
antecipando o golpe
degole a piada ao menor sinal de qualquer pio
deles:

sem garganta não há piada

3542. geracional

o amor só existe em superfícies planas.
no amassado da realidade não.
o que existe é coito, cópula;
um bando de enredo para novelas,
a educação que disse que era assim
até ficarem assados, assadas
e o vão da morte presente para sempre:

mamífera insistência de que somos bichos,
apenas.

mas o amor fica bem mesmo em superfícies planas,
cartesiano, metódico, hiper-real.
no 3-D da realidade não.
o que existe é exploração, abuso;
fórceps passional retirando goelas afora
diálogo possível em fotos minúsculas de monóculos envelhecidos
como no tempo de antepassados, antepassadas
e a prisão da vida por correntes de todos os calibres:

míticas evas, místicas heras, dominadas como bichos,
natureza.

definitivamente, o amor fica bem mesmo é em superfícies planas,
lisas, reflexas, linhas, luzes, lentes, telas, páginas, telas, formas
recipientes das projeções sublimes dos projetos de dominação.
no mágico da realidade não.
o que existe é carne, disfarce;
controle das pulsações alheias, rancoroso e garboso
encenação que domina todos os impulsos cerebrais, alma, tez os que tais e totais
feito o que se diz que livra algozes; expiação
e a via única para se culminar no pico do bem-estar consigo:

controlar corpos, vontades, desejos, estampar exemplo, puros, castos, virgo-sexuais.
alarido ecoante, desde o passado, avante.

3540.

há a tristeza de magda
ela parece que é de corpo
há a tristeza de heloisa
ela é de descompasso
há a tristeza de carlos
ela se dá com o tamanho
há a tristeza de aurora
ela pode ser de descoberta
há a tristeza de regina
ela se parece de cansaço
há a tristeza de paulo
ela é de desenredo
há a tristeza de sofia
ela vem de deus
há a tristeza de rosa
ela se dá pelo ávido
há a tristeza de heitor
ela ocorre por método
há a tristeza de silas
ela desaba pelos poros, magnética
há a tristeza de iara
ela é oriunda de mágoa
há a tristeza de cecília
ela vem de excesso de doçura
há a tristeza de cleiton
ela é de raiva do mundo

há a tristeza
ela é da gente
de tudo

3539. passagem de Xangô

concreto me desfaço em mínimos escombros
as eras se reconduzem embaralhadas
sou tudo o que pesa pelo frágil do corpo –
sou rocha –
desde sempre
magma tecido, os nós de minha pele
estrelas mortas meus pensamentos
um enredo passado
acertado hoje
estalo nos céus do universo, feito em fogo
aqui se faz, eu sou a paga

dois gumes minha cabeça

3534.

caixa fechada de mármore
alvos entalhes num encarnado
quase arabescos desdelineados
parte caixa e parte alçapão

abri a tampa lá dentro meu olho
me olhou desde o infinito
meu olho agressivo equino
interminável e assustador me
olhou profundo eu me olhando

tapei a caixa légua e meia
a mão encaixando a tampa
meu olho inundado lá dentro
a caixa de mármore lacrada
o olho gritava ainda olho
não abri vivo cego então

3528. sobre escombros e sob eles

cantos sagravam todo o plantio
e sacralizavam toda colheita
naquele pedaço de terra
cercado de vida por todos os lados

nas noites eclipsais
abismávamos nos abismos celestiais
vestidas de lua vermelha e breu
e tínhamos aquele tom
mais próximo do crepúsculo

plantávamos na terra doente
buscando sua cura, corpura,
regando com a água
colhida diretamente dos cachos
de frutas gasosas, sumo e néctar
incolor

cada casa morava uma deusa
um deus, dois adeus, ateus
em cada casa de barro
moldávamos cabeças
preenchíamos cabaças
e com um batuque cadenciado
fazia-se a luz, mais um anjo
amontoava-se o espaço
entre céu e terra
renunciávamos o pecado
e vivíamos de nossas naturezas
ofídicos

as conversas junto ao pé de pau
ali perto das cabras pastando
iam de lá pra cá, submersas
nos cem mil tons do ocaso

éramos poucas, o tanto
suficientes em si
e à porção ocupada
muitos para a festa

nos amávamos como amantes
aos primeiros dias e todos os dias
entre o trato e o trabalho
e o pulsar das rotações

abríamos nosso corpos
nos descorporificávamos
antes do sono restaurador
onde líamos cartas,
borras, bolas, astros, mãos
e o que se via
viria

3522. altas noites

alta noite
tateei teu hálito
era uma textura quente
atravessando o medo
me encaixei em tua concha
dorso encostando teu ventre
cada respiração tua
em meus ouvidos
desenhava a sinuosidade
das tuas curvas
no meu horizonte rochoso
dentro do meu sonho
te espalhei por cada
rio e folha que percorria
acordei árvore te despertando corredeiras
teu hálito insuflava calor
em minha boca

3520. Teoria Geral da Liberdade

“Quero morrer num dia breve
Quero morrer num dia azul
Quero morrer na América do Sul”

