#comoarrumarumanamoradapreta

O primeiro passo é não ser idiota. Você, necessariamente. Ela, de preferência. Afinal, ninguém gosta de idiotas. Saber escutar é algo premente, não pelo primado machista e categórico de que falam demais, mas porque todo mundo gosta de ser ouvido e porque é bom saber de alguém, conhecer-lhes a história, saber-lhes as posições, os gostos e mesmo as angústias. Falar também é um bom começo, não pra contar vantagem, não para uma paranoia egoica e contorcida de fatos inverídicos e autoafirmações impiedosas para ouvidos alheios; mas falar como quem tem o que dizer e sabe que ali há uma ponte para o diálogo, para a troca.

Contemplar-lhe a beleza é bom também. Se você nunca a percebeu, sinto muito, provavelmente você é racista. Não necessariamente do tipo que xinga, desencosta ou agride, mas do tipo que adentrou no conceito histórico racial que a maior parte do mudo lhe outorgou sem qualquer reflexão sobre, e que constrói até mesmo a forma de como e quando você vê beleza em alguém, oprimindo seus olhos para não ver beleza onde há. Você pode até dizer: “mas, beleza nem é fundamental”, tudo bem, desde que você ache que a beleza negra é beleza. Senão, você é idiota, certamente. E racista.

Admire tanto quanto sua beleza, ou até mais – a depender do que lhe atrai mais –, as suas ideias, inteligência, caráter, charme, postura, o que ela é. Se não for admirável, saiba que não é pela cor da sua pele, mas por humanidade demasiada, efeito que se dá em qualquer exemplar da espécie humana. Se não sabe, bem… você é racista.

Fale de política com ela, fale de história, fale de amor, fale de músicas, filmes, novelas, livros, bichos, aquarelas, flores, física, espaço sideral, passarela. Troque ideia sobre tudo, que nessa troca você vai sacando o que lhe agrada e te agrada em conversar e o que flui entre vocês.

Para encontrá-la, basta ir a qualquer lugar em que elas queiram estar, pois estão em todos os lugares. Alguns menos, outros mais. Numa sociedade racialmente desigual em termos socioeconômicos infelizmente você sabe o que isso significa. Se não sabe, já sabe que é racista, ou no mínimo uma pessoa burra útil à perpetuação das desigualdades. Mas nunca, em hipótese alguma, estranhe se ela estiver em um lugar X ou Y, pois não há lugar definido para que elas estejam. Elas estão por aí, como todo mundo deveria e poderia estar.

Saiba desde sempre: elas não são máquinas sexuais. A priori ninguém é. E quando são, são porque querem e gostam – como geral que quer e gosta e é uma máquina sexual. Saiba disso. Se não sabe, bem, você já sabe… Mas acrescento: além de racista, você é machista. E idiota. Descubra o que querem sexualmente devagar, sem pressa – ou com pressa e força se é isso que ela quiser –, no toque, no trato, no cuidado, delicado, atencioso. Não porque elas são carentes ou coisa que o valha. Geral está carente nesse mundo, elas não estão nem mais nem menos. Elas desejam. Igual que nem geral. Seres desejantes, é o que somos.

Dê prazer, porque dar prazer é bom, e dar prazer dá prazer. Experimente. É bom. Garanto.

Mas, para além dessas obviedades todas que digo, saiba minha amiga e meu amigo, que não sou e nunca serei um especialista em como arrumar uma namorada preta, quiçá mesmo de como arrumar um namorado ou namorada de qualquer cor. Especialista nisso não existe. Se alguém se diz especialista nisso, é idiota. E canalha. Para arrumar uma namorada preta, o primeiro e único passo que deve haver é o encontro e o encantamento. E para isso é preciso estar aberta ou aberto para encontrar e se encantar, não numa sanha louca de buscar uma mulher preta para se relacionar, é óbvio. Mas, aberta ou aberto para se relacionar de forma não abusiva com outra pessoa, dentro da vida.

PS: Só escrevi esse texto porque tive contato com algumas coisas tão absurdas na internet esses tempos que não consegui tirar isso da cabeça. Sublimo-o aqui (e em hipótese alguma compartilho as atrocidades que, infelizmente, vi e ouvi).

3700.

o dever é o de libertar afetos
o dever nenhum, pois

não houve empréstimos
ninguém tratou de dívidas
tampouco houve aposta
há sim vida

o som mesmo me afeta
enfeita corpo e cabeça
com o invisível
me sinto mais bonito
quando sons me adornam
mais que quistos e soltos

a sinuosidade dos toques
que me tocam
a síncope e a cadência
que me ritma

seja de qualquer mão que venha

há quem não goste
e arranje artes de desgostar
esquece de libertar os afetos

como aquele primeiro de todos
de dentro de si
 

liberta
deixa-se gostar

https://www.youtube.com/watch?v=ar5vfgW7u2Q

3699. O Teu Canto

Retalha-me a pele, tatuado auto-relevo,
corta-me o espírito em três, mas
continue o canto.

Não me negues a nota
o ar que dança ao teu movimento,
a boca que trisca o céu
e em som se faz,
as mãos que ondulam
mares em meus ouvidos.
Ou me negue.

O mundo se arruína em degredos.
Sempre volto com a alma em frangalhos
quando me aventuro em seus labirintos
– essa infinita mudança prostrada,
mas quando o teu canto atravessa
espaços e me traz paisagens
estelares em manhãs douradas,
pulso vida aberta.

Mas não é amor, é flutuação
e claridade que estonteia
em mim teu canto, sem a face
dos grilhões debaixo da terra
a surgir flores carnívoras.
Canta, porque teu canto será para o mundo
esmaecendo a dor.

Em meio aos vales ecoantes,
o teu canto não deve nada
será canto e doçura,
estação precisa dentro do ano,
para desabrochar flores,
cair folhas, chover mares,
chorar frios e calores.
Será teu canto.

Canta o escuro,
a brisa, a bruma,
canta as cidades
os rios e as pessoas,
canta tua vida
pra mim que não te ama,
para o universo que te faz
e já te refez
indo e vindo nas mesmas forças,
feitas de cantos,
como o teu.
Destroça-me as partes,
todas e de além,
e teu canto também
se quiseres,
porque ele é teu.
 

Mas lhe peço humildemente,
continua o canto.

Da atenção

É um mundo distraído, que sempre se diz traído: a atenção nunca lhe é dada. Há carência e dispersão. Talvez nunca tenha havido um mundo tão abertamente emocional, entregue. Peito aberto é quase peito ao mundo. Talvez porque até bem pouco tempo atrás, isso de sentimento, emoção, o que toca essas glândulas lacrimosas, não fosse um problema. Hoje, há medicinas muitas para. Mas é isso que se me afigura agora: carência e dispersão.

Parece que ninguém se importa. Talvez, pela quantidade de portas de que dispomos para abrir o que nos falta e o que adentra quando escancaradas, são apenas protocolos de tratamento. Deve ser isso o que sempre houve antes, mas a nossa sede é pelo imponderável alento certeiro, imediato e loquaz.

E nos falta tudo praticamente, pois que tudo se insere, hoje, no âmbito prático. Utilitarismo desenfreado. Onde mesmo amar nos serve e beneficia – deixa a pele melhor e nos livra dos hormônios da loucura, dizem especialistas. Cada gostar, vira curtir, na matemática do comércio de afetividades, no âmbito da mais-valia emocional. E, ainda assim, tudo nos falta. Procuramos sempre um tudo para nos preencher ultimamente, mesmo o inútil, que tem ganhado cada vez mais razão de ser.

Mas essa economia de preenchimentos só faz sentido num espaço mediado de auto-validação dos processos de busca por preencher as faltas; é necessário um ambiente em que cada ponto desse sistema se reconheça e valide os procedimentos de preenchimentos ali empreendidos, até que disso, uma paz caia sobre as têmporas e a falta se invisibilize, até a próxima, daqui a meia hora.

Se você não está nesses ambientes, conforte-se em lidar com a falta no modo tradicional, ou seja, no bruto. E qual a melhor forma para tratar a falta quando fora de linha? Não problematizando-a, no máximo tematizando-a, e sem somatizações. Deixando-a ser isso que ela sempre foi: a incompletude humana que nos é a marca de sermos humanas e humanos. Somos esse projeto incompleto. Uma coisa que será. Eternamente. E isso é o nosso ser. Tudo nos falta e nada não nos basta. Ânsia em latência. Mas tudo não é uma possibilidade. Sequer existe para nós. É, também, um projeto. Tudo é um devir.

O distanciamento que há entre nós, nos ajuda nessa ânsia plena: sempre parece que houve um momento idílico, talvez já vivido por nós, talvez vivido por gerações passadas, certo que no futuro, em que a distância não há. Laço comunal e familiar, sempre talvez. O certo é que a falta nos demove em redes e não facilitamos os processos para ninguém, é tudo sempre complexo e absurdo. Cada vez mais. Sequer aventamos a possibilidade da simplicidade. São tantas portas, tantas aberturas, cada vez mais como fissuras, que a única forma de preencher o que falta, parece ser faltar mais. Distraidamente.

Há atenção muita, em todos os recantos dos ambientes de comercialização de afetividades, mas nunca atenção plena. É sempre uma tensão dispersa, travestida de atenção cuidadosa. E cada vez mais me apercebo que o problema – para mim – não é que ninguém dê atenção, é a minha própria desatenção, que começa em mim e vai de mim para a outra e para o outro.

Observar a minha falta e as minhas faltas, atentamente. Essa é a minha missão para esses dias.

https://www.youtube.com/watch?v=4cu4E3TufTk

3668. crediário (casa baiana)

ele não me olha mais nos olhos
desvia capoeira
fala daquilo de tudo de tanto
menos de nós
dos nós
do peito
da garganta
faz roda e arrodeia

ele passa incólume e atento
aos tempos
a tempos
rijo que nem pau de biriba
oco que nem cabaço de berimbau
malemolente

fica tudo lento daí então
maresia pousando no sertão
evaporada de um tanto

me largo na rede e balanço
sem pressa
enquanto tudo se apressa nos dentros
e aperta
e espero

ele vem num toque de são bento pequeno
e me passa uma rasteira
na dianteira do tempo
no adiantado do atraso

tudo acabado
mas a gente faz um novo crediário
longo longo prazo
a juros no correr monetário
da vida e do juízo

uma hora amor volta
atenção vem
a tensão vai
e ele fica

 
meu crer diário.

3665. des-curso

brado alto, altiva a voz
certo o alvo, altaneiros nós

do púlpito azul, limpo a minha tela
para que dela saia a sentença mais bela

(antes bela do que certa)

:

morte àquela, àquele, àquilo
morte às massas, aos quilos
morte à morte, morte ao vivo
morte morte morte será a máxima sorte para o bandido

morte a você, morte ao meu filho

(se assim ele for na conduta do desvio)

morte a mim, se for preciso
para salvar essa pátria em perigo

assim tuitou o menino
que curtiu do pai
que compartilhou do avô
o que enviou o primo
pelo grupo ensandecido

“Qui foi triste aquela função lá na cabicêra
Qui dassanta, a burrega marrã
Foi incontrada num canto do terrêro
Junto c’uns violêro mortos naquela manhã.”

https://www.youtube.com/watch?v=a5jHjarxACI

3662.

Em tudo há fins

                        – desde sempre –

onde os meios são todos:
cartas muros papiros suspiros
corpo relva mar

                        – e não os justificam

                        os compõem
                                    são tecitura.

A chave de um verso

                        – feito em prosa
                        olho no olho
                        afago de hálito quente
                        trêmulas mãos que se vestem
                                    umas nas outras –

é o fim

                        – silêncio que transporta
                        transpiração da pele
                        transposição de sensações
                        transformação do desejo
                                    em sentidos –

quando vira poesia
com outro.

3652. cem quilômetros de solidão

a liberdade é das manhãs
e em cada alvorecer
um deus te nasce
entre os dentes
e morre

os raios enramam
feito jiboia trepando
e o peito desaperreia
ipês dentro
quando flores despencam
face afora

dura pouco
mas são léguas

cada dia
a brevidade das manhãs
põe séculos na pele

só nessas manhãs
você sabe a medida
da sua extensão
quantas eras

só.

pausa: ela(s) (parte II)

Difícil de desatar nó-cego. A proximidade das coisas no agora despedaça a lida de historiografar os sentidos dos fatos do mundo, imagina o que não prega e pega quando o desatino se dá nos apertos tidos dentro do peito? Quando tudo perto demais, o que resta não são as moléculas e os átomos, isso que fica num tudo quase invisível, mas sim a cegueira, combate amazônico de se tratar pela visão. Impossibilidade mesmo. Mas promessa feita, é dívida já arrazoada. Como que sem prazo… basta a paga, sem juros e correções. Trato feito foi da feita, não do além.

