3056. Ofício

Chorar uma torrente
pra limpar os olhos
e encharcar as olheiras
lhas inexistindo cristalinas

chorar essa tormenta
anticiclônica e tropical
apenas para o encantado de um tremor nos ossos
dos ofícios artificiosos
essas margens desaguadas da falta de calor
uma das vestes do carinho

chorar copiosamente por dois dias
e três noites
por nada

pra.

3054. Caminho de mesa

duas árvores da vida perfilando os nós
macramê intrincado
e tu dizias que sabias da trama cada rumo
cada ponto, todo o labirinto

teci, fio a fio, o que pude
réplica passo a passo da revista
mas tu, onisciência plena,
refutava minha tecitura com borboletas azuis
ipês floridos e cachoeiras impávidas

tudo bem, eu não competia
nunca decaí em inveja ou tentação
essa miudeza tão boba
todo adorno da adoração deixo a ti
só quis ocupar o vago das mãos
não costurar o tudo dentro da minha presença

3054. Dança na densidade

Como um enredo pra Rodrigo Campos,
duma distância vizinha,
a vista alumbra e não é lombra:
visível dança lenta,
longa pausa da mente
e o deslize num samba cadenciado
encadeado,
meus pés, seus pés, nossos passos.

Entre a hipótese crítica
e a hipocrisia na crista da onda cristã
nossa dança, preta e branca,
contas num colar pra lá e pra cá:
minha flecha e seu espelho,
nossa guia.

Explode o sol, as ondas fervem
despencam cifras, as trilhas caem
a terra treme, o mar avermelha
pardo.
Tudo arde, mas no caos acaso da cidade, eu e você,
dançamos na densidade.

3052.

diante dessa falta de além
esse vazio imenso, imerso
coisa teofóbica intensa
você poderia me chamar
um nome qualquer, monossilábico
terminado em i ou m
construindo castelos
ou pequenas ocas de barro
para nesse ventre voltar
imerso entre líquidos amnióticos
terra e gozo
morada e mistério ainda que possa

me chama
me grita
ainda que valha

3051.

Despenco entre tuas coxas.
Me comprimes.
Quando sou?
Segundos, ecos do teu céu.

Metralhadas aleatórias
Do teu fuzil erguido.
Anseia por mim deitado, casto

E desfaz-se tsunamis
Punhos d’água pela Orla – meu corpo.

Me esmagas
Com teus socos diretos.
Meu sangue titubeia
Certo.

Fiz-me ainda angústia
E esperança.
Borbulho-me gases estomacais
Azia devida.

Sou erro
Batimento marca-passo
O apagado ausente.

Feito tua imagem:
Costela.

3047. Flâneurs

Me liga amor e me convida a andar pela urbe
só para termos impressões.
Só para abdicarmos da exatidão das horas
e vivermos horas que sejam
no infinito do mundo sem relógios.

Ali, naquela esquina, cresce um prédio amor.
Vamos nos deleitar no sem compromisso
de passar os olhos pela vastidão dos andares
murmurando pragas contra o loteamento dos céus.

Amor, me chama para fazer nada e ficar gastando,
deitados debaixo de uma mangueira
até querer levantar e ir olhar a velocidade.

Me invita a sentar na areia
de frente ao mar
de costa aos morros
e rodeados de brisa, bruma, vento e nós.
O mar no ar dançando as cordas dos seus cabelos
e ouriçando meus pelos.
A gente sentindo o tempo
até querer sentir a água nos pés.

Meu bem, a vida vem – invariável –,
mas mesmo assim variemos a missa,
voltemos a olhar para a história só pelo prazer:
você de saia e chapéu cloche
eu de fraque e cartola
num pique-nique à beira da lagoa,
imersos na contemplação de qualquer coisa…

3046. Onironauta III

longe a voz se faz
a mecânica tesa da acústica das fibras
que compõem os sentidos
percebe a vibração desde já

imagens turvam a vinda
turbilhonam bilhões de textos
fazem a voz dançar
derramam expectativas esparsadas
– esses espaços da espera

longe, há voz vindo
sorrindo em explosão
vibra desde lá já cá frações
– mesmo, já denunciava a primeira explosão:
os ecos longínquos lançados ao além,
existência urgente desde a grande

balbuciam grotescas conexões
os sentinelas de agora e essa voz que já se prevê
pois urra o fim versado no início

caminha pela vastidão árida do futuro
até a planície desde agora
perpassa lapso vindouro
eco sonhado
nos vales do passado
nos fossos abismais e nas fossas abissais
do tempo da existência:
o pretérito, como prisma a decompor a luz do ser

mas longe a voz se faz
pós escrito lido antes
reverbera no peito

posto isso, o prenúncio da voz que vem medita:
há o agora
limpando estrelas:
a derradeira lida, o único eito

