3005. Teleologia da moral marginal

Todos os horizontes foram dilacerados
a última fronteira é inteira interna
a beira, o fora – há uma folga?
Quando você tenta ir à forra
o dentro jorra por dentro
e a noite é alta, tensa,
a calma mora longe
A sensação é dez vezes pior
existe um lamento, uma lamúria
se fosse uma floresta com frestas lumiadas
entre cada folha uma sensação de luz
até poderia fazer sentido o batuque incendiário
a festa
Farsa nenhuma chega aos pés
força alguma lhe demove da cama
são os rastros químicos e eletrônicos que ditam
a pulsação do que ainda pode ser enquadrado na categoria vida
e tome mais doses de imagens
mais tânatos de tons
além possibilidade de pequenas mortes
Seu veneno posto à mesa
seus tóxicos para a alma
Provérbios sábios e uma efusão mística destroçando a visão

Todos os horizontes foram dilacerados
e a luta é para conservar o casulo primeiro e último
recluso
Você cava trincheiras
mas o mal vem dos céus, das frases
de dentro
A esperança maior é por ânsia
por vontade, desejo e pulsão
Transtornando a expectativa em fim

Todos os horizontes foram dilacerados
a carne exposta, o corte
é qual cor de espelho
Corte a dor pela raiz
e ela brotará de novo
Calma, a culpa não é sua

3004. Se

se tivesse agora a pausa do riso
e as formas fossem essas do contorno
aprendido no tato e na língua

se pousada em mim a presença entrasse
com predicado de ser mesmo a eternidade
e ocupar todo o espaço bruto e leve

se debruçar no pescoço fosse então
o apelo único vigoroso arfar em sobressalto
passeando pausadamente até o baque

se tivesse você agora não em ideia
mas no todo das minhas mãos miúdas
elas se agigantariam desde todo o seu prazer
ao infinito da minha vontade

3002. Onironauta II

anunciavas as estrelas
detrás do cinza chumbo
que planava por debaixo do azul

e tu dizias que depois
dessa ilusão de céu
só havia escuridão
e eu comia essas palavras
como pudim de tapioca

a tua proposta era torta
decaída e rota
e eu mediava cada intensão
no intento da realidade:
o amor cabe nas mãos
ranzinza e risonho

agora vá
traz para mim o sem fim da bruma
em noite alta
e me afirma com a altivez
de conduta insana:
é só um encontro
entre a traição do desejo
e o atrito da felicidade

3001. Recorro ao descarrego pra retornar

Antigamente, bastava um rasgo de céu
e meu peito já se ampliava até o infinito
Um fresta de sol ou um pingo na testa
e tudo se carreava em descarga elétrica
lavando e levando o que havia por descarregar

Naquele tempo em que eu tinha ainda
o pouco de vida necessário para encantar

Foram naqueles dias em que o habitual
era a poesia no espelho a encarar

Quando todo ontem era viva marca do agora
e o todo inteiro do anseio do que virá

Antigamente, era preciso apenas uma carta
vinda de mala, mula, longe quilômetros
Para arrepiar a espinha e tornar a vida
coisa que valia, como se regar plantas
fosse o suficiente para cuidar

Tempo em que abrir um livro fazia sentido
e as histórias pautadas na páginas eram um ornar

Momento em que o sentido não era mero
desencantamento, poeira de quasar

Lonjura de tempo onde a mística do sol grosso
era só pra encosto e não pra remodelar

2999. Na cara

cabelo bem engomado
cheira creme rinse barato
bíblia debaixo do braço
saia comprida não mostra o fato
das coxas nem pouco bocado
rosto redondo, liso, marcado
segue a lida com fé
na velocidade de um fado
sustentada por um corpo cansado
ao sol na cara em pleno metrô lotado
anjo torto sem ser alado
redentora, salvadora do vosso ocaso

2998. Quem?

Corações destroçados
pelos sem-limites das possibilidades
readequando no peito
o hibridismo das alegorias
e o peso do real
a ditadura da alegria
e o charme da depressão
amores inflacionários
em franca crise
paixão fetiche
fica pastiche
entre a roda e o piche
avistado e tentado
em meio ao timbre eletrônico
e a cadência do repique
amor temerário do sem fim
depositário do humor
vira piada.