O ocorrido já corrido, que agora vou versar, longos dezesseis anos desde então, foi dado lá pelos idos do novo milênio, transcorrida a última mutação minha havida em fins do pré-apocalipse anunciado naqueles iniciados anos de boatos a percorrer virada, como massa de ar se indo de um lado para o outro da Terra. Em gênesis de 2000 mesmo.

https://www.youtube.com/watch?v=Zb4eqZqCZFo

Naquele anuviado de novidade se apinhando, desde quanto saí da lida do dia a dia das quebradas de Guariroba, cercania de Ceilândia, num indo vindo apenas desde lá até a Terra da Ave Branca – dos motes chamada Taguatinga – e dar com os costados em Ilhas Brasílicas, pontos de voo de planos e pilotos – dos quais nunca vi – no meio do descampado do cerrado ermo, lá naquele posto dos mais altos estudos e do garbo do conhecimento desmedido, a morada da sabedoria, vez por outra tida como Universidade, pareada com um lago que paira no ar, como tido Paranoá, foi que se acometeu a continuidade daquilo que pelas orelhas adentra, pelos ouvidos avança, pelo amotinado da cabeça faz massa embaralhada e se esparrama desaguado entre coração e peito até dar-se por inteiro no prumo do espírito e fazer morada definitiva, mesmo quando corpo já se for para os buracos de dentro da terra, nisso que não trata de se perder nem nos céus ou nos infernos: alma. A coisa da música. Maldita de bendita essa ela.

Só que essa ela, diferente de até então, ganhou um outro par a que aplacar a mente e cortar em duas bandas, pelo menos, esse músculo tremido dentro das grades do peito, esse que tem por nome coração. Elas, que sempre foram elas, várias, muitas, todas, tantas, músicas para sempre em mim, se ajuntaram a elas outras, tantas, todas, muitas, várias, que de por em mim avessado no grupo a qual pertenço, me fez querê-las assim, tais e quais as músicas me atinavam. Só que delas um bom tanto, posso falar deles também, ao que o amor me é feminino, mas o enlace me é humano. Seja ele ou seja ela. Somos todos e todas. Querentes. Querosas. Querosos. Musicais. Desde sempre.

Mas é dela, a primeira, o interesse posto em falar. “Essa aqui do meu lado, essa minha companheira”, que de outros tempos de atrás ainda agora eu tive por dizer que “de todas as coisas, a que mais me toca”: a danada da música. Do que vinha apois contando em outro mote, o primeiro, acerto que parei por perto de uma serpente lambadeira, treinada por força alagoana, no findo do milênio segundo depois do cristo cristão. Pois que como vinha vindo, continuo. Era em fones instalados no aperto dos ouvidos, que seguia aquele trote de baú, quase cinco léguas diárias de ida e de vinda, desde lá das terras brejeiras e pantanosas, quiçá quase de veredas, donde antes brotou palmitos em palmeiras, guerobas – de modo de dizer sulista, guarirobas – a morada minha de então, até a morada da sabedoria. Dez léguas de trote todo dia em busca do conhecimento.

De modo que para a paga de assim proceder, o holerite da função do estudo, arrumei de sair amando, para ver se dava gosto aquele intento de se formar no rumo profissional, o mesmo que de minha mãe herdei, intento de conhecer da Terra toda, todo o espaço de feição possível e, depois de conhecido o que se desse de tudo, ensinar a molecada de pequena e a velharia de adulta nos segredos que a descrição da Terra há de poder revelar. Era função boa essa do entendimento das coisas, mas cansava e precisava de paga melhor do que a previsão futura de que tudo melhoria com emprego e com empreita, anos postos depois de graduado. Fui atrás do amor então, para ver se me convertia em alegria plena, estar na morada da sabedoria não sendo suficiente como naqueles tempos.

Passei seis meses remido de saber o que ali fazia, nos ares do que se costumava por como Universidade, mas fiquei, sem muita firmeza do que ser, um tanto liquefeito e desaguado pelos lados, ladeado mesmo com o nada, beira lago pairado no ar, sem se ater ou bastar em si e de si para si mesmo. Tava avolumado era de nada. E todo recado me acatava, me atacava e me atava, feito cadarço de all star velho e bege, desgastado e desgostoso, que afrouxa e desata, desabando de tudo em tudo e pelos tudos, como feito qualquer pessoa.

Apartado de si, mas esperançoso. Engrandecido de se ser nada mesmo, mas sendo algo. Caminhada. Ao que fui para os ensinamentos segundos de mais um seis meses de ser quatro, em aulas de filosofia, das introdutórias. Classe que divisamos com as companheiragens educatórias, das que se principiavam serem professoras, dessas de meninada miudinha mesmo. Mestre Ubirajara nos ensinava, me lembro bem de então, falava até de Exu, de ser pé de bode ou cabeça de, em estátuas feitas quando em África ainda, versado como o dinhanho já cá em Pindorama, travestida de Vera Cruz, desenvolvida em revolvimento de se ser Brasil, como sendo o próprio Satanás!

Veja se pode? Fazer da Esfera, daquele que traz os ligamentos e as conversações, que comunica e que destrava, destranca e desaperreia, como sendo o diabo do Diabo que parece há lá entre biblianos e biblianas. Exu abre, não fecha. Mas nos enroscos da filosofia, era aula às vezes boa, às vezes sôfrega, mas ainda com muita gente das bonitas e das inteligentes. O que dava mais ânimo de ali continuar. E continuei.

Ali mesmo, naquela sala, foi que tive três visagens, podia ser mesmo três assombrações, ou mesmo até, três assomações. Me assomei todinho. Me assomei, mas foi delas, das três visagens que ali vi. Era como se até pudesse ser feito de matéria firme, mais que o ajuntado de ideia, de pensamento e de palavrório que se dava dentro da sala, acreditei em voar.

Naquelas três visagens.

A primeira foi uma visagem aproximada bem de perto. Era chamada de Leila do Norte, assemelheva uma pintura, dessas do tempo em que as mulheres ainda eram retratadas em suas formosuras redondas, que arredondeavam de estonteio qualquer passante em distraído. Toda aquela cabelama, arrodeada de loiros não nascidos, mas ali postos como que tingidos, luzes a dourar o natural. Leila do Norte, moça forte, de presença agigantada e leonina, firmou pé do lado, me disse tanta coisa de lá, daquelas bandas de onde eu mesmo começava em linhagem de família verdadeira em sangue. Coqueteávamos ambas, eu e ela e para nós mesmas. Em todo o canto possível daquela cidade universal de conhecimentos múltiplos. Ela me tecia palavras de borboletas com o encanto de ser gênia, sabida no por demais. Era encanto que não se tinha fim. Fiz até de Leila do Norte, Eliane, a que era música, em certos traços escritos e empalavrados que já tive por fazer, donde me travesti de Paulo, professor de ledos enganos. Mas éramos eu e Leila do Norte, saracoteando por toda aquela extensão, e mesmo ali em iniciações filosóficas. Eu olhava Leila do Norte e bem dizia as cores todas, as coisas todas, as belezas mais bonitas, versos simples de feição fácil, calafriosa.

Tinha por certo que ali era amor de não se desencantar, tava no aprumo da certeza de que era. De pacto e de impacto. Era amor. E ia e vinha. Visagem que eu sabia. Ia e vinha. Fluía. Confluía. Motes, cartas, sonetos e ditirambos, à Leila do Norte eu escrevi.

Mas a vida é doideira doida, que endoidece qualquer que tente dela se afastar. E como sempre dentro estive, fui, e de cara – pá! – dei com a própria doidice da vida doida na fuça. Outra visagem assim se fez, e do lado dessa cá, de nome Leila do Norte, graciava aquela outra visagem, que assim se fiava, em minha frente e bem ao lado, por nome de Dourada Rainha, Rainha Dourada, sem ser Senhora. Era triste ela. Como doía. Feito as minhas lágrimas tão eternas, feito aprisionamento dentro de si. Tinha pelo cristo cristão uma relação de amor e medo, que por vezes me assustava, mas eu tinha cá por mim, que enfim, assim, mesmo com aquela confusão, de ser triste e ser devota, eu lhe tinha comoção. Tamanha. E fui tendo mais ainda, emoção mesmo, pelos áridos do trote de léguas diárias posto. Que sempre se fazia com ela por companhia. Desapeava do baú antes de mim, isso era certo, e entrava também bem depois, da sorte que se guardava em casa feito chácara à beira do Vicente Pires, três léguas de onde o teto me dava o sono e a guarida. Me fiz em seus traços, contornos dourados, campeei sua tez no desagravo do meu martírio, para ver se dele me livrava. E havia coisa que não dita, ainda mais me apegava, era oblíquo, mas não dissimulava, eu queria mesmo era adentrar.

Eu lhe quis em tanto agrado, queria pô-la em colo meu, e afagar-lhe as mechas negras e bendizê-la o tanto que desse, pois muito que dava, e eu me quedava frente a ela, miudinha, esparramosa, batatinha pelo chão. Linda, Dourada Rainha de cabelos negros. Pareava junto a mim, nas classes filosóficas, bem no meio eu e no oposto, na canhota, Leila do Norte. Era coisa endoidecida, que me afligia, mas eu nada fazia, só sabia o que eu guardava, aquilo que em mim já conhecia – dois, pelo menos – que havia no meu coração um.

E eu andava meio assim, trafegando entre linhas e brancos papéis, tracejando o que pudesse com palavras apenas, falando de Leila do Norte e tecendo Dourada Rainha no dizer. Melodia é coisa que me adentra e fui fazendo delas tudo aquilo que fazia, serem elas mais que elas, mais algo que em mim me principiava, música elas em mim, o que foi sendo.

Escapei foi nada, e no meio dessa coisa já em si de amorosa desastrosa, me ferrei, por conta do que se impõe como definidor do que se possa ser amar e amor, de se caber em conta feita: um mais uma, quando senão, talvez, somente, um mais um ou uma mais uma. Vá saber. Mas que é essa a conta do possível, isso sim, é feito em fato. E eu ali, tentando conjugar a soma na tabuada da subtração: menos uma, sobra eu e outra, menos outra, sobra eu e uma. Mas divisasse que eu não conseguia fazer a conta!

E de tanto não saber fazer, que meu peito era que se divisava entre elas e assim queria. Foi que chegou a professorinha, dessas que amam tudo quanto é criança. Só pra ser visagem outra, só pra trivisar meu coração já bipartido. Vinda da beira do Rio Preto, lá pra lá das Gerais, bem no estado do café preto e dos motores, dos cinzas. Maria Maria, de nome feito era ela. Gracejada como na música dos mil tons que há. Era que era só sorrisos e esperanças, só delicadezas. Sentada em minha frente no abecedário da introdução do pensar, na classe e na cola. Ela tava o tempo todo lá, na cola. Me colando. Me calando com palhaçada, me calando no riso, olhe só. E eu fui, fiz que não mas fui. E fiquei pasmando com aquelas pintinhas que pintavam a cara dela, que era bela e era diferente. Belezas dessas que se apega e se aprende, se apreende. Coisa de professora. Vai se ensinando e quando se vê, já é linda que por mais linda. Bonita toda em flor, feita como o nome previa: Maria Maria.

Destarte que ninguém tirava, só que nem Maria Maria, nem Dourada Rainha, nem Lia do Norte. Tava tudo lá que era só mistura. Só inquietação. Feito quando o cerrado queima, labaredas e fumaças, esfumando tudo e a bicharada num ligeiro de corrida pra todo lado. Eu mesmo me tremia. Era isso toda terça e toda quinta. Se bem que quando se dava a primeira feira, já se avizinhava a terça, e no destempero de uma quarta, tudo era dor depois do dia passado e tudo era espera pela quinta vindoura. Quando sexta se aprumava e o que em quinta se passou palpitava o coração, vinha o sábado e o domingo, só pra dar saudade e choro. E eu chorava assim, na solidão descabida. No que pouco se sustinha: eu mesmo tomado em mim, de por mim pelo meu quarto, de comigo em meio da rua, por companhia só eu pitando ou pintando. Só esperas. E encantos. Três visagens. Sonhava que era com elas por sempre vir. Me tomavam.

Eram elas e músicas que me achegavam. Pensei ser mal feito do peito, acolhi que devia era de me tratar. Mas desavisei-me do perigo, carecia de carregar meu peito pro conserto não, só precisava era de poder deixar aquelas visagens todas virarem flores no prolongado das ventas, pra regar o que fosse de bom e de bem. Para elas. Em mim. Mas qual o quê? Fiei que não dava. Alertaram. Amigo meu Miguelito anunciou “Dá certo não, Guelé. Por demais de arriscosa essa função. Se ainda fosse lá nos idos de outros tempos, quando livre parecia que seria tudo. Mas cá, hoje, agora, nesse então. Fia no meu dito ‘quem muito quer, nada pode’”. Ou mesmo no dizeres de meu irmão Luz: “Isso é feio, mano meu, amor é um, só vai prum rumo, só toma um prumo. Amor é canoa solitária que desce o Araguaia até se dar parada em barreiras, com a paciência divina, eis que vem outra canoa solitária lhe dar par. Ouve o que eu digo: ‘quem muito quer, nem sabe o que quer’”.