Reconhecer a matéria humana:
corpos agrestes
agregados de inércia
histórica
viva
aparte
– que cabe no
latifúndio divino –
um ego solto no breu
um soco, baque
corda que tremeu
entre o animal e o além

Reconhece

Toda matéria, humana,
ama, emana e atrai
trai, repele,
tem coisa de pele
relativa e subatômica

Sente as grades
grossas
nela se agregam
como as formas dos cristais,
conglomerados de padrões

E o humano não tem forma,
se conforma
transforma
transtorna
toda sua extensão
nasceu para se compor
por entre os vãos
do que não contém:
a matéria, feita de fibras
luminosas,
são escolhas

Poder ter escolhas,
caminhos,
o que dá forma à liberdade

3514. alberto costa santos

pegava o esplanada todo dia
com cartão integração
calor, seca, confusão
um dia entrou cismando
questionou-se que logo
no outro dia, teria que voltar
morava longe dali
o filhos moravam com ele, longe
tinha saúde, a morte, longe
a esposa na cama, longe
a salvação do pastor, longe
tudo longe
decidiu ficar ali mesmo no ônibus
voltas infinitas entre a esplanada e a rodoviária
nunca mais saiu
reza a lenda que alberto costa santos
virou um memorando
endereçado a si mesmo
e nunca dado como recebido no sistema

3512. paisagem

aqui terra escarlate
aveluda o horizonte
falta ar mesmo só
ele existindo em
forma de abóbada
cópula planetária
com o vasto envolvente

aqui tudo é plano
falta a sinuosidade
das pedras e das areias
mas aqui, pelo menos,
de tão aberto e exposto
nada se fecha
tudo está escancarado

: moramos no azul
sem asas adentramos
em tocos fumegantes
para melhor acessá-lo
a fumaça é o que
nos conduz e conecta

– fazemos sinais com ela
para que nos saibam
em outras paragens

3510. lambe-lambe e cia.

me cola na parede
e passa a língua
intervém em mim
ao largo de toda cidade
me ocupa de sentidos
onde o vago
invade

me grafita
me leva na tua fita
me colore, me decore
hard-core
e hip-hop

que te abro
toda a extensão
das minhas esquinas
e toda tela livre
das minhas paredes

minha rua
nua
para a introdução
da tua arte
de amor
ou de combate

a delicadeza
das tuas linhas
no emaranhado dos meus pelos

meu apelo
é pra que dê função sexual
à minha propriedade de pele
pega logo as tuas formas
e em mim adere

3509.

pelo celular, no metrô,
às vistas de outrem bem guardado,
a moça vislumbrava um lindo caralho
sorria, disfarçava, quando em vez olhava de soslaio
era um misto de vergonha e letargia ao contrário
um entumecimento logo abaixo
lhe deixava ensimesmada, não queria apenas
mas um pouco mais ao centro,
entre as pernas desabado
restava aquele úmido e quente estado molhado
e por um segundo se atreveu ao imenso de um disparo:
era dela, só dela, naquela tela, no metrô, aquele belo caralho.

3501. Quando o malaco biama

Segui! – parti pra fita de touca, esparrada.
mmmmmm Quebrada toda ornada –
mmmmmm Grafites de mil cores!
Segui; vibrando só. Fumaça, ataca a mente.
mmmmmm Vibrei, fugi dum crente,
mmmmmm Que só pregava dores.

Avistei a viela. – Os estreitos becos
mmmmmm Afunilando os secos
mmmmmm Momentos dos horrores,
De manos que tombaram e sumiram rente
mmmmmm Sua casa nascente –
mmmmmm Espasmos e suores.

De rolê na noite, gato pardo, meu olho
mmmmmm Vê a fita que escolho,
mmmmmm Sem quaisquer pormenores:
Não é fita dominada, coisa incerta
mmmmmm É uma coisa que aperta
mmmmmm Dá frios e calores.

Não é 157, nem caixa explodido,
mmmmmm É só peito ferido –
mmmmmm Maloqueiro de amores –
Que cai na madrugada estilhaçada, só.
mmmmmm E seu único B.O.
mmmmmm Foi perder seus primores:

Brenda, rainha, dona da minha paixão,
mmmmmm Toda estilo e atração,
mmmmmm E Ana, de altos valores,
Soberana da conversa e do meu juízo.
mmmmmm Eu perdi o paraíso
mmmmmm Por regar duas flores.

3500. Soneto

Belos, curtos, crespíssimos cabelos,
Donde se emaranham só com candura,
Grossos cachos, de luzir são novelos –
Dourado coroando a pele escura.

Colo de ébano, noturno relevo,
Ventre macio, perfeita gordura,
Juntos em corpo, se faz o enlevo
Que aprimora qualquer vênus figura.

Uma fala rápida, ácida e tática,
A mente desanda a ir mais além
É só toda ela, não tem uma máscara

Que tudo se adorna sempre que vem
E quando vai, a vida fica trágica,
Esquecendo saudosa que há algum bem.