– Alguém sofrerá?

2984. Onironauta I

a ignição foi dada ainda sem transe
do tapa ao ar em questão de minutos
tudo flutuava dentro do som em
movimento
não sei em que hora fui além de dentro
e desabei tudo de uma cachoeira
quando dei por mim já estava lá
dentro do sonho
aqueles quadros derretidos não haviam
nem labirintos
faunos
nada
lá no sonho era escuro e claro
dois bocados diacrônicos
dei a mão comigo e fui até a floresta
que não havia
um grito longe se fez perto
gritei
e do lado houve o eco
na voz que vinha vi o reflexo
acordei em frente ao espelho
e na realidade tudo era escuro e claro
detrás de mim não havia nenhum fauno
saí do banheiro
atravessei o corredor
quando cheguei ao quarto e me vi lá
deitado
pensei que dormia
mas eu disse para mim: já acordei ainda ontem cedo
resolvi ficar por ali mesmo
o sonho estava por demais acordado

2982. Vá!

Quando o veneno da ansiedade
se mistura à saudade
e o devaneio da idade
diz ande logo, não tarde,
isso só se resolve
indo à fonte antes que acabe
e com a saciedade
de degustar tudo lento
parte por parte
com um quê grande de arte:

sem aparte, aperte,
entre, bata, jogue, abarque.

2980.

perdi as metáforas
pelo caminho real:
o gosto da pele
o tato com o toque, seda
aroma que entorpece
a ideia flui antes
que o corpo penetre
histórias pautadas
entre ofegantes manhãs
incidências confidentes
por quatro paredes

perdi as metáforas
ganhei esse pulsar

2979. d’amor

nada se avista
que não seja amor
nada que não seja

me transbordam pelos pêlos
os apelos da apatia
mas só me infiltra o amor
entre as partes
e antes mesmo delas

o amor me beira o caos
e forma a carne encefálica
penso amor e vibro cordas
me percorro amor em som
por todas as frestas
pelo corpo do que é vão

nada se avista que não o seja
– isso
o amor

é bom e me abarca
até o mundo abraça
o amor que avisto em tudo

se salva
se serve
se salga
não vale a saliva gasta
é amor em tudo
e de nem bastar
basta

2977. “É tipo uma pira, sabe?”

É preciso que a palavra
ganhe contornos na língua
e se lance pelo espaço
reverberada a bater tímpanos
senão uma densa camada de poeira
enterra sua boca,
senão cada ideia vira tato, tecla
e a dimensão do diálogo
acaba num sítio outro,
três linhas do resumo e
contando notícias entre parêntesis,
senão a misantropia
se associa à procrastinação
e o vago de falar,
vaga desconhecido,
na contemplação de paredes.

2976. vinde a mim os loucos

paisagens lapso, um frio condensado
no sangue dos olhos
ficção bruta
pedaços que são matéria e não metáfora
a quantidade que o retalho acobertará dos espasmos
zumbi com o cérebro empedrado
o troco pro gole
os olhos fitam em zigue-zague
vida louca é pouco
vida pouca sempre louco
e a paisagem sendo projetada dos alpes
projeção do sonho eterno
os olhos que tudo percorrem
gravando fractais
o pai planejou:
o fim terá a idade da terra
mente não, a grana é pra pedra

pausa: trevas antes e depois [?]