Desouvi foi a todos. Fui no ir ainda. Eu que sabia.

https://www.youtube.com/watch?v=nPSUtFlwQdk

Mas a filosofia já não tava conseguindo ser mais nada. Era só elas. E elas se aperceberam. E foi lança, pedra e pau, estrondo, solavanco e sopapagem de palavório pra todo lado. Acidez que derramava. Queimava até não poder. E eu ali. Em meios. Achando que dava. Que dava. Dava era nada. Dava era o nada. Mais fácil era que eu me continuasse no prolongado da solidão de antes de tudo aquilo havido. Assemelhei que fui falando aquilo pra cada, e as visagens foram dasanuviando, entrando no ermo dos olhos abertos e sabedouros do que é realidade.

Cada qual foi se adentrando na sua tristeza particular e eu me virava que era só ela. Triste, cabisbaixo, macambúzio, no banzo mesmo, banzo brabo. Se tivesse que ter como, eu me carreava era no banzeiro do Araguaia e me ia até sei lá onde. Bico do Papagaio. Até tocantinar, paraar e vir mar. Virar mar. Só pra não ter essa sofrência. Sofreguidão espinhosa. Lamacenta. Lodosa. Ah tristes fins.

Vi Lia do Norte se ir. E chorei quando dei pela falta de Dourada Rainha. A última a me deixar foi Maria Maria, que tramosa, se pôs logo de adiantada. Foi, mas ficou me deixando partes. Em vários apartes, por parte. Eu fui só seguindo. Ela me chamando. Pegou rumo pro Rio Preto, me deixou cá cerradiando, no quase do que se pode ter. Carta enviei, por correios mesmo. Chegou em boa hora e na capa lhe enviava um estado de espírito, porque o amor se deixava surpreender, impossível sendo ser feliz por só. Ao que busquei Maria Maria lá pras bandas do Rio Preto.

Pois que dela eu também gostava. De todas eu gostava, no mais alto querer bem, mas com a destra e a canhota me fugindo, eu só tinha notícia da frenteira. Maria Maria sabia o que fazia. E me deu tino, dela me atinei de todo. Propus: namora? Namoro. Eis que fomos. E nos emaranhamos de estrelas, de cometas e até de coisas sem porquê que se demoravam nos cantos dos céus noturnos. E fomos num indo e vindo de viagem, de cá pra lá dessas terras poucas. Parcas. Mas que nos cabia. Maria Maria era flor e enlace, me cativou, me trouxe o que dela pertencia, tomei gosto.

Mas eu lhe vazei de sentidos também. Ah, isso eu sei. Certeza que lhe digo. Foram dias de se por de antemão contra a contramão de quem vai no rumo do esperado. Corremos outros lados. Se indo. Passo a passo, a passo. Compassado. Se indo no amor de se ser dois, duas e cada uma, cada um. Lindo. Coisa boa é amor dos começos, dos princípios, dos primeiros. Que se segue como paixão até se dizer por boca vã ser sê-lo apenas aquilo: amor. Quase sempre se caí e num se volta. Ou se ama. Ou acaba. Enquanto não, passa-se. Passo a passo, a passo.

Só que a vida nos pega, prega surpresa e nem se arreda, nem arrenega. Apregoa em sabiá. Quiabento. Urtiga mesmo. Conflita e atrita. Sem briga, só sem acordo mesmo. Dá-se assim um esmorecimento, um desânimo de querer. E ainda se continua querendo, veja-se. Só que é muito lá e cá. Diferente. Como se um espelho se colocasse nas costas e nada do que igual se vê. Se avista.

E o que se tem que ser vai ficando avesso. Outra coisa. Quem sabe mesmo, a solidão?

Deixei Maria Maria por perto da boca de um senhor tido por Hermeneu. Lindo homem. Assaz inteligente. Feito a noite: para pouca gente. E eu fiquei ali espiando, o azul do céu me avisava que as visagens ainda vinham. O céu todo me fiava a confidência. Não tinha medo ou receio. Se fosse a solidão, que viesse. Se fosse o sol, que queimasse. Se fosse a bruma leve do que toca a pele e pousa pouca e inteira, toda ela em mim, que fosse. Eu ia. Deixava. Sustinha. Lá nos altos dos céus, descansava uma légua grande se dar em si. Tava me bastando que era um gostar de si. Coisa rara. As visagens ainda vinham em mim. Leila do Norte já casara. Dourada Rainha se encantara. Eu as gostava, nem desgostava. Só queria bem. De bem-querer inteiro. Sempre. Amando mesmo.

https://www.youtube.com/watch?v=WxYrSEOx5yM

Fiquei comigo. Até o próximo capítulo.

3601.

devagar, como naqueles tempos
em que assistimos aos capítulos finais
– e estávamos lá, vivemos!
ainda percorrem nossas veias esses tempos

como no compasso de tecer rendas de bilro

moldar o barro em roda até cerâmica
devagar, como nos mitos e nas lendas
como no tempo de pórticos e portais
de umbrais

eu te descubro sem pressa,
demorado lençol de longas tardes

eu te descortino vagaroso,
abrindo ao teu consentimento tuas janelas

alicerce para o voo, firmamento

calmo e devagar
como nas cartas de 1700
como passos no passeio público

pique-nique no bosque e vereda de tardinha
uma imensidão de por-do-sol sem fim

até, lentamente, você me descobrir dentro da tua noite
essa que ainda não sei

3583. reza zero

há beleza no mistério
quando há mistério
as partes sagradas cobrem meu corpo
e eu profano cada átomo
nominando-os e criptografando

cá as mortes assomam
concussões nas esquinas, becos, vielas
dezessete corpos desde a virada
em média
há guerras e ganhos

e há o fascínio do divino
tornar sagrado, religar
como se algo não o fosse
e tudo não se conectasse desde sempre
feitio de fibras luminosas traspassando
o que vive, pedra, peixe, pau

cá nos envolvemos com o sangue
encanta e embeleza o açoite
d’antenas aos céus captando
jorrando e como naus, nós,
singrando oceanos de sangue, bêbedos

do barro ao bento
cada ponto de começar
condiz ao sopro que arremeteu o pó das estrelas
por cada ligação sem nome no sem fim
e deu a maravilha da expansão
de se ver desde esse ponto araçá

cá decapitam aos desígnios da beleza
pelos contíguos do poder
de poder, não ter, ter além
explodir tudo, até que só nos sobre
amém.

pausa: reformulação

Quem me conhece na vida além telas e monitores, sabe que sou geógrafo de formação, segui os passos de minha mãe e fui estudar os fixos, os fluxos, os processos e as estruturas do espaço, dos territórios, das regiões, das paisagens, dos lugares… Fui atrás de territórios culturais, das relações de poder entre lugares, das hierarquias nas redes urbanas, das relações entre campo e cidade, da apropriação dos espaços naturais. Descambei estudando culturas tradicionais em espaços urbanos e fui terminar tentando desvendar o que a geografia escolar tinha para nos mostrar acerca das relações desiguais entre os gêneros.

Na sequência migrei para a arqueologia, fui descobrir as paisagens passadas e sua relação com as formas de ser do ser humano ao longo do tempo. Achei lindo tudo aquilo, o simbolismo das paredes pintadas, os restos de gente que aqui andou e forjou seus lugares, seus territórios, seus sagrados. Acabei estudando como seria possível pensar nas questões de gênero dentro da arqueologia, em como seria possível identificar esse estar “mais próximo” da natureza e a formação das desigualdades entre mulheres e homens tão ainda arraigadas no mundo. Queria ver se o passado podia dar pistas sobre o porquê disso tudo. Acabei me apaixonando pelo estudo da técnica e da tecnologia.

Foi aí que resolvi voltar para a geografia e estudar o diabo desse ciberespaço, dessa construção em rede que demove turbas a perpetuar desigualdades e preconceitos e ao mesmo tempo quer conectar esperanças e propostas para a desconstrução de algumas misérias humanas. Dissertei sobre os territórios do ciberespaço, sobre suas paisagens, sobre as redes e os fluxos informacionais que nos atordoam o tempo todo, que nos deixam sem pé no chão para o encontro de verdades, que deixa tudo frágil e efêmero, na velocidade de um clique.

Essa última imersão acadêmica terminou em 2013, mas desde lá que tenho tido arroubos distintos com o ciberespaço e a internet. Tem horas que quero mandar tudo às favas e me desconectar completamente, voltar às cavernas, sei lá. Em outros momentos, quero iniciar a revolução através das redes e conectar todas as pessoas de bom juízo numa grande massa de seres terrestres que irão tentar deixar isso aqui melhor. Nenhuma das duas coisas me basta e fico vagando entre um pólo e outro.

O fato é que ando meio querendo me livrar um tanto de algumas redes que me meti irrefletidamente e que, na real, não estavam me levando a lugar algum. As tecnologias são coisas que nos adentram de tal forma que depois do contato com elas fica difícil imaginarmos como seria nossa vida sem elas. Mas isso tudo é meramente uma produção de marketing. Nós não precisamos delas tanto assim. Dá pra viver sem certas tecnologias que nos empurraram goela abaixo como o suprassumo da conexão entre as pessoas.

Deletei quase todas as minhas contas nas famosas redes sociais. Percebi que sempre estive imerso em minhas próprias redes sociais, de afetos, de amores, de carinhos, de contatos, de conversas, de compartilhamentos, de vida. E nunca precisei antes de uma empresa que controlasse essas minhas redes e que, de quebra, vendesse minhas informações para alguma empresa de sapatos.

Enfim, esse enredo todo, é só pra dizer que será somente neste espaço que compartilharei as coisas que sempre gostei de jogar ao vento da aleatoriedade do ciberespaço: poesia, prosa, música, ideias. Cá me encontro de quando em vez, para que esse lado que em mim ainda quer a conexão com o mundo através das tecnologias tenha espaço.

  

Aproveito o ensejo para compartilhar duas descobertas desses dias de downloads frenéticos, em que tentei terminar a minha coleção de discos brasileiros de 2015:

pausa: Ana Martins Marques

Há momentos em que estamos mal. E isso não é necessariamente um problema. Afinal, o que é estar bem? Há uma questão de definição aí. Uma questão ontológica. Axiológica, também, sem dúvida. Há também um problema cultural aí. Histórico e cultural, do rol da domesticação dos sentidos, dos sentimentos, mesmo até dos afetos.

Volto, então, à pergunta: o que é estar bem? A nossa educação sentimental, tão pouco falada, mas tão tanto empreendida, é possivelmente a culpada para que encontremos elementos poucos para informar o que é estar bem e ao mesmo tempo, elementos todos para definir o que é estar bem. Não vou me atrever ao desgaste da atividade, que julgo improfícua, neste momento. Prefiro que pensemos naquilo que nos demove a identificar o que é estar bem para uma pessoa.

É claro que sei que alguns elementos são imprescindíveis para se estar bem, como o conforto material, não estar com fome, o conforto físico, estar saudável… enfim, é um sem-fim de coisas que poderiam nos afetar como imprescindíveis ao estar bem. Mas percebemos que, mesmo estes elementos, são relativos e contextuais. Há quem esteja muito bem sem comer nada há mais de um ano e com o braço esquerdo levantado sem repouso há pelo menos dois. Há. E estão bem.

Então, o que é estar bem? Tudo bem, devo situar o meu discurso, falarei desde este lugar “ocidental” – à revelia deste nosso sul-ocidentalismo-afro-ameríndio, mas ainda assim, ocidental, como tudo o que se globaliza. Assim posto, conduzo a argumentação, me utilizando da nossa educação sentimental cotidiana para abordar o tema.

Como nossa educação sentimental trabalha com a percepção de estar bem conosco? Ela opera em diversos sentidos, com as mais variadas facetas e os mais variados modos de se apresentar. Uma novela, um ditado, uma história, um fato, um livro, uma música, um comercial, enfim, qualquer narrativa carrega, em si, uma forma de se pautar o que é estar bem. Claro que sempre trabalhando com o contraditório: nos apontando à face o que é estar mal.