3045. horizonte prisional

a prisão dos pixels

o eterno calor das horas pares

“me dá a mão para o gozo?”

assutado,
maculei a miragem no horizonte

“afaga o centro da passagem,
essa abertura à liberdade interna
mesmo que ardente”

como água fluindo em dedos
rios mãos
mares braços
avassalando os pixels

“morre na minha imagem…”

more no meu horizonte,
as vistas se perdem no meu horizonte

“treme, eu sussurro”

apaguei as flâmulas de fora
entrando como água até as entranhas

“digital, a sua árvore da vida vinha
deleitando minhas raízes”

espera, amor das horas ímpares,
não há frio vindouro
meu horizonte é prisional
e eu todo água
à brasa dessas horas infernais

3044. Cocos aos povos

Quando do coco da cabeça
se faz a ponte ao todo
do corpo,

quando o inteiro do ser
bloqueia a inércia
de não ter,

quando a totalidade
da fé se completa com
flechas e raízes,

quando a independência
é solução diluída
e sorvida na água da luz,

é quando o horizonte
repousa circundante
dentro de si:

no meio dos cocos, como chaves para uma libertação.

3043. À margem da imagem

são invisíveis
esses que teu medo enxerga e te faz correr
elas não existem
essas para as quais tu fechas o vidro
os órfãos de casas
as improprietárias das ruas
aquele que no teu íntimo pensas
em atear fogo para lhe dirimir a dor
elas são o teu incômodo
que te faz segurar mais forte a bolsa
a tua falta de culpa
são as que são sombras e sobras
do que tu dejetas
os inexistentes das calçadas
as que carregam 600 quilos de ferro
os bêbados que estão assim porque querem
todas craqueiras fantasmas
assombrações para o teu saque no caixa eletrônico

essa massa amorfa torturada
violada e volante
carne que sente
que se junta e se ajuda
na fome e na cólera
no riso e no gozo
no sangue e no suor
na loucura e na lombra
na vergonha e no que resta de esperança
qual tu,
tu que não vês nada que não caiba dentro das margens
da tua própria imagem
como Aquele Umbigo onipotente de Quem cria

3042. A casa dos mortos

preto
pobre
louco
ladrão

quem há de dizer quem existe?
só o segredo da salvação
apocalipse 16 ronda a boca
há interesse, há alma
o mundo esqueceu e a página é morta
cada vida louca assaz louca restando grade
grande emaranhado para a salvação
do tamanho do corpo moído

três anos de reclusão inconclusos
para todo o sempre
amém.

preto
pobre
louco
ladrão

mortos desde a sua fatídica construção.

pedra
pela cabeça
pela forca

preto
pobre
louco
ladrão

guardados a sete taças, trombetas e esquecimento.

3041. Corda

Manejar as cordas que compõem a realidade
não é lida fácil depois que você cerrou as
portas que lhe conduziam à percepção.
O mundo fica rude, puro concreto,
armado.
Reflexo bestial.

A transcendência vira mero mixtape
e bricolagem de auto-ajuda.
E as cordas invisíveis que teiam o além
da realidade, viram forca.

O que religa lhe sufoca,
o horizonte ideal lhe afoga
e no fim você só quer que lhe afaguem o ego,
lhe lambam a glande e o clitóris.

É preciso, isso posto, uma paulada na cabeça
para que o além em você desça,
rodando tudo em si,
até que corda, corpo, ego se fundam no ar
e você vire vibração de um batuque sincopado
solto, girado.

Assim, como o sentido se sentindo.

3040. Velocidade

Ela disse:
“não deixe que o arame farpado
de uma realidade cerque seus
olhos que anseiam por tocar
o encantamento do mundo”
e, por amor, fiz a cerca boiar
nesse mar feito em minhas retinas,
detidamente parado
qual duas lagoas de sal. Admirando,
antes de serem admiradas,
os passos maravilhosamente calmos
daquele largo senhor ao lado.
Tudo na velocidade de ficar.