“[…] a credulidade, a aversão à dúvida, o receio de contradizer, a parcialidade, a negligência na pesquisa pessoal, o fetichismo verbal, a tendência a dar-se por satisfeito com conhecimentos parciais, essas e outras causas semelhantes impediram que o entendimento humano fizesse um casamento feliz com a natureza das coisas e foram, em vez disso, as alcoviteiras de sua ligação a conceitos fúteis e experimentos não planejados: é fácil imaginar os frutos e a prole de uma união tão gloriosa.”

Francis Bacon, falando sobre os arautos fanáticos das trevas de uma idade média, ou Francis Bacon, falando sobre os arautos fanáticos das trevas de uma contemporaneidade?

2974. Limiar da saudade

para tê-la não se principia o tempo
nem se avoca o limite de um espaço
para surgi-la só se precisa o encontro
que se colore no instante de um até mais
dois segundos de metros vindouros
nunca tidos, mas pressentidos
e ela já se faz, instaurada, viva

essa que me é incorporada
veio antes de te conhecer
era aquilo que perfumava o possível
e se previa no suspiro de um som
era o sorriso que viria
na memória de tua tez anunciada
era saudade o que já eu tinha:
a falta da tua presença
tão em mim antecipada

2973. luzes novamente, por favor

o obscurantismo toma conta
trevas trovoam apocalipses
milenarismos
conspiram pelo deus, pela palavra
logo nos pregarão em cruzes
pelo deus, pela palavra
logo nos levarão à loucura
pelo deus, pela palavra
longe nos lançarão em naus de enjeitados
pelo deus, pela palavra
pouca palavra
convém literal, calha semiótica
um livro apenas para nos aprisionar
logo bastiões do nazismo se
alinharão nas fronteiras das trevas
e se apropriarão da luz
lançando lasers até nos queimar
logo lívidos fascistas nos afastarão
do convívio diário
mesmo sem um pingo de preconceito
como apregoam em suas pregas bocais
logo a nós, a quem o amor interessa
a quem a razão encanta
a quem a possibilidade se apresenta
a quem a diferença pode
e quem diria que na ponta do fim
no pós dos após
surgiria só o pó da idade média
adubando os contornos ideais da II guerra
beirando 1984 dentro do meu quarto
sem maniqueísmos: todo mundo se
arvora o máximo representante do bem

2972. Fé amolada, faca cega

Antes que seja tarde
e o infinito desande
em nossos ossos cinco
encarnações de vermes

Antes que o vento da Terra,
toque leve do invisível,
fique sincopado ao ritmo
do gás univeral,
poeira em movimento no cosmo

Antes que a beleza pouse fria
nos arabescos luminosos
do vão entre as folhas

Antes que a hora dos mortos
chegue tensa e o umbral da atividade
deite por terra seu manto negro

Antes que os pássaros
anunciem o pictórico

Antes mesmo que o latossolo
possa se assentar rubro e silencioso
por toda a extensão do planalto

Depois desse antes,
um pleno eu no agora

2970. pressão

os próceres das infindas
intifadas pós-modernas
com suas lanças em laudas
armadas as palavras de
ordem para o caos em riste
nas teclas que pintam
tintas digitais nas telas
do mundo conectadas por
infovias de sensações
são os arautos do index
pleno preso ao plexo solar
de dentro de si como tudo
a revolução será digitalizada
e verbete antes de ser
haverá sangue, suor e som
quando tudo cair em desuso

2969. comunal de almas

nossa religião
feita desses
pequenos momentos
de contemplação
e caminhada
em que o ódio
não nos infunde
e se vê beleza
até na humanidade

nosso religare
se faz no toque
das vistas
no arrepio da pele
na comoção de
um pôr do sol

nossa espiritualidade
sem troco
sem paga
sem moeda
é essa que sabe
a história do cristianismo
que conhece alguns orixás
que bebe jurema e sorve daime
que entoa koans e mantras
pra ver no que dá

nossa fé é livre
e ama o mundo
bonito e sem raiva
sabendo com o corpo
que mesmo no caos
a gente pode melhorar
e transcender
sem apartar o mundo
do mundo
sem dominar a natureza

nossa religião atéia
que sente e sabe
que tudo se conecta a nós

2967. Joia

quando te vi foi joia
meio longe brilhando
nem sabia que cifras
os sentidos iam pagar
infindos esses versos
prosas sem pastiche
impossível foi valorar
e você como ouro negro
incrustada de azeviche
brilhando ali de longe
raiando essa luz negra
da cor do ao redor do luar…