Somos massacradas diariamente com uma educação sentimental que domina nossos horizontes de escolha e diminui nossa margem de possibilidades. Educam-nos, por exemplo, que estar bem é ter um emprego, que estar mal é ser desempregado. Educam-nos, também, que estar bem é ter um amor, estar mal é não ter um amor. Educam-nos, ainda, que estar bem é ter bens, estar mal é não ter bens. Educam-nos, por pressuposto, que estar bem é ter uma vida sexual ativa, estar mal é não ter uma vida sexual ativa. Educam-nos, disso exposto, que estar bem é ter saúde, estar mal é não ter saúde. Mas estas definições podem ser vinculadas a argumentos negativos, como, por exemplo: estar bem é não usar drogas, estar mal é usar drogas. Enfim, estar bem é amplo pra caralho. Estar mal, também.

Eu por exemplo, julgo que não estou bem, logo, sinto que estou mal. São condições excludentes, aparentemente. Aparentemente, porque, às vezes, coisas inexplicáveis ocorrem, como saber-se bem e mal ao mesmo tempo, ou bem em estar mal, ou mal em estar bem, dando coesão a incoerências, é como seu próprio nome:

Impresso
como parece estranho
o mesmo nome
com que te chamam (MARQUES, 2015, p. 14)

É estranho mesmo, sentir-se mal e pensar-se bem ao mesmo tempo. É uma incompreensão textual e de sentidos. Coordenada. Interna. Dentro de si. No caso, dentro de mim. Dispor disso é difícil, estabelecer prumo do que ocorre é quase impossível. Dada a nossa educação sentimental que impede a coexistência de contraditórios – quiçá de paradoxos! –, é tarefa inglória tentar traduzir o que se passa de um modo que não leve em conta a forma única que te – me – ensinaram a traduzir os sentimentos: ou se está bem ou se está mal. Impossível uma outra Tradução, como n’

Este poema
em outra língua
seria outro poema
 
um relógio atrasado
que marca a hora certa
de algum outro lugar
 
uma criança que inventa
uma língua só para falar
com outra criança
 
uma casa de montanha
reconstruída sobre a praia
corroída pouco a pouco pela presença do mar
 
o importante é que
num determinado ponto
os poemas fiquem emparelhados
 
como em certos problemas de física
de velhos livros escolares (MARQUES, 2015, p. 22)

Nestas horas em que o corpo – alma talvez? alma também? alma além? – não consegue encontrar limite específico para traduzir o que se passa dentrures, não resta muita coisa a se fazer, a não ser sentir, pensar e tentar continuar a construir uma possibilidade que seja distinta do que a educação sentimental – panaceia – nos aponta. Nestas horas, busca-se – busco – um Esconderijo, em que se possa atrever palavras que possam dizer – mesmo caladas – o que ocorre interno:

Estas são palavras que eu não
deveria dizer
 
palavras que ninguém
deveria ouvir
 
que elas permanecessem no silêncio
de onde vêm
 
no fundo escuro da língua
cheio de doçura e ruídos
 
com o ranço informulado
dos segredos
 
por via das dúvidas escondi-as aqui
neste poema
onde ninguém as vai encontrar (MARQUES, 2015, p. 26)

Eu-poema. Disfarçado o sentido do que não pode o conter, escondido dentro do que se precisa para; resulta ainda, outro problema, oriundo dos acasos que não cessam e que destroem toda a tentativa de massificação da educação sentimental possível. Quando estar bem e estar mal se encontram, com hora marcada:

Combinamos por fim de nos encontrar
na esquina das nossas ruas
que não se cruzam (MARQUES, 2015, p. 40)

Nesses momentos de encontros inusitados, que se processam à revelia do que se espera, que deixam um gosto de anormalidade em si tão prazeroso, é que se entende que as coisas são mais esdrúxulas do que se imagina, e que ter-se em si de modo vário e deseducado sentimentalmente, é estar bem, mesmo se estando mal, como:

As casas pertencem aos vizinhos
os países, aos estrangeiros
os filhos são das mulheres
que não quiseram filhos
as viagens são daqueles
que nunca deixaram sua aldeia
como as fotografias por direito pertencem
aos que não saíram na fotografia
– é dos solitários o amor (MARQUES, 2015, p. 60)

Daí se transforma em cinza, uma mediação entre o branco e o preto. O preto sendo o ápice de estar bem e o branco sendo o cume de estar mal. E tons cinzas pincelando a sua anormalidade emocional. O foda, é que

Ainda é tarde
para saber
 
Ainda há facas
cruas demais para o corte
 
Ainda há música
no intervalo entre as canções
 
Escuta:
é música ainda
 
Ainda há cinzas
por dizer (MARQUES, 2015, p. 65)

No fim, não dá pra saber muita coisa. Isso tudo posto é apenas um apanhado de impressões de quem não gostaria de se definir decididamente entre uma coisa ou outra e que não só não gostaria como tampouco consegue, não apenas por força de intento ideológico, mas por defeito de fabricação genuíno. Redundo, então, afinal: O que eu sei?

Sei poucas coisas sei que ler
é uma coreografia
que concentrar-se é distrair-se
sei que primeiro se ama um nome sei
que o que se ama no amor é o nome do amor
sei poucas coisas esqueço rápido as coisas
que sei sei que esquecer é musical
sei que o que aprendi do mar não foi o mar
que só a morte ensina o que ela ensina
sei que é um mundo de medo de vizinhança
de sono de animais de medo
sei que as forças do convívio sobrevivem no tempo
apagando-se porém
sei que a desistência resiste
que esperar é violento
sei que a intimidade é o nome que se dá
a uma infinita distância
sei poucas coisas

Sei que esse livro mesmo me pegou assim: estando mal, estando bem. Ou estando bem, estando mal. E me deixou muito bem. Embora eu continue mal. Porque este é um livro, que em si, já é

capa123

A gente vai se parecendo a cada poema.

BIBLIOGRAFIA:

MARQUES, Ana Martins. O Livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

PS: Uma Ana Moura, só pra corroborar a coisa:

pausa: ela (parte I)

De todas as coisas, a que mais me toca é provavelmente a música. De certo que foi ela que me demoveu às palavras. Foram elas, as cantadas que me sortiram a cabeça de enternecimento. Foi a música a culpada. Ela e meu peixes na Casa 1. Algumas das memórias mais antigas que tenho estão relacionadas a ela. Lembro-me da vitrola lá em casa, os vinis escutados atentamente, os infantis com histórias de Mágicos de Oz, porquinhos, lendas, cantigas de roda, várias feitas de infância contadas e cantadas. Sempre as adorei:

Depois veio o acometimento das músicas de gente grande, tudo graças à minha mãe: Caetanos, Cantorias, Gilbertos, Gals, Marias, Quintetos, Rauls, Cazuzas, Chicos: quando a Roda-Viva começava a rodar, eu rodava e rodava e rodava na sala, até tontear, deitar e olhar o poste pela janela imaginando que quando rodava e deitava no chão, eu conseguia perceber que a Terra girava, e ela girava. Nas voltas do meu coração:

As músicas sempre estavam a me margear a cabeça, a me compor a alma, os ânimos, o meu eu. Lá pelos dez, onze anos, uma das que mais me tocava era essa do Cazuza e Angela Ro Ro:

Era denso, era forte, era estranha a sensação. Um medo do profano, um receio do que se passava no além, de quais seriam os projetos do além, era uma tristeza e uma certeza de si. Escutava várias vezes, com a cabeça enfiada dentro do buraco reservado para a caixa de som da estante de compensado. Essa faixa é furada nesse vinil que ainda hoje tenho.

Na mesma época, outra que me tocava absurdos, era essa do Raul que vinha toda melodiosa, calma, esperançosa, como algo que fosse se conhecer, se achegar, ainda que fosse de noite:

Daí eu fui ficando mais “velho”, e ao mesmo tempo começando a me dedicar às músicas da moda, ao que tocava nas FMs da vida, na Rádio Cidade. Fase em que eu ainda não era eu, ou que talvez eu tinha perdido o meu eu, para um eu coletivo que, sinceramente, dispenso. Ainda bem que durou pouco tempo. E logo fui novamente ao encontro do que me tocava de verdade. Com a ajuda de minha irmã e do meu irmão. Tudo bem que eram música um tanto agressivas, um tanto conturbadas, mas me ajudaram a perceber o que eu gostava de verdade. Encontrei nas minhas memórias essas duas, a primeira, fruto da minha irmã e a segunda, oriunda do meu irmão:

https://www.youtube.com/watch?v=MWZwjnNIiFc

Não coloquei os trash-metals, punk-rocks, hard-cores, rap-cores, raps racha-cucas e afins que na época me tocavam muito, principalmente para descer a ladeira da Feira do Produtor de skate, porque eles não me tocam muito hoje em dia, ainda gosto de uma coisa outra, mas, enfim, foi-se uma época. A musicalidade dessas duas aí de cima, ainda me tocam, me marcam, me equacionam de alguma forma.

Mas desde aí eu comecei a ser eu um tanto mais. É claro que sempre imiscuído por essas três figuras – mãe, irmã, irmão -, mas já dotado de uma individualidade nova, própria de quem tem os seus quinze anos. Foi aí que eu comecei a me hippieorongar por conta própria, costurar “pizzas” nas minhas calças para deixá-las boca de sino e me aventurar pelo macramê, imaginando paisagens como essa:

Ansiava por lábios cor de açaí, céus azuladamente celestiais, trens e mais trens:

Atravessando brasis, regiões. Tudo era ansiado, era quisto. Ainda que do alto da minha impávida condição de menor de idade, tudo o que me restasse se resumisse a uma vitrola e um quarto, sós:

Tentando falar com alguém, sem coragem para o quê ou mesmo quem. Rabiscando palavras em cadernos e mais cadernos. Querendo algo sem saber. Sozinho, no escuro do quarto. Com algo preso na garganta, para ninguém:

E depois das explosões, só nuvens negras:

E me ilhava, só, sem ninguém. Durante muito tempo foi assim. Durante um longo, longo, tempo. O pode-crerzismo ainda persistia, mas eu, então, já com a cabeça contaminada por Carlos Castañeda, me atinei que, talvez, mergulhar em outros universos fosse a solução para sair da fossa de amar não amando. E me debandei para o misticismo nordestino de cabeça:

Durante um tempo, a psicodelia foi a minha salvação. Os universos paralelos, os seres siderais, os deuses astronautas. Era tudo o que eu podia ansiar, visto que o amor trafegava léguas de mim. Fui ruralizando um tanto, só pensando na minha casinha no campo:

O diabo é que faltava a tal da Rosinha. E quando eu menos esperava, já estava, de novo, com o amor nas têmporas e ouvidos. A sorte foi que naquele momento, enfim, apareceu um alguém do outro lado para ansiar alguma resposta. Que nunca vinha:

https://www.youtube.com/watch?v=yVpq8j23oHY

Isso que foi o que se sucedeu comigo até completar os meus 17 anos. Ano de 1999. Um tanto com ela, um tanto por causa dela, a música. Pra lembrar o que se passou nos 2000, tenho de fazer um esforço maior. Porque aí já tinha mp3, muitos amores, muitas dores e um sem fim de trilhas sonoras para cada momento da vida…

3397. a marcha

botas ecoam pelas avenidas
cadenciadas, ritmadas
legiões formadas em púlpitos
aparelhadas embaixo de altares
fileiras de medo e glória
esquizofrenia e paranoia
entoando a oração final contra
a nova perseguição a cristãos

turbas se aglomeram aos montes
prontas a decepar a cabeça da rainha,
como se houvesse rainha

imperioso, o ódio desconhece a ironia
vocifera apenas o pastiche
pastelão, a vontade de potência mais podre
torpe, turbilhão

as classes tomam ciência
as cores se aglomeram “esclarecidas”
as orientações se agrupam, normatizadas
corpos binários e revoltados contra qualquer multiplicidade
o mote deve ser único: um feixe de luz

os números saltam aos olhos
as cores se apoderam de significados
o teatro ideológico vira campo de batalha
e uma mortalha de estrelas cobre o mundo

o exército que salvará é de salvação
contra a danação do pecado e a pandemia da corrupção
coronéis se preparam, de amarelo e youtube
armas em punho, sentido!

sentinelas e guardiões da modernidade
não aceitam o que vem depois
querem o ontem, perfeito, como talibãs

a armada do combate contra a praga de todo o mal
é amante de toda a moral
e do epíteto ecoado do mote liberal:
a solução, meus caros, não é social
é antes de tudo e para sempre, do livre capital
além do que é necessário aplicar a pena capital
e reduzir a maioridade penal
e aceitar que a vida é desde sempre fetal
e que toda droga é fatal
e que não se deve ter prazer anal
e que a felicidade está no além carnal
e que toda mulher tem o gene do mal
e que o egoísmo é solução em si mesma, enquanto tal

a marcha continua, avante
incessante, impulsionada pelos bastiões da informação
os donos do definitivo processo de educação
(decepem até mesmo educadores, decepem, decepem, intervenham)
os formadores de opinião
planejando o futuro em torres de castelos
        
        

o futuro é lindo e quisto
então, vamos amar?

pausa: Adélia Prado

Os dias são amontoados de informações inigualáveis e todo mundo sabe disso – talvez, e provavelmente só talvez, em Kiribati nem todos saibam. Me questiono onde mora o tempo agora e já não consigo diferenciar tempo, informação e espaço. Tudo dá a impressão de ser apenas uma mesma coisa seguindo o fluxo da expansão do universo e sangrando nesses pequenos fixos já móveis (plexos em rede, algo como a imprecisão de sermos “nós”): a gente não vê, mas o tudo vai, inflacionário e relativo. Até supermáquinas para super acelerações de partículas tem quem faça. No final deve ser superútil, tipo descambar pra alguma nova bomba ou coisa que o valha (ah se me dessem a chance de “dar um reset”…). Tudo caótico.