3036. Àquele

É aquele charme
de tristeza nublada
um ar de filme noir
soma um jogo
complexo de reflexos

(as horas vermelhas
inversas, versam melhor
percorrendo a face)

É um rosto fosso fosco
e ermos olhos de
sertão desolado

O semblante agreste árido
os vidros que mosaicam
como a calmaria
de um açude parado:
verde musgo barro
pincelado de nuvens,
o momento mesmo
daquele charme

Água-chão salobra
esse rosto moreno
que chama e chora
escorrendo pelo vidro,
vermelhas, as horas

3035. Onilírica II

o dia acordado na pressa de uma página virada
e um parágrafo lido lentamente
com aquela voz na cabeça aos sussurros

foi antes do sonho

como as manhãs que não acontecem nunca
caladas na pausa do sonho, na entidade desperta do dia,
premendo contra o corpo, gravidade, céu

os talhos inertes na boca e a força
pra romper a manhã adiada
consumindo riso em dentes laminosos

o sorriso do sol brotando breve entre uma chuva longe
seus dentes luminosos rasgando a brevidade
da pausa do sonho, afiada luz

durante o dia

durando marcha lenta, abafada, o estampido dos vagões
cada um dragões dentro do seu dia, peito e fígado
todo um jorge, lança e cavalo, simbiótico

chuva longe, agora dentro, légua de mar nos olhos
faz-te bruma, brilha breve um bem-estar
estando como todos, lado a lado, na plataforma, arrepia a espinha

o bolso chia, corredores e pátios longos, o fim longe
aquela voz sussurra na cabeça a brevidade até o próximo sonho
e lá no infinito, um sorriso brota

fácil, ainda que bruto

3030. Para tudo que foi, para tudo que é

Houve um tempo em que tudo era o norte,
aquele lugar em que a vastidão do horizonte
pulsava nas veias
e o sem limite do céu se mirava como meta.
Era uma ânsia pelo inesperado
envolvida em súplicas por mais.
Onde não calhava aquele vislumbre de que
o enraizado é parte para o infinito
e que o sólido – que, sim, desmancha no ar –
é arte vivida no aqui e parte pura para partir ao além.

Certo que foi você quem abriu a porta
e de dentro do real deu a deixa certa;
que ao entrar na casa, minha, nossa,
a vastidão se faria em cada cômodo
e mesmo em cima da cômoda,
na escolha do pano de prato estaria ali
– estampa e essência –
uma existência plena, aberta, quimérica, real;
o não lugar mais heterotópico possível:
o amor vívido de dentro do nosso lar.

3029. Diurna*

O mesmo império foi-se, oh torpe!
Desgraça dos agouros, fugida das trevas
De branco despes as noites
De matar estrelas

Ceifa bruta, corta noturna
Sorri o maldito, sensível inferno meu
Favela, espinho que sangra
Infincando as minhas têmporas

Inflama de prostrar, minha bruta
Darks mares que ampliam a tormenta cinza
Peso azedo que acorda
Ante a minha solidão

Abisma-me, salta, trovão das nuvens
Dos olhares geométricos da indiferença
Vestida dos meus pesadelos, neurônio que endoida
Vai, morre em mim

Amaldiçoaria sangue, minha alma com a sua
Carreado de suspense, feudo dos ocasos

O mesmo império foi-se, oh torpe!
Sorri o maldito, sensível inferno meu
Peso azedo que acorda
Vai, morre em mim

Amaldiçoaria sangue, minha alma com a sua
Carreado de suspense, feudo dos ocasos

Voaria esfaqueia, suas unhas entram em mim
Bebe o lodo escuro, vem, suja todo vão

No acobertado da tua pele, precisa
Pobre de mentira e a mim falseou
Que nunca nadara presa, diurna
Pelos escaleres

Mato meia meta, orquídea podre, oh meta!
Dos mesmos impérios de matar estrelas…

*Paráfrase de:

(Junio Barreto – Noturna)

3019. Danação

Diante do diferente
deferi a diferença
devia discordar
deu-se disto a distância
doeu e desviou o doar
deu dó e desmedida
desvalia a despencar
desandou demais em
desdém doido desalinhado
dado a desdizer e desabar
disso desceu dor danada
deixou o dedo ao dom
da dúvida deu a devida
dívida demente e
de si danou a divisar…