2966. Passeio pelo caos

Andávamos de mãos dadas pela Lapa.
Cada esquina situava uma aflição dos outros:
onde me encaixo,
o que faço,
como me movo,
o que pertenço,
qual o modelo,
que ritmo é esse,
como se dança,
onde é que eu te encaixo,
quantos,
quantas,
me liga,
me fode.

Mas andávamos eu e ela de mãos dadas pela Lapa.
Cada passo junto um passo além.
Cada sacudida nas mãos um recado:
não somos loucos,
não somos poucos,
um pouco roucos,
olha amor, ela pelada,
veja meu bem, metralhadoras,
ali paixão, uma janela nossa nos espera.

E continuávamos andando nós dois de mãos dadas pela Lapa.
Cada beijo nos ombros entremeando um beijo nas mãos:
fica perto,
não aparta,
me abraça,
amor,
logo ali, a gente para.

2964. Por uma vida mais analógica

Como lidar consigo?
Esse silêncio que te rodeia o em si
por apenas meio metro.
A gente se cerca de técnicas
para não sentir apenas a si mesmo.

Chora a análise perdida
lamuriando-se por meio de
um pequeno retângulo repleto de
petróleo e metais raros,
pluga os ouvidos a pequenos
pontos sonoros
prega os dedos em
teclas apaziguadoras:
não a alguma solidão.

Daí como se sente o cair da vida?
Como se observa ela fluir?
Lidar com uma única informação quista
pelos sentidos: o mergulhão entrando no mar.

A gente já pensa aos pedaços
e conecta uma ideia a outra
pelo impulso de um clique,
cada pensamento no espaço de uma imagem
– que poderia ser mil –
e um resumo já em 140 caracteres.

O tempo não diminuiu,
é só informação confluindo demais.
O espaço não se contraiu,
é só velocidade demais.
Os dias, as horas, os anos
são exatamente os mesmos dos nossos avós,
mas a solidão de um momento,
guardado a sete chaves dentro de si,
não é mais possível.

O voo do olho sobre a luz do sol,
segredo tido dentro do seu sentido,
agora é público.
Daqui uns dias quem saberá o que é seu?

Os paradoxos do liberalismo:
todos somos diferentes por natureza,
mas apliquemos regras iguais
mesmo a quem não tem oportunidade igual.

E o vento continua balançando as amendoeiras
e as pessoas serão mesmo ainda tristes
ou um pouco felizes a cada dose ou falta de.

E detrás da reentrância do mar,
depois da igreja secular,
uma favela pousa seus segredos digitais
na meia encosta de um morro.
Isso que é a prova material
de que nós somos transitórios e obsoletos no mundo.

Mas a solidão é impossível.

Caminhamos para sermos uma massa de multidão
“monstro sem rosto ou coração”.
Não só arranhamos os céus
como arregaçamos as terras.

É isso, a felicidade é um ponto médio
entre a volição e o brejo,
mediada por artefatos materiais e espirituais
e até mesmo drogas para o sexo.

O sono já não basta.
A bosta não alivia.
O besta é a instância mor.
(Altares, custe o que custar
ao pânico da zorra que se vê)
Os bustos são o desajeitado desejo
injetado no peito.

Ok, a solidão não é permitida
e ninguém sabe mais lidar consigo
sem ajuda profissional.

E eu consumo, como todos,
com o sumo do mundo.
É isso aí, como o mundo, comum
e com, sumo.

Rio de Janeiro, RJ.