Certo, o caos e a quantidade me atraíram por muito tempo, sempre flertei com eles. O caos principalmente, aquele mesmo que “precederia a anarquia” – o ácido sonho juvenil da vendeta (contra tudo especificamente). Flertei tanto com o caos que uma vez consegui até namorar ele, foi tenso. Até um monitor de computador ele jogou na minha cabeça depois que terminei o doce deleite de três meses. Tenso, muito tenso. Dias antes de findar meu romance com o caos, eu tinha comprado

talvez tenha até previsto a necessidade de menos caos, depois do caos. Adquiri o livro em uma barraquinha de livros que ficava em frente ao Quarentão, perto da Feira da Ceilândia, por uns dez pilas. Comprei com uma grande expectativa, posto que uma coletânea poderia introduzir-me a esta poeta de modo amplo – ah a quantidade de informação, a necessidade da amplitude, a precisão da velocidade… No fim, o caos fazia aniversário próximo e resolvi que ia dar o livro de presente para ele. Fiquei meio condoído de minha falta de poesia vindoura, já que teria de me desfazer do livro, tinha lido apenas uns poucos poemas iniciais e seriam pelo menos quatrocentas páginas de metáforas, metonímias, aliterações, enfim, da mais fina flor da poesia.

Refleti deveras sobre o ato. O caos mereceria? Ele tinha tentado me dar uma voadora na jugular no meio da rua dias antes, havia me perseguido até o trabalho jogando pequenas porções de ácido sulfúrico em minha cabeça, me feito correr de cueca na rodovia, me colocado em um tal estado de desmiolamento que acabei por gritar como um louco aos quatro ventos: “VAI SE MASTURBAR COM UM ALICATE, CAOS!!!!”, fez até com que eu traísse meus melhores amigos, bebendo espumante em taça de cristal em festas privês no Lago Sul… Meditei profundo: é, talvez o caos não merecesse o livro.

Resolvi dar uma chance à sorte do caos, jogando a responsabilidade para o acaso. Aleatório como sempre, abri e foi

Verossímil

Antigamente, em maio, eu virava anjo.
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
‘Canta alto, espevita as palavras bem’.
Eu levantava vôo rua acima.

E o pior, ainda era maio. Daí nem li mais nada, liguei pro caos e falei que tinha um presente para lhe dar. Marquei com ele no Parque da Barragem, tava afim de tomar um banho de rio. Depois de matarmos uma garrafa de Velho Barreiro e comer uma porção de ovo cozido, tivemos o sexo de despedida dentro do carro mesmo, lhe entreguei o presente e fiz uma dedicatória bonita. Creio que o caos saiu um pouco confuso do encontro, tudo tinha sido tão tranquilo e bom, por que não continuar? Bom, eu sei que eu não queria que monitores voassem em minha cabeça novamente. Ele me pediu para tirarmos uma foto. No outro dia estava no blog dele, posto assim

Fugi do caos como o diabo da cruz depois daquele dia, não queria mais voadoras, monitores voadores, caminhadas de cueca ou sexo dentro de carros, fui seguindo na contramão do caos. Fui caminhando com essas pedras que se apresentam no meio do caminho e foi num dia bem tranquilo, que de repente, via sincronia do acaso, encontrei novamente o livro em outro sebo. Achei muita coincidência, parecia muito o livro dado ao caos, fui olhar a dedicatória e vi uma

"Poesia com cheiro de campo minha flor"

De fato não era a minha dedicatória, era de um “A.” para uma “flor”, assim, bem bonitinho. Enterneci na mesma hora e julguei possível o amor ainda. Acomodei-me nas antípodas do caos, planando lentamente até o banquinho do sebo pausando os olhos em

Um sonho

Eu tive um sonho esta noite que não quero esquecer
por isso o escrevo tal qual se deu:
era que me arrumava pra uma festa onde eu ia falar.
O meu cabelo limpo refletia vermelhos,
o meu vestido era num tom de azul, cheio de panos, lindo,
o meu corpo era jovem, as minhas pernas gostavam
do contato da seda. Falava-se, ria-se, preparava-se.
Todo movimento era de espera e aguardos, sendo
que depois de vestida, vesti por cima um casaco
e colhi do próprio sonho, pois de parte alguma
eu a vira brotar, uma sempre-viva amarela,
que me encantou por seu miolo azul, um azul
de céu limpo sem as reverberações, de um azul
sem o z, que o z nesta palavra tisna.
Não digo azul, digo bleu, a idéia exata
de sua seca maciez. Pus a flor no casaco
que só para isto existiu, assim como o sonho inteiro.
Eu sonhei uma cor.
Agora, sei.

Lindas letras pretas que no branco do papel marcavam paz como lépidos lápis colorindo um borrão calmo de alma pós-caos. Segui o corão poético, assomado pelos contornos que poderiam se abater em mim e me fazer ver metáfora plena: eu lançado a alguém que nunca soube minha presença que estava

A meio pau

Queria mais um amor. Escrevi cartas,
remeti pelo correio a copa de uma árvore,
pardais comendo no pé um mamão maduro
– coisas que não dou a qualquer pessoa –
e mais que tudo, taquicardias,
um jeito de pensar com a boca fechada,
os olhos tramando um gosto.
Em vão.
Meu bem não leu, não escreveu,
não disse essa boca é minha.
Outro dia perguntei a meu coração:
o que que há durão, mal de chagas te comeu?
Não, ele disse: é desprezo de amor.

Com aquela minha distância tão intravenosa, dei a paga em reais justos pelo livro e saí a rodar coletivamente em busca de minha casa. Cada verso que lia, me acomodava em paz e mediação, coisas que haviam se fiado ao custo das apostas, de pagar pra ver: o caos, as voadoras, as coisas voantes… Quando desci do coletivo logo vi

A casa

É um chalé com alpendre,
forrado de hera.
Na sala,
tem uma gravura de natal com neve.
Não tem lugar pra esta casa em ruas que se conhecem.
Mas afirmo que tem janelas,
claridade de lâmpada atravessando o vidro,
um noivo que ronda a casa
– esta que parece sombria –
e uma noiva lá dentro que sou eu.
É uma casa de esquina, indestrutível.
Moro nela quando lembro,
quando quero acendo o fogo,
as torneiras jorram,
eu fico esperando o noivo, na minha casa aquecida.
Não fica em bairro esta casa
infensa à demolição.
Fica num modo tristonho de certos entardeceres,
quando o que um corpo deseja é outro corpo pra escavar.
Uma idéia de exílio e túnel.

Quanto mais eu lia Adélia, mais me invadia aquela sensação de que sim, o encontro já deveria ter ocorrido há eras. Talvez até, já tivesse se dado, só não tinha me atinado. Dentro de tanta informação, como lidar com o que realmente importa e te transporta para um porto mar aberto à beleza? Afinal, quando se apanha esse corpo da tarde, triste que dá dó, mas cheio de uma esperança brejeira, de uma calma consoladora, é que você percebe que só precisava disso na barra de algum

Dia

As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
– ia dizer imoral –
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.

Aquele maio, quando vi que não precisava do caos, e compreendi que diverso mesmo é esse

Objeto de amor

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.

resolvi que não adiantaria esquentar-me com os revezes, com as quantidades e a direção dos fluxos – mesmo que amorosos: eles me arrebatariam a qualquer momento. O imponderável e o inominável se cruzariam sempre e diuturnamente na minha cabeça. Mas, se diante da vastidão do que te apresentam, o amor se infiltra personificado e ainda cria nascente no solo da alma, como creditar que a variação é a máxima do que se precisa? Adélia me abriu a proposta que, mesmo no amor máximo, menos pode ser mais, calma e densamente como em um

Pranto para comover Jonathan

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

 

Ah, só ia me esquecendo de um detalhe, nunca, mas nunca mesmo, pare para ouvir o que Adélia tem a dizer sobre a moral e os bons costumes… Sério.

PS: Adélia sempre foi mais que matéria poética, sempre me foi inspiração:

1293. Adélia I / 1294. Adélia II / 1295. Adélia III / 1296. Adélia IV / 1900. Sem título

3072. Sufi III

O que via tudo de todos os ângulos
em todas as direções
quando todos os momentos se sincronizaram
tropeçou num meio-fio

A que ficou contemplando os milímetros
programando as partículas divinas
acelerando o universo até o avesso
caiu de cara no chão

Alguém que só existiu
também morreu
em imersão de amor e sorte

E a flor da vida dada pela poeta orientando o avante
palideceu sob a mesa do profeta
retornou ao tamanho da semente
semeou-se ilesa e indefesa

A beleza da decomposição

3069. Fogo fortuito

O meu fogo em riste
Imagino a temperatura que me abarca: umidade e terra
O escondido da caverna

Mas eu sou todo sangue que ferve
Músculo
Rocha
Hasteando temporário
No ecúmeno da gruta
A bandeira vermelha flamulante
Vulcões e lava
A arrasar todo o relevo

Há um vale
Que tremula, arrepia tuas terras

O que me derrama
Te arremata e arrasta
Erode teus receios
Em vapores de enxofre e lavanda

Desce ao inferno
É qual o maná de todo sétimo céu
Jorros e mais jorros de néctar e fogo
Incessantes
Bruxas cozem poções passionais
Nessas brasas
E o que explode alcança o céu

Vai, navega meus caldais
Que existem
Borbulha em fluxo contínuo
Acende as tochas nessa caverna
Ilumina o teu contido
Sai das sombras
Queima
Em toques
… o magma…

3044. Cocos aos povos

Quando do coco da cabeça
se faz a ponte ao todo
do corpo,

quando o inteiro do ser
bloqueia a inércia
de não ter,

quando a totalidade
da fé se completa com
flechas e raízes,

quando a independência
é solução diluída
e sorvida na água da luz,

é quando o horizonte
repousa circundante
dentro de si:

no meio dos cocos, como chaves para uma libertação.

3042. A casa dos mortos

preto
pobre
louco
ladrão

quem há de dizer quem existe?
só o segredo da salvação
apocalipse 16 ronda a boca
há interesse, há alma
o mundo esqueceu e a página é morta
cada vida louca assaz louca restando grade
grande emaranhado para a salvação
do tamanho do corpo moído

três anos de reclusão inconclusos
para todo o sempre
amém.

preto
pobre
louco
ladrão

mortos desde a sua fatídica construção.

pedra
pela cabeça
pela forca

preto
pobre
louco
ladrão

guardados a sete taças, trombetas e esquecimento.

3029. Diurna*

O mesmo império foi-se, oh torpe!
Desgraça dos agouros, fugida das trevas
De branco despes as noites
De matar estrelas

Ceifa bruta, corta noturna
Sorri o maldito, sensível inferno meu
Favela, espinho que sangra
Infincando as minhas têmporas

Inflama de prostrar, minha bruta
Darks mares que ampliam a tormenta cinza
Peso azedo que acorda
Ante a minha solidão

Abisma-me, salta, trovão das nuvens
Dos olhares geométricos da indiferença
Vestida dos meus pesadelos, neurônio que endoida
Vai, morre em mim

Amaldiçoaria sangue, minha alma com a sua
Carreado de suspense, feudo dos ocasos

O mesmo império foi-se, oh torpe!
Sorri o maldito, sensível inferno meu
Peso azedo que acorda
Vai, morre em mim

Amaldiçoaria sangue, minha alma com a sua
Carreado de suspense, feudo dos ocasos

Voaria esfaqueia, suas unhas entram em mim
Bebe o lodo escuro, vem, suja todo vão

No acobertado da tua pele, precisa
Pobre de mentira e a mim falseou
Que nunca nadara presa, diurna
Pelos escaleres

Mato meia meta, orquídea podre, oh meta!
Dos mesmos impérios de matar estrelas…

*Paráfrase de:

(Junio Barreto – Noturna)

pausa: trevas antes e depois [?]

“[…] a credulidade, a aversão à dúvida, o receio de contradizer, a parcialidade, a negligência na pesquisa pessoal, o fetichismo verbal, a tendência a dar-se por satisfeito com conhecimentos parciais, essas e outras causas semelhantes impediram que o entendimento humano fizesse um casamento feliz com a natureza das coisas e foram, em vez disso, as alcoviteiras de sua ligação a conceitos fúteis e experimentos não planejados: é fácil imaginar os frutos e a prole de uma união tão gloriosa.”

Francis Bacon, falando sobre os arautos fanáticos das trevas de uma idade média, ou Francis Bacon, falando sobre os arautos fanáticos das trevas de uma contemporaneidade?

pausa: ter o domínio…

Dominium Remixus
Parteum

Apesar dos pesares corro pra ver se anda
não pra saber quem manda ou comprar o que vi na propaganda
sigo meu próprio rumo, me arrumo com minhas condições
pro meu consumo sem maiores ambições materiais
quero minha paz, meu lugar
me livrar das correntes pra mente respirar
coloco ordem no meu caos pessoal
pra encontrar um sentido no qual possa me inspirar
meu motivo pra acordar em qualquer horário
abrir os olhos pra enxergar o itinerário
me guiar mesmo quando embaçar a visão
minha intuição diz que é temporário
e que eu posso bem mais do que imagino
quanto mais tento mais tenho noção
de que depende só de mim pra traçar meu destino
pra trilhar meu caminho com a vida na mão

ter o dominium, mente matéria
coisa séria, jogo de gente grande
minha vez, minha verdade
minha versão, meu modus operante

Prefiro os demônios que me conhecem
quanto mais me aborreço mais crescem
quando mais me despeço mais pedem pra eu ficar
a quem tente duvidar do que faço chover na rima
eu ando pela mente desses, feito enzimas
quando cataliso a oportunidade
domínio do latim, controle de propriedade
verdade seja dita, eu esperava mais da minha geração
concedo a informação
que falta aos mesters pra mudar de direção quando é preciso
talento eu vejo um monte, falta um pouco de juízo
faço dívidas maiores que o salário do seu pai
totalmente iluminado feito filme da Lakai
Parteum, Kamau e Rick
casa de pau-a-pique com essência de mansão
a beira do precipício fazendo meditação
Davi versus Golias todo dia na indústria da adoração

dominium, mente matéria
coisa séria, jogo de gente grande
minha vez, minha verdade
minha versão, meu modus operante

Desde a época de épicos, a época de réplicas
fiéis autenticadas de levada, estilo e métrica
não há mais ética no jogo, to esperto com quem me queima
e por quem eu ponho minha mão no fogo
boatos querendo status de lenda
novatos querem contatos na agenda
querem respeito imediato com frases de efeito imediato
mas não existe jeito imediato pra aprender
nada de supletivo pra compreender
qual o motivo que me tornou autodidata por necessidade
nessa ciência que me pede paciência pra manter a sanidade
será que vale a pena essa dedicação?
será em vão se for pela metade
dou pela verdade pra cumprir a função
pra seguir na missão com o microfone na mão

ter o dominium, mente matéria
coisa séria, jogo de gente grande
minha vez, minha verdade
minha versão, meu modus operante

pausa: porque poesia toca

[a cada dia que passo tenho mais certeza de que no rap é que tem ocorrido a maior revolução poética da contemporaneidade]

O Tempo e Os Sonhos
Elo da Corrente

Tem coisas que ficam no ar não por acaso.
as caixas te confundem quando batem com atraso.
Meus pés descalços n’água rasa e transparente,
me dão a sensação de liberdade ao consciente.

Mas não, o chão é cinza assim como horizonte,
aqui a água é não potável, não tem fonte.
A gente almeja o que não pode ter sem agradecer,
por tudo que temos e não nos deixa perecer.

Aparecer alguns quiseram… se perderam,
vieram outros; os mesmos erros cometeram.
Não se trata de jogar o jogo, é diferente,
quem fala realmente do que sente?!

O tempo é louco não desdenha eu desenrolo,
sempre pondo em prática os planos que eu bolo.
Descolo por um triz um jeito de burlar e ser feliz,
sendo constante e com caráter de aprendiz.

Coerente com o que vivo, entendo e observo,
interessante às amizades que conservo.
Vagando num pedaço de mundo feito de sonho,
às vezes musicando a tal vivência que eu disponho…

As horas passam, os dias correm,
os anos morrem, os sinais não disfarçam.
Os tempos passam, os homens correm,
os sonhos não morrem, as lágrimas não disfarçam.

Eu me aprumo e toco a vida sob caminhos melódicos,
nesse mundo sem harmonia e de valores tão módicos.
Espaço nada lógico pra quem não crê no trabalho duro,
eu já traçei meu rumo a gente se vê no futuro.

Os apuros que passei me fizeram ser quem sou,
quase tudo que hoje sei foi o tempo que ensinou.
Eu caio mas me levanto, cada vez mais forte.
Meus medos os expulsei, de certo já tenho a morte.

E isso é o bastante pra eu buscar em cada instante,
as respostas pras perguntas desta vida angustiante.
Inquieto eu sigo adiante, calo-me ao que é relevante,
só quero o necessário e não cifras exorbitantes.

Mas não há porque fingir o mundo é torto e confuso,
e a cada dia que passa mais nele me sinto intruso.
Eu recuso os seus atalhos, sei bem como é o trabalho;
faço das minhas linhas uma colcha de retalhos.

Caio e PG comigo nesse árduo caminho,
ninguém falou que ia ser fácil enfrentar o mundo moinho.
As horas passam, os dias correm e nem vemos;
é como Leminski disse: Distraídos venceremos!

As horas passam, os dias correm,
os anos morrem, os sinais não disfarçam.
Os tempos passam, os homens correm,
os sonhos não morrem, as lágrimas não disfarçam.

pausa: Paula Taitelbaum

Tem coisas que são mais que murros na cara, são quase chute nos ovos. Ok, péssima metáfora, ainda mais para alguém que, como eu, não é partidário de experiências masoquistas, esse papo de uma dorzinha aqui, o limiar do prazer, sei não, nunca consegui entender. Ou nunca consegui sentir o tal prazer na dor. Então tá, mudo a história: tem coisas que são mais que lambida nos ovos, são quase um gozo inteiro.

Eu estava no aeroporto (calma, infelizmente não consegui nada com alguma aeromoça dentro do quiosque da Infraero), o avião atrasaria sabia-se lá quanto tempo, papo pro ar, sem nenhum emepetreizinho pra dar uma estia, viagem pá e bola, nenhum livro também. Trouxa. Isso nunca se deve fazer, mesmo que não se vá ler nada durante os dois dias e meio em Vitória – o que se tem pra fazer mesmo em Vitória? – deve-se sempre levar um livro a tira colo, nem que seja só pra tirar uma chinfra com a mina: segura o seu Ao Farol, enquanto relaxa na cadeira do aeroporto com aquela cara de “isso, eu trabalho, viajo de lá pra cá, mas ainda assim, dou um tempo e leio Virgínia Woolf no avião”, enquanto olha pra ela por cima dos óculos… Clichê do clichê total. Mas, tudo bem, às vezes cola.

Aí eu resolvo dar uma olhada na revistaria. Afinal, aeroporto não tem banca, tem revistaria ou, na maioria dos casos, livraria. Enfim, entrei nesses mercadões de papel impresso estabelecidos nos portos aéreos e comecei a procurar algo pra ler: Carta Capital? Puts, sem chance, sem análises macroeconômicas keynesianas por alguns dias. Piauí? No way! CQC em papel não é minha praia… Caros Amigos? Hum, claro que não. Veja? Opa, to brincando! Le Monde? Aff, texto demais, sem saco total hoje. Quase comprei uma palavra-cruzada, o problema é que você não pode tirar uma onda com as meninas com uma palavra-cruzada, mesmo que seja o Super-Desafio Cobrão…

Continuei a tarefa de me distrair. Aquilo de olhar revistas estava ajudando a passar o tempo. Fui até a coleção L&PM Pocket e passei o olho: Receitas Vegetarianas, Pablo Neruda, Eduardo Galeano, Eça de Queiroz, Agatha Christie, enfim, gosto da L&PM, eles tem um critério randômico interessante para suas publicações, ao lado do A Paz Perpétua do Kant, e abaixo de Aline 2: TPM – tensão pré-monstrual do Iturrusgarai estava lá, isso:

Decididamente gostei do título e da capa, e a contracapa também era de um singeleza ímpar, apenas notava: “Desaconselhável para puritanos e menores de 18 anos”. Na orelha do livro uma grata surpresa:

Taitelbaum, Paula
poeta de renome
tem pau até no nome.

A biografia poética era de Claudia Tajes, de quem, graças à L&PM, eu havia adquirido o delicioso Dez (quase) amores, um livro de contos sobre uma mulher que tenta amar e acaba apanhada pela rude realidade desse nosso universo masculino obscuro… Mas tudo bem, isso é papo pra outra hora, o objeto de estudos delimitado aqui é outro, o recorte epistemológico é em Taitelbaum, Paula, que abre seu pocket assim:

Eu abro as pernas
para perpetuar
a tênue
ternura
do infinito
da Fênix
e seu rito.

De cara ela já se abre toda, mais ainda assim, um tanto receosa: tentar e se dar. Renascer a cada novo rito de de novo abrir as pernas exige, pelo menos, alguma ternura, pois que, senão, a faca em nossas cabeças seria fácil. Mas aí, logo na sequência, página seguinte mesmo, ela desata qualquer perspectiva de se conter:

Eu abro as pernas
para enrijecer
o grelo
descontrolar
o grito
gotejar
a gruta
e me perder
no atrito.

Ufa. Na cara essa. Ok, na cabeça, direto, sem preliminares, no máximo dois beijinhos de “prazer em te conhecer” e crau, já era. Li mais alguma coisa e fiquei pensando num adjetivo, naquele momento nada me veio a mente. Taí, agora veio. Taitelbaum, Paula, tem uma poesia friccionável:

Meu lugar preferido
é perto do seu ouvido
nas dobras da sua orelha
onde minha língua passeia
sem sair do lugar
é lá que enfio bem fundo
o verbo mais imundo
que consigo encontrar.

Dá pra esfregá-la em várias partes do corpo:

Ele traduz meu silêncio
reescrevendo com saliva
minhas saliências
no instante do refluxo
no reflexo das quatro pupilas
os pensamentos
são como palavras
ele pode me ler.

Tem quem tenha problemas com o pornográfico, como se o sexo representado para o deslumbramento – na maioria das vezes – solitário, fosse algo apenas intermediário, sem mérito, mas em grande medida, eu penso o contrário:

Na vulva vibra a larva
que logo será borboleta
sairá de seu casulo
vai virar uma boceta.

Há também os moralismos, que hoje se alfinetam em várias ordens possíveis e imagináveis, e ainda se flagelam com espinhos no cacete. Tem gente bem nova – e o pior, bem próxima – que até parece, se vê como a próxima vinda de Cristo, os arautos da moral e dos bons costumes, aqueles que vão trazer a novíssima boa nova. E recriminam o baixo, o impuro, o vil, como se falar palavra de baixo calão fosse melhor que os pensamentos demoníacos que os percolam dia a dia. Prefiro quem bota pra fora a palavra, sublima toda essa porra e diz em alto e bom som, eu trepo e gosto dessa zorra:

Tô cansada
de foda
cronometrada
queria horas
e mais horas
de cravada
depois dormir
em concha
encaixada
com a xota
cheia
e toda
inchada.

A poesia da Paula é paulada na moleira contra mitos. Às vezes o machismo cultural introjetado fala mais alto e eu até penso que essa poesia toda é meio miragem, coisa que não existe, tipo “mulher escrevendo isso?”, mas aí eu dou uma mordida no meu machismo e relaxo, que que tem uma mulher falar que gosta de dar o rabo?

Quando teu dedo
passa perto do meu cu
eu me sinto um pouco tu
tudo turmalina.
Quando teu dedo entra
atrás e através
eu arrepio o dedo do pé
pena perpétua essa minha.
Quando nossas pernas
formam um nó de nós
viramos corpos celestes
não te veste me traveste.
Quanto tua língua busca
o meu maremoto
eu morro subitamente
peixe preso na rede.

Tá, tem mesmo quem falará que ela é que é machista. Se enquadrando em estereótipos sexistas e realizando a fantasia de homens que querem as mulheres vadias, principalmente quanto ao sexo, desses mesmos caras que querem, na verdade, as minas castas para casar. Mas qual o quê, século XXI, porque a gente não deixa as pessoas gostarem do que gostam, principalmente quando o quesito é foder? (Ok, argumentos sobre pedofilia não estão sendo computados, beleza?).

Desenhe círculos
sobre meu clitóris
infinitos pontos finais
um pra cada um
dos meus ais.

Gosto de poesia puta. Gosto de sexo nas palavras. Cheiro de tesão em cada verso. Foi bom pra mim encontrar essa mina na prateleira da revistaria, orgasmo sem pudor. Talvez, foi bom pra ela, se esse lance de publicar livros der alguma grana, ela pode ter pagado um jantar que a levou para uma cama dividida com a minha ajuda…

Bom, sem problemas, que atire a primeira pedra quem nunca gozou:

De seus lábios surgem plumas
que me transformam em plasma
viro puro pleonasmo
pluma plasma pleno
orgasmo.

PS: Sítio dela mesma não encontrei, mas percebi – via Google – que tem muita coisa dela no blog da L&PM (como aqui e aqui). Aqui temos o perfil de autora dela na editora.

pausa: Shakespeare

Sonnet LX

Like as the waves make towards the pebbled shore,
So do our minutes hasten to their end;
Each changing place with that which goes before,
In sequent toil all forwards do contend.
Nativity, once in the main of light,
Crawls to maturity, wherewith being crown’d,
Crooked eclipses ‘gainst his glory fight,
And Time that gave doth now his gift confound.
Time doth transfix the flourish set on youth
And delves the parallels in beauty’s brow,
Feeds on the rarities of nature’s truth,
And nothing stands but for his scythe to mow:
And yet to times in hope my verse shall stand,
Praising thy worth, despite his cruel hand.

Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta:

Soneto LX

Como as ondas se arremessam contra as pedras,
Aproximam-se os minutos de seu fim;
Cada um ocupando o mesmo espaço,
Num incansável e destemido movimento.
Do nascimento, após vir à luz,
Engatinhamos até a maturidade, e somos coroados,
Vencendo estranhos eclipses perante sua glória,
E o Tempo, dado, que hoje nos lega seu presente.
Os dias firmam seu passo na juventude,
E cavam suas sendas sobre a fronte da beleza;
Alimentam-se da raridade da verdade da natureza,
Mas nada impede o firme corte de sua foice.
Porém, às vezes, espero que meu verso prevaleça,
Elevando teu valor, apesar de seu cruel desmando.

[lindo: ele no poema, ela na poesia, eles no fundo e ela na versão]

pausa: Ana C.

Os ventos da idade vinham calmos, mesmo que transtornados, e anunciavam as limitações e a intensidade desejada. Já transcorridos alguns meses de quando larguei o futuro até então mais redondo encontrado para minha vida: tudo seria simples e bom, os moleques correriam pelo quintal ou azucrinariam todo o apartamento, dois financiamentos – um pro carro e um pro imóvel – devidamente aprovados pela Caixa dado os concursos já passados, um amor leve e redondinho abençoado por algum sacerdote. Joguei tudo pro alto naquele então. Definir o motivo é coisa complexa, que se incrusta no interior de anseios tortos e certos pela angústia e pela indefinição.

Só sei que larguei todo aquele e tudo aquilo que poderia advir. Mas logo na pancada, na sequência do então, o amor já me socou na esquina. Amor ciborgue, abençoado por eletrodos e acordes certeiros feitos em guitarras e pandeiros. Amor doce e azedo que me deixou mais poesia, que me mergulhou no emaranhado dos tecidos de palavras que encobrem a banalidade da vida. Livramor libertário e libertino cheio de metáforas, que me conduziu a amar o possível e todas as suas possibilidades.

No meio daquele momento de livramor e coisa e tal, no após lampejo daquele que fora um passado mais-que-perfeito, entre uma construção poética-internética coletiva e outra, foi que me apareceu Ana Cristina Cesar. Quem me introduziu de fato àquela poeta, me fora um amor crítico literário virtual-quase-presente.

Senhorita D. dizia (chamemo-la assim) que Ana Cristina Cesar (alcunhemo-la por Ana C. somente), era a poeta que mais lhe entendia em todo a vastidão e que fora seu objeto de estudos na graduação e seria na pós, ou podeira na pós e seria na graduação, não lembro agora a ordem das coisas. Naquele então eu ainda não havia lido em profundo Ana C., apenas havia passado os olhos por sobre alguns versos, espaçadamente, diletantemente, casualmente. Havia pouco espaço para ser preenchido por quem quer não fosse Paulo Leminski ou Mário Quintana, mas sei que Ana C. não me atinava de todo. Foi nesse contexto que me chegou:

E chegou chegando como mulher que não tem meias-palavras (só meia-bruxa e meia-fera) e te pega no solavanco:

Samba-canção

Tantos poemas que perdi
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhado na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica,
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz…

“Ah, filha da puta”. Foi bem assim que pensei. “Se continuar desse jeito, me apaixono, à revelia de seu suicídio… Ou por dentro de todo o choque e charme de seu suicídio… Se continuar assim, serei seu verso exercício post mortem, a fagulha do seu indício…” arrematei o juízo enquanto bebia um copo de café às altas do dia vindouro, sentando em frente ao monitor com o comunicador instantâneo ligado mostrando que estava em linha. Alguns duzentos quilômetros além, Senhorita D. me guiava:

Senhorita D. diz:
e aí? como anda nossa Ana? rsrs
Chinaski diz:
então…
Chinaski diz:
to, tipo, criando coragem pra continuar…
Senhorita D. diz:
pq?
Chinaski:
bem, pq tenho medo de me apaixonar rápido demais…
Senhorita D. diz
;-)
Senhorita D. diz:
vai na página 59
Chinaski:
peraí…
Senhorita D. diz:
se livra da verdade, se apaixona logo de uma vez…
Senhorita D. diz:
se quiser facilitar, posso pousar a mão no teu peito… ;-*

Aí então eu fui, já sabedor de que algo iria acontecer que me marcaria para sempre:

Minha boca também
está seca
deste ar seco do planalto
bebemos litros d’água
Brasília está tombada
iluminada
como o mundo real
pouso a mão no teu peito
mapa de navegação
desta varanda
hoje sou eu que
estou te livrando
da verdade

Ok, não sou nenhum amante profissional de Brasília, mas tenha cá com ela meus encantos e tenho cá com ela minha relação topofílica específica. Gosto do determinismo ambiental e geográfico que ela me proporciona. Gosto dessa seca e dessa chuva, desse concreto, dessa lonjura, desse céu desmedido e desse tanto de pau torto e barro vermelho, tudo isso sempre me foi matéria-prima poética para lapidar, mas minha relação com ela vai além de sua geografia…

Quando eu vejo alguém escrever algo sobe Brasília, que seja melhor do que ser superquadra na cama do Nicolas Behr, ou luzes das cidades satélites que o Oswaldo Montenegro e o Dom Bosco enxergam – não citarei Renato Russo, me recuso a isso, de merda já bastam as acimas citadas –, já me comovo um tanto. E essa Brasília de Ana C. era muito mais a minha Brasília. Não apenas uma conjunção espacial planejada para a urbe poesificada na plástica aparência além da existência, mas o lugar em que me acometeram algumas vezes esse pouso da mão no meu peito: cidade viva. E o lugar em que ela havia livrado alguém da verdade. Simplesmente lindo – coisa que não uso tal adjetivo à toa, fique desde já sabendo, uso-o, pois, com a devida intenção de transpor a experiência estética sublime diante de algo que mereça se “perder o tempo” em contemplar.

Lá pelas tantas do dia já quase sendo, com a pequena cara vermelha do sol se apresentando para o horizonte, vi que Senhorita D. já não mais estava em linha pelo comunicador instantâneo, mas continuei a ficar aos pés de Ana C.:

Livro bom me leva a querer escrever nele.

EXTERIOR. DIA. Trocando minha pura indiscrição pela tua
história bem datada. Meus arroubos pela conjuntura.
MAR, AZUL, CAVERNAS, CAMPOS e TROVÕES. Me encosto
contra a mureta do bondinho e choro. Pego um táxi que
atravessa vários túneis da cidade. Canto o motorista. Driblo a
minha fé. Os jornais não convocam para a guerra. Torça, filho,
torça mesmo de longe, na distância de quem ama e se sabe um
traidor. Tome bitter no velho pub da esquina, mas pensando em
mim entre um flash e outro de felicidade. Te amo estranha,
esquiva, com outras cenas mixadas ao sabor do teu amor.

Esse me era especialmente injetável nas veias, tipo overdose de possibilidades: “ok, eu deixo mesmo meu ar coquete pelo seu kantianismo, pouso até o que me explode recostada em meu choro, mas ainda eu – desde sempre nascida e decidida –, faço o que quero e o que posso e que você fique aí esperando pela paz perpétua no estribilho de uma metralhadora longínqua; seu sangue e sua carcaça ainda me armaduram e você me ama e eu amo tudo o que me veio depois desde que amo você, ainda que colagens de paisagens no peito”. Corri a continuar mais, agora já, de joelhos, aos pés dela:

Preciso voltar e olhar de novo aqueles dois quartos
                                                                        vazios.

Primeiro o soco verborrágico, depois o koan hiper introspectivo. O suprassumo da subjetividade. E a quem, como eu naquele então, doido por sentir além da conta, sentindo tudo o que podia se sentir a cada dia, sendo quase pura sensação, queria apenas encontrar sujeitos que iguais sentissem, existi e residi um quarto de dia naquele um verso quase dois: “volto, para que o vazio se faça inteiro e preciso, lágrima cristalizada num quarto de segundo; basta apenas menos, e eu olharia o que é, para saber que já foi”. Terminei o livro ainda pela manhã e depois poesias me existiram durante um mês inteiro.

É interessante notar que esse é um dos poucos livros “roubados” que estão comigo. Não é meu esse livro, ele é da Senhorita D., pessoa que se encaixaria muito bem nesse poema constante do objeto do “furto”:

Atrás dos olhos das meninas sérias

Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão,
por injunções muito mais sérias, lustrar pecados
que jamais repousam?

O livro me foi emprestado apenas. No entremeio dum dos percursos feitos entre duzentos quilômetros pra lá, duzentos quilômetros para cá. O mais interessante foi a “troca” não planejada havida pelo livro: a sorte o trocou por um agasalho que ficou com a Senhorita D. Naquele tempo, esse agasalho me acompanhava sempre e eu tinha por ele um carinho imenso. Ele era bem parecido com a minha cara, talvez fosse já a minha cara. Era uma das “roupas de uma nova vida” que eu havia adquirido para me manter mais coeso depois da largada que eu havia promovido (lembra-se dela? a do início desse papo todo…). Hoje em dia imagino por onde ele anda, se nas mãos de alguém que precisa dele mais do que eu, ou se agasalhando o peito tocado pela mão de Senhorita D. de um literato ou crítico literário qualquer, mas gostaria que ele estivesse assim:

Noite calma, Jim afina o violão, Caio espera a cantoria, Paulo com "o" agasalho e cara de tacho e Cecília é puro encanto...
No fim da noite tudo é permitido: Paulo já deu "o" agasalho para Charles – e mesmo as calças –, Franz tenta lembrar aquela do Adoniran, Ana toma uma e tenta puxar o samba da memória e Vinícius fica ali meio paradão esperando a galera voltar com mais uísque...

Naquele momento eu estava aberto às sensações. Sentia tudo vindo a mim como um grande continuum de sincronias do acaso predestinadas. Senhorita D. chegou-me num rompante de poesia vivida e compartilhada, trouxe-me a possibilidade do encontro com Ana C., deu-me sua parcela de gosto no mundo e foi-se embora com meu agasalho, deixando-me seu livro – provável que ela levou mais coisas ainda: um gosto ruim na boca, um carrinho-de-mão, pelo menos, repleto de desilusão e um certo rancor pela espécie masculina. Mas isso tudo é conjectura, fico posto com o que posso mensurar: minha própria existência, que hoje, certamente, seria bem diferente se não tivesse topado com Ana C. em meu caminho.

Bom, já me excedi em demasia e a loucura me acompanha. No fim, o livro é mesmo muito lindo.

Senhorita D., caso ainda queira o livro, é só falar que eu devolvo, não sou, definitivamente, um ladrão de livros. E ah, realmente muito obrigado por te me colocado este livro e Ana C. na minha vida. Como ela mesma diz nele:

Este livro

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É
prosa que dá prêmio. Um tea for two total, tilintar de verdade
que você seduz, charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a
carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.

PS: Tem muita coisa da Ana C. na rede, é só dar uma pescada aqui.

pausa: Kuri

Provável que o ano era 1998, momento em que me acometeu essa coisa de “buscar cultura”. TV Nacional no talo, rádio Cultura, Nacional e Senado na veia, embora internet ainda fosse apenas pra procurar coisas sobre ets, magia, religiões e pornografia, com direito a madrugada de chats. O balaio de gato era grande, entre um tombo e outro de skate e uma jogada de Heretic no pc, lia muito: Hesse, Hemingway, Lispector, Assis, Kundera, Orwell, Amado, Wolf, Rego, Queiroz, Castañeda, Andrade. Talvez, 1998 foi ano em que mais li na vida. E ainda havia tempo para as festas trash-punk-hip-hop-raulzito-um-quê-de-hippie taguatinguenses que meus irmãos me deixavam acompanhar. Fora as incursões à Chapada dos Veadeiros e todas as consequências místico-mágicas advindas com os adventos lá experimentados…

Naquela época, durante as tardes de domingo com ar depressivo que arrebentavam a barra do dia sempre, quando eu não estava na calçada olhando o tempo cair lentamente, vendo os moleques mais novos correndo pra lá e pra cá, esperando o momento em que o amor me cairia sobre a cabeça, eu estava no meu quarto escutando rádio. Gostava dos programas da Rádio Nacional e da Senado, sempre havia algo sobre música clássica, sobre jazz, sobre música brasileira antiga. Eram áfricas e ásias, portugais sonoros que nunca havia sonhado escutar. Creio que foi num programa do Arthur da Távola, quando ele me apresentava os fados de Amália Rodrigues que eu me atinei em ler poesia. Já a escrevia havia um ano pelo menos, mas não tinha o costume de ler poesia. Fui até a biblioteca de minha mãe e procurei algum livro de poesia, de bobeira, encontrei esse:

Kuri, fiquei pasmando. Será? O nome do livro era bom: “Gueto”. Arrisquei, começava assim:

Gueto

Venha beber conosco, os placidamente aflitos,
pernoitar em nossas pequenas casas sem teto,
partilhar dessa dimensão em que o sonho
e a realidade não se distinguem, não se excluem.
Venha embriagar-se conosco, os anjos tortos,
desatrelar-se, aventurar-se pelo prazer da descoberta
e brindar a loucura com a mesma reverência
com que os outros brindam a coerência
das linhas retas, das quadras, dos quadrantes.
Venha misturar-se a nós, crianças medonhas,
radicar-se nesse gueto entrincheirado
além do território das engrenagens metálicas,
provar a lucidez mágica da poesia
que, de súbito, é uma dor e uma alegria.

Foi uma paulada em minha cabeça de pré-e-te(en)so(´) poeta de 15 anos de idade. Como assim, logo de cara, no primeiro encontro, ela – a poeta e a poesia – já me chamava para beber junto? Como assim, ela falava aquela linguagem diabolicamente ervácea, em tom de tonais e naguais, de partilhar dimensões de sonho e realidade conjuntas? Minha mente já louca de podecresismos, ficou mais louca ainda, quis automaticamente “brindar a loucura com a mesma reverência com que os outros brindam a coerência” e “provar a lucidez mágica da poesia”. Continuei, pois:

Marítimo N.º 5

Não atento ao que os homens
falam de Deus.
Prefiro supor
o que ele mesmo diria
se eu fosse capaz de ouvi-lo.

Alto-mar, maio 75

Estremeci. Lá estava, posta em versos, a minha propensão ateísta, fruto de overdoses e parco entendimento de Raul Seixas (à revelia de que hoje considere-o extremamente teísta e cristão…), paixão por Cobaias de Deus” do Cazuza e Angela Rô Rô e discussões sobre a concepção de deus com o padre da Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro durante as aulas de catecismo. Adorei aquele grito “creio, mas não sinto” entoado na poesia, me vi ali. Era um humanismo denunciante já de um demasiado, um quê de decaído e ao mesmo tempo com uma certeza tão forte, que me tocou de todo.

Quis ir mais fundo, decidi ler o livro de uma vez. Nunca havia lido um livro de poesia inteiro, por vontade própria, até então. Os únicos livros de poesia que havia lido eram um compêndio de Tomás Antônio Gonzaga da coleção “Nossos Clássicos” da Editora Agir e “Poesias Selecionadas” de Gregório de Matos, e tudo por conta das aulas sobre arcadismo e barroco durante as classes de literatura com a Professora Marlene.

Cola para a prova sobre arcadismo, onde se pode observar uma transcrição ipsis litteris das anotações do caderno para o livro que poderia ser usado durante a prova.
Detalhe de cola para a prova sobre barroco. Na cola se lê: “O dilema do poeta diante de tendências opostas e conflitivas”.

Continuei a leitura, eram coisas simples, belas e com um poder de concisão que eu ainda não havia percebido ser possível em se tratando de poesia – somente um ano mais tarde eu descobriria que haviam haikais no mundo… –, cada página me pegava de jeito:

Marítimo N.º 9

Se eu lhe disser a verdade,
estarei mentindo.

Alto-mar, junho 75

Uma coisa estranha explodia em mim, o dispersar veloz e impactante de uma matéria até então não sapiente da existência: dois versos, uma verdade, uma mentira, uma brincadeira silogística. Tudo ali em dois versos simples, provavelmente já ditos por qualquer outra pessoa no mundo, mas colocados ali naquele livro, naquele momento. E os lendo – os versos –, fui descobrindo a possibilidade de falar sinteticamente sobre paisagens, sobre a geografia sentimental de lugares (prenúncios de uma topofilia?):

Cidade (I)

Da janela,
um pedaço de céu,
outros apartamentos
um poste e uma renda
de muitos fios.
Nada mais –
nem mesmo a esperança
de que um pássaro
risque o espaço vazio.

Continuando, fui aprendendo a como se dar diante dos paradigmas internos e como rir de sua própria contradição:

Ironia

Às vezes eu me sinto
como se não tivesse
mais nada pra dizer…
aí me contradigo
e os rios rolam seixos
até a beira do mar.

Me antecipando por meio dela, cheguei um tanto ao sentido daquela pureza boba e leve de Manoel de Barros e daquele saudosismo infantil de Adélia Prado, que só iriam dar com os costados em minha vida tempos depois:

No Quintal

Quando era mais criança
e me deitava no quintal
ao lado das formigas,
das poeiras e das vidas
invisíveis, o sol se estendia
sobre mim: juntos
fazíamos de conta que
viajávamos pelo céu.
Um suor lavava meu corpo,
eu ria o riso fácil da infância
e, mercê de Deus, não entendia
o horror de minha avó.

Gostei tanto daquele livro e daquela poeta, que senti um ímpeto até de transbordar a arte dos versos à qual estava me atrevendo adentrar, que comecei a rabiscar desenhos no meio de seus poemas, tentando – em vão – reconstituir com imagens no papel as imagens que via durante a poesia:

Certo que nunca fui bom no desenho. Na real, os desenhos eram primários, como bem se pode observar, mas foi bom tentar fazer algo naquele momento e ainda gosto dos garranchos até hoje…

Leio Kuri agora com uma saudade gostosa, uma distância próxima. “Gueto” é um dos únicos livros que já li algumas vezes e nunca me cansei de ler. A poesia de Kuri em “Gueto” é ácida, amena, progressiva, curta e grossa. Como disse Vinícius de Moraes: “Kuri vive no meio do ‘fogo que arde sem se ver’, sofrendo da ‘ferida que dói e não se sente’, para lembrar Camões. Seu destino – ai dela! – é o amor e a poesia. Prosternemo-nos, pois.”

Lutei pra encontrar algo a mais dela que estivesse por aí, posto na internet, mas só descolei esse link a princípio: http://www.adversos.com.br/poe_kuri.htm, em que existem algumas poesias dela e de outros poetas pertencentes a um grupo chamado AdVersos, que está na ativa desde 1968 (!). De qualquer forma, taí a dica. Quem quiser procurar Kuri, que se cure da apatia poética e bons versos!

pausa: Ledusha

Sempre escutava na Rádio Nacional de Brasília uma música do Celso Foncesa e Ronaldo Bastos chamada “Ledusha com diamantes”. Gostava da música, achava bobinha mas, ainda assim, aprazível aos ouvidos. Não fazia ideia de que Ledusha era uma mulher (mesmo a música falando de “Ledusha e seus namorados”, afinal, não só mulheres têm namorados…) e não fazia ideia de que era uma poeta (bom, pelo menos eu acho que é a mesma Ledusha poeta de quem quero falar). Um dia perambulando num dos sebos perto da Liberdade em São Paulo, como sempre olhando o que tinha de poesia no local, depois de ter encontrado “Poesia varia” de Guilherme de Almeida, encontrei esse livro da Ledusha:

Abri o livro e dei de cara com isso:

sinhazinha em chamas

ai quem me dera uma tuberculose
uma overdose
uma carência esplêndida

Gostei, fiz aquele trejeito com a sobrancelha identificando um certo “ok, será?” e continuei:

via aérea

baby
linda tua carta
a fitinha do bonfim cor maravilha
que por azar perdi no cinema
não enforquei mais a análise
depois que comprei o jeep
vou conforme o vento
pelo rio
comi um poeta na sexta
um crítico no sábado
domingo sonrisal
parece que faz muito frio
aí em são paulo
estou bonita de cabelos novos
pelos ombros
ontem à tarde célia trouxe bombons ingleses
daqueles mentolados
e dois fininhos que matamos rápido
assim que puder mando o flaubert
e a blusa de seda para lilia

Achei linda essa coisa meio largada, com um certo tom de largadamente pensado, achei charmoso. Tipo, comer um poeta na sexta, um crítico no sábado e domingo maldizer o estômago – potencialmente devido a uma overdose de porralouquice que a consumiu, levando-a a consumir dois sujeitos num fim de semana ou mesmo ao cansaço estomacal que deglutir dois tipos como esses deve provocar em alguém: poeta ninguém merece, provocam mesmo azia (pô, azia!) e críticos, bem, são críticos, em grande medida cítricos… Mas aí, continuei:

caça à palavra

repleta, minha alma espreita atrás do estrume do mundo:
de onde vêm os versos, que face ocultam entre o amor e a morte?
às vezes os sons são os mesmos, as texturas, o tempo,
o mesmo homem a revolver-me as veias
onde se lacram as vãs repetições, que noite veste o poema?
o sol nos vasos de crisântemos, ecos de um triste país,
largos horizontes onde meu pai passeia verbos nem sempre sublimes.
tudo é memória, sirenes ligadas. a infância sempre ontem, mas aqui.
todo verso sugere uma serpente oferecida.
que na minha caça à palavra (que face ocultam o amor e a morte?)
não haja qualquer vislumbre de repouso.

Segui assim, com aquele belo final em audição interna – essa coisa de enxergar imagens ao escutar as palavras na cabeça –, enquanto alguns segundos perpassavam lentos ao redor: “que na minha caça à palavra […] não haja qualquer vislumbre de repouso”. Foi paixão àqueles últimos versos à primeira lida. Quis apenas confirmar. Aleatório, cai no fim, página 185:

confissão

sabia os carinhos mais mansos
perdi o hábito

Sorri de leve, matutei cá com meus botões de prender miolos “dura essa moça, bem dura, com um quê de candura, gostei da criatura…”. Fui acordado do nefelibatismo por minha companheira à época: “Então, já se divertiu bastante? Vamos nessa?”, “Sim, claro, vou levar esses dois…” e saímos a descer escadas enquanto eu tentava compartilhar o que desse pra tentar – isso de transpor ao outro sensações que se afirmam no aglutinado da moleira e dilatam o tempo sem qualquer menção palpável da realidade, isso de tentar compartilhar poesia…

Não sei se foi ainda sentado no banquinho de madeira do sebo ou no carro rumo à casa ou mesmo se já em casa, que me deparei com uma dedicatória posta na primeira página do livro:

"Para Guilherme e Pedro, com um beijinho da Ledusha..."

Achei graça da dedicatória, era para um Guilherme e um Pedro. “Seria um casal?”, formulei. Pensei ainda no lance do livro estar em um sebo e imaginei a separação drástica – coisa de morte física ou morte de amor – que haveria conduzido o livro até a prateleira do sebo: Guilherme pego na cama com outr@ lendo Ledusha em seu ouvido, quando Pedro chega do trabalho. Guilherme morto na sala, após consumir dois vidros de barbitúricos, com o livro da Ledusha na mão direita e uma foto do casal em Angra dos Reis na mão esquerda. Enfim, Pedro explicando para Guilherme: “Gato, essa Ledusha é uma porcaria, tudo bem que ela autografou o livro, mas vamos nos desfazer um tanto dessa trolha de poesia de quinta que você tem! Eu também preciso de espaço na estante!”…

Bom, sei que eu gostei do livro.

PS: Fuçando na rede achei isso: http://ledusha.blig.ig.com.br/. Não cheguei a ler direito ainda, mas tem uma ou outra poesia dela por lá, fora alguns insights de diário compartilhado.